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3.2. Constituição formal de Doidinho

3.3.5. Experiências sentimentais

3.3.5.3. A morte

No capítulo 30, Carlos relata a experiência de morte do colega Aurélio (Papa Figo). Ele estava doente, amarelo, causando-lhe medo (antes era repulsa) e provocando-lhe cogitações acerca da morte: quem cuidaria do morto? Quando a doença se agravou, foi isolado da turma no quarto do meio e cuidado por Seu Coelho e sua medicina natural. Carlos pressentia a visita da morte e chorou pelo seu medo. Sentimento experimentado na morte do pai, da avó e na possibilidade de esta visitá-lo a qualquer momento. Assim, chorou mais ainda quando a visita a Aurélio foi confirmada. Que coisa misteriosa? Por onde será que o corpo começa a se deteriorar? Olhava para a cama do colega, recordava-se dele e da morte. Por que não somem com aquelas coisas?

Durante a vida, Aurélio sempre foi isolado da turma, sua roupa de cama fedia mais, possivelmente por ninguém lavar, não recebia visitas. E apesar de a morte ser considerada um fato ruim, foi ela que o elevou diante do colégio: “e se falava de bem de Aurélio. Era doente, dizia D. Emília, mas tinha um coração de moça. Entre os meninos, ninguém o chamava mais pelo apelido. A morte exigia destas considerações” (REGO, 1969, p. 147). Aurélio era fisicamente fraco e debilitado, fator muito visível em sua aparência, provocando repugnação, asco e, às vezes, piedade, naqueles que o observavam. Paralelamente, suas ações e sentimentos eram belos, sensíveis, frágeis (como de uma moça), estava pronto para sentir emoções fortes, como o amor que não conhecia, nem advindo de sua família que se envergonhava dele. Apesar de as suas atitudes serem consideradas bondosas, a aparência física as deixava imperceptíveis.

A família não atendia ao pedido de cuidados para com Aurélio, esperou o garoto estar enterrado durante dias para visitá-lo; o pai refere-se ao filho como um coitado, doente, cujo fim, depois de dar trabalho aos outros, inevitavelmente seria a morte. Contudo, traria outro filho para o colégio: “mas este o senhor vai ver: é um meninão!”, o orgulho da família. “O que mandei para aqui era uma besta, um troço humano. O que está em casa, sim, é meu filho”

(REGO, 1969, p. 148), acrescenta Carlos ao comentário do pai de Papa-Figo ao comparar seus filhos.

Assinalamos que Aurélio é tratado como um animal irracional, um objeto que não merece nenhuma consideração – pois de humano só tinha a forma e era tida como algo negativo, como aquilo que queremos nos esquecer e jogar fora porque é inútil. O pai de Aurélio é quem o desumaniza e esse fator é sentido pelo filho: sempre só, sentindo-se inferior aos colegas, como era ao irmão, colocando-se como uma coisa. Entretanto, aos olhos de Seu Coelho, o pai, ao desumanizar o filho, desumaniza-se a si mesmo, torna-se um “matuto besta”, alguém que se mostra ruim, “sem coração”, até para alguém sangue do seu sangue, deixando o filho sem amparo durante a vida, a doença, a morte e a pós-morte, afinal, era só um “troço humano”. Já o outro filho é visto como um meninão, é reconhecido como filho, descendente de seu sangue, de suas qualidades. O vocábulo “meninão” mostra um carinho diferente da “besta” humana, dando uma sensação de características positivas como força, inteligência, esperteza e saúde.

A morte tem o poder tanto de sensibilizar as pessoas (visto que, muitas vezes, estas começam a ver as qualidades do morto que não eram percebidas enquanto estava vivo) quanto de libertar alguém para dizer o que realmente pensava, já que o morto não ouve mais. É o que acontece com quem estava próximo e quem estava distante, respectivamente. A morte considerada como o fim de tudo ou como uma passagem para a outra vida nos deixa apreensivos, tristes e de certa forma também nos mata, visto que arranca uma parte de nossa vida. Contudo, a morte de Aurélio parece ter vivificado a sua família, como se ele fosse um fardo pesado que ela, supostamente, já estava cansada de carregar; no entanto, o menino ficava o tempo todo no colégio.

Percebemos, por essa experiência, como Carlos se vê feliz em ter uma família que lhe confere amor e dedicação, mesmo que não fosse como desejava, mesmo que não fosse de sua mãe, assassinada pelo pai preso num sanatório e agora também morto, pois, apesar de ser órfão, tinha o avô, o tio Juca e a tia Maria. Observamos, a partir de Doidinho, que não é somente a escola que pode desumanizar os alunos, a família pode, igualmente, e o faz.

3.4. O engenho e a igreja no processo de formação de Carlos

A partir da experiência de solidariedade vivenciada com Coruja, Carlos começa a crer em Deus. Porém, somente quando se inicia no catecismo é que tem acesso aos dogmas católicos, os quais divergiam da vida patriarcal do engenho e da idéia que tinha sobre Deus: um ser justo que, no julgamento final, pesaria numa grande balança os atos bons e os ruins, o lado mais pesado é que diria aonde a pessoa iria, para o céu ou para o inferno. Com o novo ensinamento, seus valores entram em conflito: em quem acreditar, na Igreja ou no Patriarca (avô Zé Paulino)? Assim, veremos algumas experiências, vivenciadas por Carlos na igreja e no engenho, em que os conflitos surgem ou se desenvolvem e, também, como a escola os influencia.

3.4.1. A igreja

A primeira vez que o colégio de Seu Maciel foi à missa, o frade – num tom manso que fazia os presentes, segundo Carlos, tomarem-no como verdadeiro e ter fome daquelas palavras – pregou diretamente aos alunos:

Jesus amava os meninos porque eles eram a virgindade da vida. Eram a inocência, a alegria feliz, a alma limpa de culpa e de pecados. Mas nem todos os meninos eram assim [...], havia rosas sujas de lama, rosas imundas, emporcalhadas pelo mundo. Mas quem deixara os porcos invadirem o jardim do Senhor? Os pais, as mães, os educadores. [...] Procurem os colégios, entrem nos lares de hoje, e é Deus que falta em tudo, ou é Deus que é ali mesmo esbofeteado sacrilegamente (REGO, 1969, p. 36).

A educação, como mostra o trecho, é função da igreja, da família e da escola e, nestes dois ambientes, Deus deve estar sempre presente, caso contrário, as crianças são corrompidas pelo pecado. De acordo com o frade, Jesus ama a virtude, a inocência, a limpidez da alma. Porém, quando esta é manchada pelo pecado, ignorância, gula, luxúria, egoísmo do mundo,50 Ele deixa de amá-la e quem perde seu amor queima eternamente nas chamas do inferno. Em outras palavras, a rosa que seria a taça da vida, a alma, o coração, o amor e o símbolo do