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Ação Pedagógica

No documento PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO (páginas 150-156)

Os modus operandi dos conceitos de ação pedagógica (AP) e autoridade pedagógica (AuP), desenvolvidos por Bourdieu, remetem ao campo da Educação. Entretanto, neste trabalho, tais conceitos serão ampliados para o desenvolvimento da análise que envolve a questão da aculturação no seio das comunidades indígenas. Embora outros conceitos pudessem ser utilizados para analisar os problemas gerados pela

3 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 14. 4 Ibid., p. 11.

aculturação, julgamos que, tanto a ação quanto a autoridade pedagógicas, atendem melhor aos nossos objetivos.

Sob esse prima, analisaremos a pedagogia missionária que foi implementada pela Companhia de Jesus e outras instituições religiosas que trabalharam junto às tribos brasileiras.

As ações pedagógicas a serviço da violência simbólica fazem-se sentir no seio das mais variadas instituições:

[...] em universos sociais tão diferentes como a Igreja, a escola, a família, o hospital psiquiátrico ou mesmo a empresa e o exército, tendem todas a substituir à ‘maneira forte’, ‘a maneira doce’ (métodos não directivos, diálogo, participação, human relations, etc.) faz ver, com efeito, a relação de interdependência que constitui em sistema as técnicas de imposição da violência simbólica, características do modo de imposição tradicional assim como aquele que tende substituir-se a ele na mesma função6.

Segundo Bourdieu, mediante as ações pedagógicas que a classe dominante exerce o poder de reprodução de seus mecanismos de controle sobre a classe dominada, mecanismos estes que objetivam, sobretudo, “assegurar o monopólio da violência simbólica legítimo”7, exercidos pelas instituições também legitimadas pela estrutura de poder instalada no seio da sociedade.

No discurso de José Bonifácio, a autoridade pedagógica (AuP) que deveria legitimar as ações propostas em seus “Apontamentos...”, originar-se-iam das instituições religiosas e militares. Os valores religiosos europeus que deveriam ser inculcados na cultura indígena seriam transmitidos pela Congregação São Felipe Neri em substituição aos trabalhos, que até então vinham sendo realizados pelos missionários jesuítas. Quanto

6 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 39. 7 Ibid., A reprodução, p. 25.

aos valores militares, deveriam eles complementar os trabalhos dos religiosos, além da introjeção dos valores cívicos necessários à defesa e à manutenção da unidade nacional.

José Bonifácio acreditava que as instituições religiosas e as militares pudessem servir de canal de comunicação entre os interesses do Estado e as comunidades indígenas, visto que sobre elas, ele depositou toda a esperança de disciplinar e civilizar os índios bravos do império do Brasil.

No que se refere ao processo educativo, Bourdieu afirmou que era papel da instituição escolar:

Inculcar pela educação implícita e explícita o respeito por disciplinas ‘lógicas’ tais como as que sustentam o sistema mítico-ritual ou a ideologia religiosa e a liturgia e, ademais, impor as observâncias rituais que, ao serem vividas como a condição de salvaguarda da ordem cósmica e da subsistência do grupo [...] significa [...] perpetuar as relações fundamentais da ordem social8.

Uma ação pedagógica é legitimada sempre por uma Autoridade pedagógica que, em seu exercício de violência simbólica, acaba por contribuir para a sedimentação dos valores da classe dominante, tornando-os quase universais em todos os segmentos sociais, dando origem, assim, àquilo que Bourdieu denominou de “capital cultural” daquela sociedade.

A existência de uma Autoridade pedagógica é condição sine qua non para que a ação pedagógica possa fazer sentir os efeitos desejados de sua violência sobre a sociedade. Por isso, Bourdieu evoca o paradoxo de Epimêmides:

[....] ou acreditais que não minto quando vos digo que a educação é violência e o meu ensino não é legítimo, logo não podeis acreditar-me; ou

acreditais que minto e o meu ensino é legítimo, logo não podeis mais acreditar naquilo que digo, quando digo que ela é violência9.

Nesses temos, fica evidenciado que todas as propostas cívico-educativas de José Bonifácio, convergiam para a aplicação da violência simbólica, acrescida de violência física, originada nas intenções de aldeamentos dos índios, pois além de propor a instituição de uma educação utilitária, voltada para o aprendizado de interesse comercial – ler, escrever, fazer contar, artes e ofícios –, revelava-se também doutrinária em sua essência ético-religiosa, caracterizando assim uma violência contra os valores culturais indígenas.

Essa idéia de doutrinação não é exclusividade de José Bonifácio, porque ela encontra-se no último capítulo do “Diretório dos Índios”, que assim se expressa:

Deste modo se conseguirão sem dúvida aqueles altos, virtuosos, e santíssimos fins, que fizeram sempre objeto da Católica piedade, e da Real beneficência dos nossos Augustos Soberanos; quais são; a dilatação da fé; a extinção do Gentilismo; a propagação do Evangelho; a civilidade dos Índios; o bem comum dos Vassalos; o aumento da Agricultura; a introdução do Comércio; e finalmente o estabelecimento, a opulência, e a total felicidade do Estado10.

A questão doutrinária foi abordada por Bourdieu que propôs duas alternativas como resolução desse problema vinculado ao ensino:

[...] o ‘relativismo cultural’, i.e., o caráter arbitrário de toda a cultura, a indivíduos que já foram educados conforme os princípios do arbítrio cultural dum grupo ou [...] dar uma educação relativa, i.e., produzir

9 P. Bourdieu J-C Passeron, A reprodução, p. 32-3.

realmente um homem cultivado que fosse o indígena de todas as culturas11.

A legitimidade da ação pedagógica encontra-se no fato de que à classe dominada não é dado perceber, que a tomada de consciênciade sua própria força seria o mecanismo- chave para romper os grilhões, que a mantém vítima do poder da violência simbólica, que age sobre o seu corpo social. Sob esse prisma, a correlação de forças entre a sociedade segmentária indígena - como a classe dominada - e o dominador europeu, o pensamento de uma tomada de consciência por parte dos índios acaba tornando-se tarefa meramente especulativa. Isto porque seria necessária a existência de uma instituição que pudesse assumir de fato as atribuições de uma autoridade pedagógica (AuP), que pudesse conscientizar os seus membros da idéia de sua supremacia cultural, numérica e tático- guerreira. Em princípio, a Confederação dos Tamoios pareceu cumprir este papel, entretanto só existiu enquanto perdurou como mecanismo de interesses comerciais, que envolveram os portugueses e os franceses, jamais os interesses das tribos confederadas.

A violência simbólica pode manifestar-se em forma de técnicas, coercitivas e/ou psicológicas, e sanções corporais físicas (chantagens, uso de réguas, cascudos, palmadas), e até mesmo o uso intensivo de imposição dos traços culturais da classe dominante, fazendo com que os valores da classe dominada pareçam impotentes perante os da classe dominante. Daí a afirmação de Bourdieu para quem:

[...] toda a AP em exercício dispõe, por definição, duma AuP, os emissores pedagógicos são logo designados como dignos de transmitir o que transmitem, autorizados pois, a impor a recepção e a controlar a inculcação por sanções socialmente aprovadas ou garantidas12.

11 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 33. 12 Ibid., p. 42.

Por isso, o efeito de uma ação pedagógica (AP) é tanto maior quanto se aplica a grupos ou classes mais dispostas a reconhecer a autoridade pedagógica (AuP) que a impõe. Assim, conclui-se que a legitimidade de uma ação pedagógica (AP) nada mais é que a “imposição do arbítrio cultural dominante”.13 O arbítrio cultural é fundamentado basicamente nos atos mais simples que nos foram introjetados ao longo de nossa formação cultural, a partir das instituições formadoras dos aparelhos ideológicos e repressivos do Estado. Foi justamente este arbítrio cultural que foi imposto sobre as sociedades indígenas do Brasil, mediante as Cartas Régias, Leis, Alvarás, Portarias, Regimentos, Provisões ou Diretório, mediante as propostas contidas nos “Apontamentos...” de José Bonifácio, tais como: casas de branco, roupas de branco, nomes de branco, calças, camisas, jaleco largo à chinesa, jogos de bola e barra, armas de fogo, tiro ao alvo etc... Ainda, em suas obras, José Bonifácio fez questão do uso de técnicas coercitivas, tais como: impedimentos nas brincadeiras, açoites com varinhas, tronco, dietas forçadas, exposição ao ridículo, exercícios repetitivos, exercícios de ginástica de luta, saltos, corridas etc., utilizando-se para isso dos aparelhos ideológicos de Estado, principalmente da escola, que, como sistema de ensino deveria “[...] contribuir para a reprodução da estrutura das relações de classe, dissimulando, sob as aparências da neutralidade, o cumprimento desta função”.14

Em todos os documentos, vemos claramente que o discurso da metrópole oferecia aos índios os meios técnicos de apropriação da cultura européia como forma de legitimá-la e torná-la assim a cultura dominante nos domínios do dominado ou a cultura do colonizador sendo apropriada pelo colonizado para legitimar a ilegítima cultura do colonizador.

A ideologia dos discursos oficiais do colonizador foi tão convincente que raríssimos foram os colonizadores que perceberam na equação dos benefícios subtraídos

13 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 44. 14 P. Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, p. 296.

dos colonizados, que ele foi o único beneficiado, pois segundo Albert Memmi “esses discursos são redigidos por ele, ou por seu primo, ou por seu amigo; as leis exorbitantes e os deveres dos colonizados, é ele que os concebe [...]15.

No documento PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO (páginas 150-156)

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