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Idéias Político-Filosóficas e Religiosas no Século XIX

No documento PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO (páginas 41-65)

IDÉIAS POLÍTICO-FILOSÓFICAS

E RELIGIOSAS NO SÉCULO XIX

A formação de naturalista de José Bonifácio na Universidade de Coimbra, bem como suas viagens de exploração e conhecimento pelos melhores centros de ensino europeu, lhe deram a oportunidade de estar em contato com o que havia de melhor em termos de produção científica e filosófica da época. A sua formação deu-se num período de efervescência política na Europa - de 1783, quando se matriculou na Universidade a 1800, quando retornou de suas viagens. Conforme exposto no Capítulo anterior, as excursões científicas que ele realizou proporcionaram-lhe conhecer vários centros de pesquisas e cientistas de renome, como: Fourcroy, Werner, Volta, Priestley, Chaptal, Haüy, Vauquelin, Duhamel, Jussieu, Le Sage, entre outros.

Além de ter conhecido vários laboratórios, ele teve a oportunidade de trabalhar com o que havia de melhor em termos de conhecimentos e equipamentos. Por meio de seus mestres ou por influência de amigos, ele teria sido introduzido no pensamento iluminista pelas obras dos mais eminentes filósofos de seu tempo, como Rousseau, Montesquieu,

Voltaire, Diderot, D’Alembert, Raynal, Buffon, Montaigne, Locke, Peine, Pope, Condorcet, Hume, Kant, Leibniz, Maquiavel, Newton, entre outros1.

Nesse Capítulo apresentamos alguns pensadores e suas idéias relativas ao homem americano, os quais julgamos importantes, pois deixaram as suas marcas não só nas propostas de José Bonifácio, mas também em muitos políticos e legisladores dos séculos XVIII e XIX: Raynal, Rousseau e Voltaire. Em seguida, apresentaremos e discutiremos alguns conceitos que têm lugar em muitos dos documentos sobre esse Capítulo. A seguir passaremos a expor e comentar as legislações sobre os índios do Brasil, nos períodos que abrangem da fase colonial ao reinado.

Somente conhecendo os conceitos de que se serviram os legisladores na formulação de seus artigos, podemos compreender as idéias e propostas expressas nos discursos de José Bonifácio encaminhados à Assembléia Legislativa. E, para conhecermos melhor o pensamento do autor, não podemos esquecer que ele foi o produto de uma época em que os novos conceitos não estavam restritos apenas às mentalidades de alguns iluminados, mas também se concretizavam em todos aos setores que se relacionavam ao homem, à natureza, ao trabalho, à religião, ao poder, à liberdade etc. Dessa forma, pode-se compreender melhor o texto de José Bonifácio a ser objeto principal do presente estudo, os “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil” 2.

Raynal, ou Abade Raynal, como é mais conhecido, foi membro da Companhia de Jesus até 1748. Desiludido com a Companhia, começou a freqüentar os famosos salões parisienses onde eram discutidas as propostas para uma nova sociedade. Neste ambiente, o

1 O. T. de Sousa, op. cit., p. 16 e seg.

2 Este último texto consta da obra organizada por Miriam Dolhnikoff, José Bonifácio: projetos para o Brasil,

1998, pp. 156-8. Considerando a extensão do título desse trabalho de José Bonifácio, sempre que nos referirmos a ele usaremos da expressão “Apontamentos...”, para diferenciá-lo de outro texto, também de José Bonifácio, denominado apenas “Apontamentos”.

Abade Raynal conheceu as idéias de Claude Adrien Helvétius, Paul Henri Dietrich, barão d’Holbach, Denis Diderot, Jean-Jacques Rousseau e outros.

Em 1770, Raynal publicou uma obra denominada Histoire philosophique et

politique des établissements et du commerce des européens dans des indes, na qual expõe suas idéias permeadas “de obras contemporâneas, como fez com o Senso Comum de Thomas Peine, Recherches philosophiques sur les Americains, de Cornelius Pauw, ou

Homme Mora,l de Levesque. E mescla Voltaire, Montesquieu, Helvétius, Holbach e Rousseau, plagiando todos à mão solta”3. Para o que nos interessa, um dos livros de sua

Histoire Philosophique diz respeito especificamente à colônia portuguesa na América e está intitulado: O estabelecimento dos portugueses no Brasil. 4

É importante o estudo das obras de Raynal, pois nela encontramos a idéia de se trabalhar a heterogeneidade étnica brasileira, a indolência e a questão das terras indígenas.

Conhecedor da situação em que se encontravam os índios – através das informações de “um dos homens mais esclarecidos que jamais viveu no Brasil”, Raynal critica a formação das aldeias, onde um chefe branco regulava todas as ações. Inicialmente favorável à liberdade dos índios, em detrimento da tutela defendida por José Bonifácio, Raynal dizia que “os índios que permaneceram senhores de suas ações na colônia portuguesa são muito superiores em inteligência e indústria aos que foram mantidos sob tutela perpétua”.

Atento ao processo de miscigenação que estava ocorrendo no Brasil, nas Províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, observava ele:

[...] os brasileiros miscigenaram-se aos portugueses e aos negros, e não mudaram o caráter, porque não se trabalhou para esclarecê-los, não se

3 L.R. de A. Figueiredo & O. M. Filho, “Prefácio”, in G-T. F. Raynal, A revolução na América, p. 3. 4 G. T-F. Raynal, Os estabelecimentos portugueses no Brasil, pp. 99-100.

tentou vencer sua indolência natural, não se lhes atribuíram terras e não se fizeram os avanços necessários que poderiam estimular sua emulação5.

Ou seja, Raynal deixou claro que seriam necessárias ações do governo para incentivar a integração dos mestiços levando à formação de “um só povo”6. A estas questões levantadas por Raynal - miscigenação, caráter e indolência foram objetos de José Bonifácio que, em “Apontamentos...”, imaginou poder homogeneizar as diferenças do povo brasileiro. Entretanto, lembramos que Raynal foi produto do progressivismo de sua época e, conseqüentemente, eurocêntrico, já que advogava a idéia clássica de um certo evolucionismo linear que julgava terem os povos civilizados sido, um dia, também selvagens. Esta idéia de homogeneização de Raynal será um dos objetos de José Bonifácio em seu projeto de civilização dos índios do Brasil.

Rousseau é possivelmente o filósofo que mais teve acolhida nas leituras de José Bonifácio. Em suas obras há sempre a idealização do selvagem americano nos modos de vida dos seus personagens. Segundo Afonso Arinos, o pensador francês foi sempre bem informado sobre o “Novo Mundo”, especialmente o que dizia respeito às descrições de viagens7, quer de Charles Marie de La Comdamine, Daniel Defoe, Samuel von Pufendorf, John Locke ou Michel Eyquem de Montaigne, sendo este último o mentor da idealização de “o bom selvagem“, idéia tão cara a Rousseau8.

Em Rousseau vamos encontrar não somente a idealização do homem do Novo Mundo, mas também o estilo de governo monárquico que ele imaginou em O Contrato

5 G. T-F. Raynal, Os estabelecimentos portugueses no Brasil, p. 99. 6 Ibid., p. 99.

7 Charles Marie de La Comdamine (1701-1774), naturalista francês, foi encarregado da chefia de uma

expedição científica à América do Sul entre 1735-1745, patrocinada pela Academia de Ciências de Paris. Sobre este assunto vejam-se Victor W. von Hagen, A América do Sul os chama, [1956], pp. 9-98; Daniel Defoe (1660-1731), escreveu Robinson Crusoé em 1719; Barão Pufendorf (1632-1694), jurista alemão, foi autor de O direito natural dos povos; John Locke (1632-1704), autor de O segundo tratado do governo civil, e Montaigne (1531-1592), autor bastante influenciado pelos relatos dos viajantes André de Thevet e Jean de Léry.

Social: “Vimos, através das relações gerais, que a monarquia só é conveniente aos vastos Estados”9.

Voltaire foi um rico e impetuoso burguês que devotou boa parte de sua vida em querelas filosóficas, despejando sua cólera contra a monarquia, em parte por causa de sua briga com o rei da Prússia, Frederico II. Também não poupou rancores contra Rousseau “cujo gênio ele, por ódio, nunca soube compreender”10.

Contrariando a corrente de Montaigne e Rousseau, os quais pintaram o selvagem americano com certa dose de ingenuidade e pureza, Voltaire pintou o selvagem e o seu mundo em cores obscuras através do filtro de Jean de Léry11 e André de Thevet12. Senão vejamos:

Il faut payer à nos voisins quatre millions d´un article, et cinq ou six d´un autre, pour mettre dans notre nez une poudre puante venue da l´Amérique; le café, le thé, le chocolat, la cochenille, l´indigo, les épiceries, nous coûtent plus de soixante millions par an13.

Na sua obra denominada Candide, Voltaire ridiculariza a tudo e a todos. Os seus personagens fazem um périplo pelo mundo, e quando chegam à América são postos em fuga do Paraguai para as terras brasileiras, quando então matam dois macacos que

9 J-J. Rousseau, O contrato social, p. 78. 10 A. A. de Melo Franco, op. cit., p. 163.

11 O calvinista francês Jean de Léry (1534- ? ), esteve no Rio de Janeiro de 1557 a 1558 como integrante

da esquadra de Nicolas Durant de Villegaignon. Durante a sua permanência no Rio, conviveu com os índios Tupinambás, tendo a oportunidade de observar os seus costumes, o que resultou na obra “Histoire d´un

voyage fait en la terre du Bresil autrement dite Amerique”, editada pela primeira vez em 1578. Ele achava

que os índios sequer poderiam ser considerados gente pagã, já que estavam situados aquém daqueles povos que, ao menos, foram politeístas. Ele via os cerimoniais indígenas como obras demoníacas, e nos maracás, instrumentos de possessão.

12 O frei capuchinho André de Thevet (1502-1590), cosmógrafo do rei francês Henrique II, viajou com a

esquadra comandada por Villegaignon, tendo permanecido no Rio de Janeiro entre 1555 e 1556. Também, como Jean de Léry, não reconhecia a religiosidade nos índios tupinambás, além de criticá-los por não conhecer os livros. Sobre o Brasil, ele publicou em 1557 “Lês singularitez de la France antartique”.

13 “É necessário pagar a nossos vizinhos quatro milhões por um artigo, e cinco ou seis por outro, para que

coloquem em nosso nariz um pó mal-cheiroso vindo da América; o café, o chá, o chocolate, a cochonilha, o

índigo, as especiarias, nos custam mais de sessenta milhões por ano”. Tradução nossa. Voltaire, “L´homme

mordiam duas índias, descobrindo depois que os símios eram os amantes das jovens14. Essas referências deixam claras as suas jocosas idéias sobre os índios.

Após tratar as idéias sobre o homem americano, presentes nos trabalhos de alguns pensadores do período que estamos estudando, vamos discutir alguns conceitos que merecem ser cuidadosamente aprofundados, pois, se mal interpretados, poderiam levar-nos a uma incompreensão total ou parcial da obra de José Bonifácio. Tais conceitos são: guerra justa, perfectibilidade e degeneração, civilização e, humanidade.

1. Guerra Justa

A “guerra justa” foi um pretexto para justificar legalmente a prática da escravidão e era “aplicada aos povos que, não tendo o conhecimento prévio da fé, não podem ser tratados como infiéis”15. Ela também poderia ser feita quando da recusa à conversão, quando houvesse alguma hostilidade aos vassalos ou aliados da coroa ou, ainda, quando houvesse a quebra de um pacto, o uso da antropofagia e também pela salvação da alma. Nestes casos a “guerra justa” deveria ser declarada por autoridades competentes, como o Rei ou a Igreja.

A expressão “guerra justa” encontra-se numa obra denominada Las justas causas

de la guerra, do espanhol Juan Ginés de Sepúlveda, impressa pela primeira vez em Roma no ano de 1550. Sepúlveda escreveu esta obra no contexto da pós-reforma luterana, no

14 Voltaire, Candide, 1994, p. 43

15 B. Perrone-Moisés, “Índios livres e índios escravos”, in: Manuela Carneiro da Cunha, org, História dos

intento de justificar as crueldades levadas aos extremos pelos espanhóis, durante as conquistas das terras do “Novo” Mundo16. Sepúlveda enumerou quatro condições para que uma guerra pudesse ser considerada justa: “Causa justa, autoridad legitima, recto animo e recta maneira de hacerla”17, o que passamos a detalhar em seguida.

a - Como causa justa Sepúlveda entendia: a superioridade cultural, o castigo aos malfeitores, a cobrança das coisas arrebatadas injustamente ou as do aliado e o emprego do homem para a guerra contra os animais. No confronto entre os europeus e americanos, quaisquer destes quatro entendimentos poderiam ser aplicados, uma vez que ele alegava serem os naturais da terra inumanos, bárbaros e animais. Assim, nada mais justo, seguindo esta interpretação, que o perfeito (neste caso seriam os europeus de um modo em geral) imperasse sobre o imperfeito (os índios americanos).

b - Por autoridad legitima entendia como sendo o poder público, isto é, o Príncipe, a Igreja e os seus delegados.

c - Por recto animo ele invocava Santo Agostinho para afirmar que o fazer a guerra não seria um delito, mas seria um pecado se o fosse pelos bens materiais.

d - Ao tratar de recta manera de hacerla ele afirmava que a guerra não poderia ser feita simplesmente por uma vingança pura e simples, mas sim pelo bem público, e que “não se façam injúria aos inocentes, nem se maltratem os embaixadores, os estrangeiros e os clérigos”18.

16 Sepúlveda entrou em atrito com o dominicano Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566), devido à

publicação da obra do Frei, denominada Brevíssima Relación de la Destrución de las Indias Ocidentales, no ano de 1552 – onde ele defendia a liberdade e os costumes dos índios. Esta obra relata a crueldade e a corrupção dos espanhóis, fazendo com que a sua imagem passasse à denominação de “Leyenda Negra” por toda a Europa. Veja-se mais sobre este assunto em Juan Ginés de Sepúlveda, Las justas causas de la guerra, 1996.

17 J. G. de Sepúlveda. Las justas causas de la guerra, p. 18. 18 Idem., p. 27. Tradução nossa.

Por fim, Sepúlveda justificava a conquista não como um direito, mas sim como um dever de caridade. Isto deixa claro que as condições para a existência da guerra justa ou não, atendiam muito mais aos interesses e caprichos dos colonos, bem como os da Igreja, que propriamente ao cumprimento de um código de princípios, leis, mores ou normas por parte dos colonizados. No que se refere às hostilidades aos vassalos e a quebra do pacto fica mais patente ainda que ao indígena restava a sujeição ao jugo do homem branco, a qualquer custo, uma vez que sua resistência forneceria subterfúgios para o início da guerra.

Quando do interesse dos colonos, em último recurso, a guerra era justificada pela frieza, crueldade e barbaridade dos inimigos indígenas. Fica evidente, assim, que na visão do colono a guerra era de puro e simples extermínio de um sujeito portador de instintos animalescos. Este discurso nos faz crer que, para os nobres e comerciantes, a guerra era apenas um meio de incorporar o índio à mão-de-obra barata, preferencialmente em forma de escravidão, num gesto considerado por eles até mesmo humanitário.

Fazendo um transporte destes conceitos para as condições impostas pelo processo colonial em terras brasileiras, veremos que elas foram aplicadas quase ipsis litteris. O padre Antônio Vieira, discorrendo sobre os índios que se encontravam no Maranhão, dizia que eles eram de três tipos19; a saber: os escravos da cidade, que serviam aos colonos; os escravos das aldeias de el-rei, que Vieira considerava livres, e ainda os que viviam nos sertões, estes os mais visados pelas bandeiras, e “só poderiam ser tirados aqueles que já estivessem cativos de tribos inimigas [...] trazendo-os à cidade como escravos”20.

Não foi somente Jean de Léry quem pensava a inumanidade, barbaridade e animalidade dos índios. O próprio Diretório afirmava estas características nos Art. 3º dizendo que “...os índios deste Estado se conservaram até agora na mesma barbaridade...”

19 Note-se que esta classificação é diferente daquela apresentada pela pesquisadora B. Perrone-Moisés, já

comentada na contextualização da obra.

E no Art. 37º acrescenta que eles “[...] pela sua rusticidade, e ignorância, não podem compreender a verdade, e legítima reputação dos seus gêneros [...]”, acusações estas negadas competentemente pelo padre João Daniel.

Quando às operações de resgate, o historiador Luiz Felipe de Alencastro afirma que os índios poderiam ser apropriados de três formas: resgates, cativeiros e descimentos. Em princípio só eram resgatados os índios de corda21 pois os cativos originários da “guerra justa” tornar-se-iam escravos ad infinitum, o que concorria para o benefício da facilidade de mão-de-obra para o sistema.

O ato de fazer escravos através da guerra - justa ou não - remonta à Grécia antiga. Segundo Alencastro, o mesmo argumento clássico continuou sendo utilizado para justificar a fonte escravista que perdurou até meados do século XIX. A guerra como benemérita da escravidão pode ser encontrada em Xenofonte que, além de justificá-la, considerava a escravidão um método didático-educativo próprio para os animais. Daí que ele

elogia os guerreiros e conquistadores benévolos, benfeitores, os quais, em vez de massacrar seus prisioneiros de guerra, reduziam-nos à escravatura, ´forçando-os a se tornar melhores, e levando-os assim a ter uma vida mais fácil`. Ou seja, a escravização se define como um ato de generosidade, reiterativo da natureza humana do prisioneiro, do cativo, na medida em que o resgata de uma morte certa para integrá-lo numa sociedade eventualmente mais avançada. O argumento será retomado por grandes e pequenos escritores ao longo dos séculos, a ponto de constituir o fundamento ideológico do substantivo que designa a aquisição de escravos africanos ou índios: resgate22.

21 - O termo que designava os índios prisioneiros de outros índios, à espera da morte, por meio de um ritual

específico para tal fim. Os índios resgatados nessas condições deveriam permanecer cativos de seus novos donos por dez anos.

Essa metodologia clássica de escravidão foi encontrada no Amazonas, quase dois milênios após, pelo jesuíta padre João Daniel. Segundo ele, as tropas de resgate da coroa “[...] instituídas para livrar da matança os miseráveis índios encurralados com muita piedade pelos Fidelíssimos Reis de Portugal [...] com muito aplauso dos mesmos portugueses, que nos tapuias23 resgatados tinham escravos e servos para os seus serviços de lavouras”24.

A esses atos os portugueses denominavam operação de resgate e os índios capturados eram os índios de corda. Esta era uma operação que denominavam “guerra justa”, justificada então pela causa justa de Sepúlveda.

No intuito de fomentar e dar manutenção a estas operações, os colonos incitavam as tribos a guerrear entre si visando o aprisionamento do adversário e não o seu extermínio. E isto se explica pelo fato das tropas serem pagas com moedas silvícolas ou, índios aprisionados. Confirmando esta asserção, vejamos um trecho de uma Carta do Padre Vieira

[...] Os inheiraquaras, gente de grande resolução e valor [...] foram caçados, achados, rendidos, sem dano mais que de dois índios nossos levemente feridos [...] Ficaram prisioneiros 240, os quais, conforme as leis de vossa majestade, a título de haverem impedido a pregação do evangelho, foram julgados escravos, e repartidos aos soldados” 25.

José Bonifácio fez referência ao comércio escravocrata indígena no texto “A maior

infelicidade que suportou a massa geral dos homens foi a conquista do novo mundo”,

23 O termo Tapuia é uma designação dada pelos povos Tupis às demais tribos de outras etnias tais como:

aimorés, charruas, tremembés, gitacses, canindés, kariris, icós, etc., enfim, a todos “os inimigos falantes de outras línguas”. Estes grupos, localizados mais no interior do Brasil, foram os que mais resistências ofereceram à colonização, principalmente nas províncias do Espírito Santo, Bahia e Minas Gerais. Sobre este assunto, veja-se Dicionário do Brasil Colonial, de Ronaldo Vainfas.

24 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 311. 25 M. Bomfim, O Brasil na América, p. 164.

afirmando que “Em 1539 vendiam-se em Lisboa, além de africanos, também índios do Brasil”26.

Alencastro relata a deportação do cacique potiguar Zorobobé, segundo ele “deportado para Évora”27, no ano de 1609, como punição pelas suas ações como “jagunço do senhorio” da coroa portuguesa. Estranha esta deportação em se tratando de índios em um contexto rigorosamente escravocrata.

Essa prática é objeto de estudo de vários historiadores. Assim, Manoel Bonfim fez referência à venda de índios como uma transação comercial de forma tal que se supõe estivessem eles sendo utilizados como moedas pelos colonos “O mal ainda se agravou porque especuladores desalmados trataram de converter os índios em gênero de negócio – capturando-os para vendê-los como escravos”28. Se a “guerra justa” teve o apoio inconteste dos colonos, o mesmo não se pode dizer do clero, apesar de alguns setores da instituição jesuítica ter apoiado os colonos neste tipo de negócio, como bem o demonstra Emília Viotti:

Um contemporâneo de Vieira, Jorge Benci, S.J., numa pregação feita na

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