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Ao im dos anos 1970, a aglomeração parisiense ainda mostrava ganhos de população e de super- fície urbanizada, embora já em andamento decli- nante. Ao mesmo tempo, na Paris intramuros a população decaía, a despeito do aumento da den- sidade construída. E sua participação relativa no todo da metrópole diminuía consideravelmente312. Desde os anos 1950, um grande movimento de reconstrução e reconversão de usos* vinha dando corpo a essa transformação da área mu- nicipal.313 Áreas de instalações industriais e de ocupação precária (os chamados îlots insalu-

bres), localizadas em sua maioria nos bairros da

“coroa periférica”, das regiões nordeste, leste e sul (junto às margens do Sena), foram inteiramen- te modiicadas. As áreas reconstruídas foram convertidas para uso comercial, habitacional de renda alta (com maior consumo de m2 por habi- tante) ou para parques e grandes complexos de cultura e lazer, o que explica o saldo negativo de população314. Além do efeito demográico, o conjunto de intervenções resultou em uma “ho- mogeneização do nível de qualidade do parque imobiliário de Paris”315.

Na banlieue, a ocupação tem alguns aspec- tos a assinalar. Além do desenvolvimento das novas cidades criadas por conta dos SDAUs e da provisão habitacional estatal, ela foi acompa- nhada pela construção de uma vasta infraes- trutura rodoviária, que permitiu a incorporação de novas terras (em geral mais afastadas do sis- tema ferroviário e em terrenos mais altos).

Destaca-se também a instalação de gran- des equipamentos públicos e privados nessa área: universidades, centros comerciais, ae- roportos (primeiro Le Bourget, depois Orly e Roissy-Charles de Gaulle), parques de diversão (Asterix e Eurodisney), além do centro de abas- tecimento central, que foi transferido de Les Halles para Rungis.

No plano institucional/administrativo, ocorreu mais uma alteração na delimitação da área metropolitana. Em 1976, o Distrito da Região Parisiense foi abolido e um novo nível administrativo, mais abrangente, foi deinido – a Région d’Île-de-France. Um conselho regional, composto de parlamentares e representantes locais, foi instituído316. Em relação às demais

312. A proporção da Paris intramuros em relação à aglomeração como um todo, na década de 1940, era de 6% da superfície, 47% da população e 60% dos empregos. Em 1993, essas mesmas porcentagens eram de 4%, 47% e 45%, respectivamente. Bastié, 1993, p. 635.

313. Entre 1945 e 1993, o saldo construtivo (soma da área construída, deduzida a área demolida) das ediicações públicas e privadas foi de 20 milhões de m2, fazendo a

área municipal passar de 120 milhões de m2

para 140 (sem contar a construção dos subsolos). Ibid., p. 644.

314. As áreas de reconstrução realizada pelo Estado foram deinidas sob uma igura especíica de planejamento urbano – as Zone d’Aménagement Concertées (zacs). Para citar alguns exemplos de zacs mais notórios: dentre os que viraram parques, La Villette e o Parque André Citroën (no lugar da fábrica de automóveis) são os mais famosos; dentre os de áreas de reconversão, Italie-Masséna. As zacs faziam parte de um conjunto de instrumentos de planejamento para diminuir as diferenças entre o leste e o oeste.

315. Bastié, op. cit., p. 643. 316. Ibid., p. 644.

regiões da França, a Îile-de-France, embora em mesmo ní- vel da hierarquia administrativa, está sob maior inluência

do governo nacional.

Em 1982, com a aprovação da Lei da Descentralização317, as regiões começaram a ter maior participação no gover- no local, seguindo as disposições estabelecidas para a Comunidade Europeia pelo Tratado de Roma. O governo local metropolitano passou a ser exercido, portanto, por um sistema misto de três camadas – regional, departamental e municipal – e todas eram subordinadas ao governo nacional, principalmente na Région d’Île-de-France 318.

Cada um dos três níveis (regional, departamental e mu- nicipal) era regido por um conselho próprio, dirigido por um presidente eleito internamente, e as municipalidades pas- saram a contar com um prefeito eleito (maire). Entretanto, o governo nacional exercia seu controle sobre os níveis locais por meio de seus representantes – delegados indicados (pré-

fets319) para as regiões e os departamentos320. A atribuição de planejamento urbano (seja em que escala for) é compartilha- da entre os níveis locais e o nacional, porém com preponde- rância desse último.

Em 1994, foi publicado o Schéma Directeur de la Région de d’Île-de-France (SDRif), o principal plano no âmbito dessa região. Foi produzido por agências locais do governo nacional em associação com a administração de nível regional. Sua

317. Que estabeleceu a representatividade do Conselho Regional por eleição direta e compartilhamento de atribuições que eram exclusivas do governo central. Embora com maior participação, o Conselho continuava subordinado ao governo central e com escopo de atuação restrito. Para ter uma ideia, o orçamento da Région d’Île-de-France a essa época correspondia a cerca da metade do orçamento do município de Paris.

318. No caso da Île-de-France, a região é dividida em oito departamentos. A área que abriga a maior concentração da população e a maior parte da área urbanizada contínua (aproximadamente equivalente ao ex-distrito) é composta de quatro departamentos: Paris (uma exceção, por ser, ao mesmo tempo, municipalidade

e departamento), Seine-Saint-Denis, Val-de-Marne e Hauts-de-Seine. Os quatro restantes, bem menos adensados e de urbanização mais dispersa, são: Val-d’Oise, Yvelines, Essonne e Seine-et-Marne. London Research […], 1998, p. 59-65.

319. Para evitar qualquer confusão, cabe uma observação. Em francês, a palavra

préfet é associada ao governante local

que é nomeado pelo governo nacional e a ele é subordinado. O termo maire é o que tem o mesmo signiicado de prefeito em português, vale dizer, o chefe do executivo em nível local, eleito (e não nomeado). 320. Outro caráter de exceção da Région d’Île-de-France é que o préfet regional também é o delegado de Paris. London Research […], op. cit., p. 60.

principal intenção era “conciliar o policentrismo esboçado pelas novas comunas – e completa- do pelo desenvolvimento das comunas mé- dias – com o planejamento dos espaços rurais a preservar”321. A proposta em si se baseia no estabelecimento de linhas de força para reforçar a ligação das cidades novas com a área média e central da aglomeração e com os aeroportos, impedindo a ligação entre elas que custaria a destruição das áreas de preservação.

No setor de transporte urbano, a ação esta- tal está inscrita nessa mesma estrutura, porém com subordinação ainda maior ao âmbito na- cional. Embora em aglomerações menores mu- nicipalidades possam se constituir em autori- dades de transporte próprias, em Îile-de-France esse papel é exercido e controlado pelo governo nacional322. As organizações locais de planeja- mento e operação também estão subordinadas ao âmbito nacional.

Juntos, os ministérios (nacionais) de Transporte e de Finanças tem a atribuição de planejamento e inanciamento do transporte ur- bano. Também exercem tutela sobre as compa- nhias nacionais que coordenavam a operação

dos serviços – na Île-de-France, a RATP e a SNfc. A partir de 1991, o Syndicat des Transports Parisiens teve seu escopo de atuação amplia- do para o âmbito regional e foi transformado no Syndicat des Transports d’Île-de-France

321. Pinon, 2009, p. 17.

322. London Research […], op. cit., p. 59. [ig. 2.52] Schéma Directeur de la Région d’Ile-de-France - Plano Diretor da Região de Île-de-France (SdriF), 1994.

(STif). É controlado por um comitê constituído por representantes dos departamentos e do go- verno nacional (este, com 50% dos membros). É a instância que centraliza o planejamento em nível metropolitano, em compatibilida- de com o planejamento urbano no nível da região metropolitana.

A operação do transporte urbano na região é dividida entre a RATP, que responde por cerca de 75% do volume de passageiros e opera as re- des de metrô, RER e ônibus; a SNfc, que opera os trens metropolitanos e de longa distância (ditos “suburbanos” e “regionais”) e detém 17% do volu- me transportado; e, inalmente, um conjunto de pequenas companhias privadas, agrupadas em duas associações, sob tutela do STif, que operam serviços complementares sobretudo na área de urbanização mais dispersa e se responsabilizam por 8% da operação323.

Na primeira década do século XXi, a meta de planejamento urbano (e de transportes) a ser perseguida pelas autoridades competen- tes é bem clara: maior comprometimento com o uso racional dos recursos energéticos e um ordenamento espacial capaz de disciplinar a

ocupação e, ao mesmo tempo, manter as áre- as de preservação. Para isso, fazem-se neces- sárias duas medidas: a) o fortalecimento dos subcentros da aglomeração; e b) a diminuição da participação do transporte individual, que cresceu demasiadamente na segunda metade do século XX.324 Ambas são condicionadas, em grande medida, pela efetivação de investimen- tos em transporte coletivo de massa capazes de preencher uma lacuna há tempos conhecida: possibilitar a conexão entre as diversas porções da banlieue (bairros, subcentros etc.).

É justamente no conjunto dos deslocamen- tos banlieue-banlieue que se dá a maior parte das viagens do transporte individual. Enquanto no modo rodoviário a provisão da infraestrutura para esse tipo de deslocamento já vinha ocor- rendo desde os anos 1960 – quando se iniciou a construção da série de anéis viários expres- sos da metrópole parisiense325 –, no âmbito dos transporte coletivo de massa isso ainda está por ocorrer. Os investimentos em modos ferroviá- rios foram destinados quase exclusivamente ao atendimento do acesso ao centro. Com exceção de dois ramais do RER (um da linha C e outro da

323. Dados de 1998. Ibid. 1998, p. 62. 324. A intenção de refrear o uso do carro se apoia não só no baixo desempenho energético dos automóveis como também no tipo de urbanização, de baixa densidade, que seu uso acarreta e promove.

325. As autoestradas circulares foram uma constante nos planos metropolitanos. As três que foram (ou estão sendo) implantadas são: o Boulevard Périphérique, construído entre 1956 e 1973; a A-86, construída entre 1968 e 2011; e a A-104 (a Francilienne), ainda em construção.

linha E, ambos implantados na última década do século XX), a rede metroferroviária fora da área central (a ‘intramuros’) é totalmente radial. É evidente que, mais do que qualquer polí- tica de incentivo ou desincentivo ao uso do au- tomóvel, a estrutura da oferta de transporte co- letivo (em nível de qualidade razoável para bom) é o fator mais determinante da divisão modal.

Que a rede de transporte de massa da aglo- meração parisiense é voltada principalmente para o atendimento das viagens ao ( e no) centro metropolitano ica explícito ao se analisarem os dados de circulação da metrópole326. De um total de 765 mil viagens da banlieue (zonas 2 e 3) ao centro metropolitano (zona 1) no pico da manhã, 17% eram realizadas por automóveis; 75% pelos sistemas ferroviários somados (metrô, RER e Transilien); 6% por ônibus; e o restante, 2%, por motocicleta e outros modos. Para o total diário, a proporção do automóvel aumenta para 28% (660 mil viagens, contra 1,6 milhão dos modos coletivos)327. Nos deslocamentos banlieue-ban-

lieue, contudo, esse panorama se invertia. De um

326. Dados encontrados em um estudo comparativo de transportes de 2008, que considerava apenas as viagens motorizadas. O estudo divide a região de Île-de-France em três zonas: a zona 1, que é a de maior concentração de empregos, dentro do perímetro do Fermier Généraux, que chamamos de “centro metropolitano”; a zona 2, a mais adensada da aglomeração, que abriga cerca de 90% da população; e a zona 3, a vasta área de urbanização dispersa. London Research […], 1998.

327. Dados de 2008. Ibid., p. 166-168 328. Dados de 2008. Ibid., p. 172-173.

total de 12,7 milhões de viagens internas à zona 2 (o grosso da metrópole excluindo o centro), 9,4 milhões eram realizadas por automóveis (75% do total)328. Isso explica a contribuição elevada (de 65%) do transporte individual no total dos deslocamentos metropolitanos (10,9 milhões, contra 4,4 milhões por modos ferroviários e 1,6 milhão por ônibus).

Portanto, de um universo de 11 milhões de viagens de transporte individual da aglomera- ção urbana, mais de 90% é de deslocamentos que não tem o centro metropolitano como des- tino. Fica evidente que, uma vez assegurada a oferta de transporte coletivo para o acesso ao centro metropolitano, a tarefa que resta ao pla- nejamento de transportes da aglomeração pari- siense no início do século XXi é o atendimento, se não de todo, ao menos de boa parte, dos desloca- mentos periferia-periferia. Que é, justamente, a maior fatia do tráfego. Enquanto as viagens ao centro são da ordem de 2,3 milhões, as viagens que não tem o centro como destino somavam 16,9 milhões.