• Nenhum resultado encontrado

1.2. Programa Ética e Cidadania: construindo valores na escola e na sociedade

1.2.2. Módulo: Convivência Democrática

O segundo módulo, Convivência Democrática, tem como tema, além do próprio título, a disciplina, a paz, a relação dialógica, entre outros. Seu objetivo é trabalhar a reflexão e a construção das relações interpessoais democráticas, entre as quais incluem o diálogo e a resolução pacífica de conflitos, o abandono das relações autoritárias, violentas e indisciplinadas e, por conseguinte, a construção de valores democráticos. Fatores igualmente necessários à “construção de uma sociedade mais justa, solidária e feliz” (BRASIL, 2007, p. 8).

Para alcançar a finalidade acima descrita, propõe a criação de assembléias escolares e grêmios estudantis; atividades que enfocam a resolução e a mediação de conflitos, para que os participantes da comunidade escolar “mantenham os comportamentos em níveis democraticamente aceitáveis” (BRASIL, 2007, p. 8); estratégia de aproximação entre escola, família e comunidade. Visando ao melhor entendimento do tema proposto, apresenta um texto explicitando o funcionamento, características e pontos positivos da assembléia e um relato de

experiência, afirmando ser uma proposta viável, bem como um vídeo e atividades pedagógicas.

Observamos que o título do primeiro fragmento: A participação escolar como diálogo e ação cooperativa, de Josep Puig, antecipa o que será tratado: diálogo e ação. O diálogo tem como objetivo estabelecer acordo e normas, planejar o trabalho escolar, opinar, confrontar pontos de vista diferentes, analisar fatos de modo a ampliar a própria perspectiva sobre os temas debatidos, compreender o outro (ponto este ressaltado pelo autor, devido ao viés psicológico que aborda a moral neste e em outros trabalhos) e criar responsabilidade, entendida como comprometimento que resulta em ação. A ação cooperativa refere-se à prática de rotinas, acordos e tarefas combinadas nos momentos de debate, bem como projetos mais amplos como passeios e festas. O diálogo e a ação, segundo Puig, são essenciais para a tomada de consciência do funcionamento e sistematização da instituição escolar e tal conscientização é indispensável à sua transformação.

O texto de Puig explica o funcionamento de uma assembléia de docentes e de discentes e a caracteriza como um espaço e tempo que serão destinados ao diálogo sobre temas pertinentes à convivência e ao trabalho pedagógico, com o propósito de melhorá-los. A função dos educadores seria a de facilitar a comunicação, regulá-la e apresentar as informações e as questões a serem debatidas. O autor ainda atribui às assembléias o papel de formação moral dos alunos, uma vez que “são momentos úteis como meio para construir capacidades psicomorais e para transmitir atitudes e valores” (PUIG, 2000, apud BRASIL, 2007, p. 17, grifo nosso).

Recorremos ao dicionário eletrônico (Aurélio, 1994) para compreender as possíveis acepções da palavra em destaque - transmitir:

1. Mandar de um lugar para outro, ou de uma pessoa para outra; expedir, enviar;

2. Fazer passar dum ponto ou dum possuidor ou detentor para outro; transferir;

3. Deixar passar além; conduzir, transportar; 4. Exalar, recender, trescalar;

5. Comunicar por contágio; propagar;

6. Telec. Enviar (informações) por meio de ondas eletromagnéticas. 7. Teor. Inf. Emitir (sinais) através de um canal de comunicação.

Ao utilizar o termo transmitir, Puig, ou o seu tradutor, constrói um sentido de expedir, transferir, contagiar; ações que não provocam uma transformação nem envolve um processo. No parágrafo seguinte, ele se contradiz ao apontar alguns valores a serem trabalhados (respeito às diferenças, amizade, confiança ou responsabilidade), pois trabalho pressupõe

esforço físico e intelectual, determinação para se atingir o fim almejado. No entanto, logo em seguida, expõe novamente a idéia de transmissão quando diz que as assembléias contribuem para “a aquisição7 de atitude e valores” (PUIG, 2000, apud BRASIL, 2007, p. 18) e não. Por exemplo, uma capacidade de refletir sobre estes e optar por sua própria atitude e valor. Contrapondo-se ao método da transmissão, Mantoan (apud, BRASIL, 2007, p. 24), no texto Ensinando a turma toda, inserido no quarto módulo do Programa, afirma que para efetivar a inclusão “é preciso passar de um ensino transmissivo para uma pedagogia ativa, dialógica, interativa, conexional, que se contrapõe a qualquer visão unidirecional, de transferência unitária, individualizada e hierárquica do saber”.

A educação ética, segundo Puig, no tempo e espaço da assembléia, se dá por meio da transmissão-aquisição de valores e atitudes mediante o diálogo. A grande ênfase atribuída ao diálogo nega qualquer possibilidade de discordância, pois os indivíduos são levados a adotar uma única opinião, considerada, então, a superior. Mas será esse acordo sempre necessário ou mesmo possível? A dissonância faz a sociedade progredir em termos de conhecimento, uma vez que o acordo pode, muitas vezes, estagná-lo. Nesse sentido, o diálogo na escola seria imprescindível para manter a disciplina e a boa convivência, mas não para construir conhecimento.

Em suma, Puig salienta a construção do eu e do sujeito, ao enfatizar a necessidade de se colocar no lugar do outro (sentimento que ajuda na compreensão do outro e de si), de dialogar, compreender, relacionar, opinar, defendendo sua opinião e buscando o conhecimento. Além disso, enfatiza as atitudes e os valores relacionados à vida pública e política, porém, trata-os, contraditoriamente, como transmissão-aquisição.

Antes de apresentar o segundo texto, os elaboradores destacam uma característica da escola de qualidade: “deve transformar os conflitos cotidianos em espaços autônomos de reflexão e ação, permitindo que alunos e alunas enfrentem, autonomamente, a gama de conflito pessoais e sociais do dia-a-dia” (BRASIL, 2007, p. 41).

Ao abordar os conflitos no âmbito pessoal e social, os elaboradores conferem importância à formação da consciência psíquica, ética e política. A primeira envolve os sentimentos e emoções desencadeados pelos conflitos ou vice-versa; a segunda pressupõe uma análise da situação e escolha autônoma da melhor opção para si e para o outro e a última

7 A aquisição pressupõe a capacidade de reagir a determinados estímulos e reter seus resultados, por isso ela é

tende a defender os interesses comuns da comunidade escolar fundamentadas em seus direitos e deveres legais.

Podemos acrescentar, também, o caráter epistemológico em resolver conflitos de forma comunicativa e criativa, pois é por intermédio dos desentendimentos que o conhecimento se transforma e progride. Como é o caso da seguinte situação: uma pessoa é contra determinada opinião; ao construir, organizar e expor seus pensamentos ao outro, pode ajudá-lo a rever sua própria posição, desistir, melhorar ou afirmá-la e um terceiro indivíduo pode unir determinados aspectos das duas posições e criar algo novo e assim sucessivamente, sem, no entanto, a obrigação de acordar uma única posição.

O texto A resolução de conflitos e o convívio escolar, de Sastre e Moreno, chama a atenção para a dicotomia entre cognição e emoção feita pelas escolas ao destacar o mundo da ciência e da tecnologia, atribuindo uma preocupação menor ao autoconhecimento e às relações interpessoais. Diante dessa constatação, as autoras fundamentam a importância da educação emocional no âmbito escolar, uma vez que o descontrole das emoções é, muitas vezes, a base dos conflitos, tornado-se essencial conhecê-las para resolvê-los racionalmente. Conhecer os sentimentos e emoções requer um trabalho cognitivo: ter noção acerca dos estados, das causas e dos resultados das nossas emoções, o que pode ser nomeado de autoconhecimento. Os conflitos são inerentes à vida em sociedade, o que reforça a necessidade de resolvê-los e não de bani-los, de tentar descobrir suas origens e não de se concentrar em suas manifestações imediatas. Para tanto, é importante se desprender um pouco do ponto de vista individual e adotar o do outro ou outros diferentes.

Considerando, então, a importância de saber lidar com situações conflitantes, as autoras propõem atividades para o Ensino Fundamental e Médio pautadas na epistemologia genética,8 com a finalidade de habituar os alunos a “refletir de maneira adequada sobre os conflitos”. Para tanto, elas sugerem a resolução de conflitos em histórias fictícias, em que os alunos teriam que diferenciar e desvendar suas causas e manifestações, considerar os sentimentos das pessoas envolvidas e as conseqüências de cada solução proposta para os conflitos de modo a antecipar seus resultados. Tal aprendizagem é assinalada como um importante reforço da personalidade.

8 “A epistemologia genética examina os processos de construção do conhecimento científico através dos tempos,

em diferentes sociedades e diferentes áreas do saber, ao passo que a psicologia genética dedica-se ao exame dos processos de construção dos instrumentos de raciocínio infantil e das formas de reconstrução do mundo (social e da natureza) com o auxílio desses instrumentos”. A epistemologia genética tem como suporte empírico e experimental os resultados da psicologia genética, pois “seria incompreensível e inexplicável se não pudéssemos recorrer aos mecanismos de reprodução do conhecimento nas diferentes disciplinas científicas” (FREITAG, 1992, p. 169).

Resumidamente, podemos dizer que o texto A resolução de conflitos e o convívio escolar privilegia a formação do eu e da pessoa, uma vez que destaca a formação da consciência individual, o autoconhecimento em relação aos sentimentos e emoções. Esses fatores possibilitam certo autocontrole que contribui para as relações interpessoais, visto que se aprende a refletir sobre a origem dos problemas e as maneiras de resolvê-los e os seus possíveis resultados. A atividade proposta também inclui a dimensão epistemológica e política da consciência/vida, já que o diálogo é a base da democracia e, quando acrescido de problematização, gera conhecimento.

Para enfatizar os bons resultados que a implementação da assembléia escolar poderia trazer, os elaboradores fazem uso da pesquisa As mudanças nas relações humanas a partir das assembléias, relatada por um deles, Ulisses F. de Araújo, e desenvolvida em escolas do primeiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental que aderiram ao projeto. Segundo o autor, as mudanças foram visíveis, tanto na relação professor-aluno, quanto na relação professor- professor. Construiu-se respeito por meio do diálogo, da criação conjunta de regras, da solidariedade que extrapolou limites escolares para o convívio familiar.

É o que também pudemos perceber pelos relatos transcritos e destacamos entre nossas observações o seguinte: o que antes era feito sob ameaças, agora se dá pelo diálogo, fator essencial para a melhoria da relação, pois, enquanto aquele suscitava a raiva e a inibição, este provoca a reflexão sobre os atos, a abertura para falar e ouvir, a resolução de conflitos sem a punição e o respeito pelos demais. Mas será que isso ocorreu devido à constituição da própria assembléia ou devido à longa convivência que esses alunos9 têm com seus professores, a qual possibilita a construção de uma relação afetiva, auxiliados pelo desconhecimento de outro sistema de ensino em vigor na maioria das instituições, em que o professor deve ter como pré- requisito para ser contratado “saber controlar” a sala?

Acreditamos que a criação de assembléias pode ser, sim, um espaço para incentivar a participação dos alunos, porque foge do contexto da sala de aula, no qual são moldados a sempre ficar calados e sentados (ser controlados) ou reclamar seus direitos sem ao menos pensar nos seus deveres. O diálogo proporciona o respeito pelo diferente, certa autonomia quanto às escolhas e decisões, ou seja, além de repercutir na democracia (esfera coletiva) reflete, do mesmo modo, na moral (esfera pessoal). Por isso, pensamos que o diálogo deve fazer parte do cotidiano escolar e não apenas de um espaço artificial e momentâneo.

9 O autor enfatiza que a assembléia foi “testada” na educação infantil e é nela que se mostrou “eficaz”

Ademais, neste módulo, Convivência Democrática, o Programa propõe como espaço de reflexão e discussão, além do Fórum, o exercício da assembléia, que listaria os pontos positivos e negativos da escola, sempre visando a melhorá-los. Com o vídeo, o Programa continua a discussão do tema para depois inserir as assembléias na sala de aula e na escola como um todo.

Destacamos que as assembléias, ao priorizar a regulamentação do convívio e as relações interpessoais no que se refere às regras, são mais voltadas à política no sentido de governo democrático (como sugere o título do módulo). A assembléia, do mesmo modo, está intimamente relacionada ao âmbito da ética definida no primeiro módulo como princípios abstratos e como um “eterno pensar, construir e refletir”, uma vez que são esses princípios que fundamentam as regras.

A segunda atividade deste módulo é referente ao texto Convivência democrática: a resolução de conflitos e o convívio escolar e procura solucionar conflitos listando os mais freqüentes e levantando hipóteses de como poderiam resolvê-los. Nas aulas, os alunos desenhariam ou descreveriam uma situação de conflito por eles vivenciada com o objetivo de o professor descobrir os problemas freqüentes da turma e elaborar estratégias para ajudá-la a compreender os motivos e a estudar possíveis soluções.

Observamos que, ao propor um exercício fundamentado no diálogo, como é a assembléia, há a explicitação dos seus benefícios, o que não ocorre quando a atividade é artística. Por que desenhar ou narrar um acontecimento? Para o professor conhecer os conflitos comuns, funcionando como auxílio na mediação e intervenção docente, seria uma resposta suficiente? Acreditamos que não, pois a obra artística é expressão de tudo que envolve a vida, seja sentimentos, acontecimentos, observações ou reflexões tanto de si, quanto dos outros e do mundo; engloba inclusive os conflitos tanto emocionais e valorativos de um mesmo ser, como de idéias, crenças e objetivos de vida de diferentes seres de um mesmo lugar ou de locais diversos. A obra artística também é um instrumento poderoso de rememoração que ajuda os indivíduos a reverem atitudes, valores e emoções, contribuindo, por exemplo, para não reincidir em erros já conhecidos.