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PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO

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Academic year: 2018

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AMÉDIS GERMANO DOS SANTOS

PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO

Doutorado em Comunicação e Semiótica

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AMÉDIS GERMANO DOS SANTOS

PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica

Área de concentração: Sistemas Semióticos em Ambientes Midiáticos.

Orientador: do Prof. Doutor Eugênio Rondini Trivinho.

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DEDICATÓRIA

Esta obra é dedicada àqueles que, em nossos objetivos, sempre somaram. À Ânnÿ-Maria, Dönnerssön e Maria das Graças que se mantiveram pacientes e compreensivos em todos os momentos de ausência.

In Memorian:

À Ana Maria, que mesmo partindo na chegada deixou seu registro no percurso de nossa vida.

À Helda Barracco, pelos ensinamentos que moldaram o nosso pensamento. A Renato Cohen, pelo carinho e apoio no momento mais crucial desta caminhada.

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Agradecimentos

Ao Dr. Eugênio Trivinho, pela confiança e segurança transmitidas, pelo crédito e a ousadia no aceite da condução do processo num momento de obscuridade total e pela sua sapiência e perseverança na orientação do melhor caminho para a realização dos nossos objetivos.

À Fundação Educacional de Caratinga, em especial aos professores Antônio Fonseca e Celso Simões, que nos deram todo o apoio para a consecução deste empreendimento.

Aos professores José Lacerda e Walter Zavatário pela inestimável assessoria nos domínios da gramática

Aos professores que comprometeram seu tempo substituindo-nos como navegantes.

Às bibliotecárias da UNEC, da PUC-SP e à Biblioteca Mário da Andrade pelo apoio às nossas demandas.

Aos funcionários da UNEC, em especial ao Sr. João Pena, a quem não demos um segundo de trégua monetária.

Aos funcionários do Museu Paulista, que compartilharam suas experiências no manuseio de documentos valiosos.

Aos professores do Programa de História da Ciência da PUC/SP, pela determinação que nos infundiu durante nossa convivência.

Aos professores do Programa de Comunicação e Semiótica pelo irrestrito apoio que nos deram ao longo da caminhada.

Às funcionárias Cida e Edna, do COS, sem as quais muito teria ficado a meio-caminho.

Aos colegas e cúmplices João Reis, Ivoni e Magalhães, que compartilharam viagens, angústias, decepções, mas também alegrias, emoções e realizações.

Ao Alberto C. de Braga, pelo incentivo constante.

(6)

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo compreender, à luz dos conceitos sóciopolíticos e filosóficos contemporâneos, o projeto legislativo denominado “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, elaborado por José Bonifácio de Andrada e Silva, quando Deputado pela Província de São Paulo junto à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Esse documento, composto de 44 artigos, foi apresentado à Assembléia em 1º de junho de 1823, na tentativa de preencher o vazio legislativo a respeito do assunto. Não foi aprovado devido à dissolução e ao fechamento da Assembléia Geral em 12 de novembro do mesmo ano, por ordem de D. Pedro I.

José Bonifácio alicerça seu projeto na filosofia clássica para justificar os conceitos de guerra justa, degeneração, humanidade, perfectibilidade e civilização. Como membro da administração direta do governo português – Ministro do Império ou Deputado Constituinte – apresenta-se com o discurso do Estado absolutista, justificando os meios para legitimar o domínio do espaço sob controle indígena.

Para consumar a reflexão sobre esse objeto de estudo, em seu recorte histórico específico, optou-se pela Análise do Discurso, então aplicada de maneira flexível, desprovida das formalidades rígidas que lhe retirariam o brilho, e sem perda do necessário vigor.

A releitura do discurso e do pensamento de José Bonifácio é, nesse caminho, constituída com base em prismas conceituais extraídos da filosofia contemporânea, representada por autores que se mostraram os mais apropriados e coerentes com esse empreendimento: Gilles Deleuze, Pierre Bordieu, Paul Virilio, Michel Maffesoli e Pierre Clastres.

São utilizados de Gilles Deleuze, os conceitos de espaço liso e estriado, máquina de guerra, ciência nômade e estatal e a idéia de sedentarismo, inspirada nesse autor, como forma de resistência ao avanço do Estado absoluto português; de Pierre Bourdieu as noções de poder e violência simbólicos, discurso dominante, arbítrio cultural e ação pedagógica como contraponto às propostas de apresamento, aldeamento e amansamento gradual dos índios; de Paul Virilio, os conceitos de desterritorialização, dromologia, vagabundagem e máquina-de-guerra, para entender a exploração, o deslocamento dos índios para as aldeias, a domesticação e a endocolonização em função da logística do Estado português; e de Michel Maffesoli e Pierre Classtres, as categorias de nomadismo, errância, profetismo, território flutuante e terra sem mal, para questionar à idéia de José Bonifácio, segundo o qual os índios eram ladrões, guerreiros e vagabundos.

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ABSTRACT

This work has as its main objective to understand, in the context of the contemporary ideas about social politics and philosophy, the legislative project called “Notices to the civilization of the índios bravos of the empire of Brazil”, elaborated by José Bonifácio de Andrada e Silva, when deputy of São Paulo’s province, directed at the Constituency and Legislative General Assembly of Brazil’s empire. This document, compounded by 44 articles, was presented to the Assembly in June the first of 1823, in an attempt to fill the emptiness concerning the issue. The project wasn’t approved because of the breakup and termination of the General Assembly in November 12t h of the

same year, ordered by Dom Pedro I.

José Bonifácio based his project on the classic philosophy to justify the concept of fair war, degeneration, humanity, perfectibility, and civilization. As a member of the Portuguese government – emperor minister or constituent deputy – bring in the absolute state speech, justifying the meanings to legitimate the control over the Indian Territory.

To fulfill the reflection over this object of study, in its specific historical age, the author decided for the speech’s analysis, applied in a flexible way, destitute of rigid formalities, which could take away the brightness of the work but maintaining the necessary emphasis.

The new reading of José Bonifácio’s speech and ideas is, in this way, compounded and based on concepts extracted by the contemporary philosophy, represented by appropriated authors and coherent with this subject: Gilles Deleuze, Pierre Bourdieu, Paul Virilio, Michel Maffesoli and Pierre Clastres.

From Gilles Deleuze was applied the concepts of the flat and groove space, war machine, nomad and public politics science and the idea of sedentary, inspired in this actor, as a way of resistance towards the advance of the Portuguese absolute state; from Pierre Bourdieu, notions of power and symbolic violence, dominant speech, arbitrary culture and pedagogic action as a counterbalance by the seizure proposals, Indian settlement and gradual domestication of the Indians; from Paul Virilio, the thoughts about the steal of the territory, laziness and war machine, to understand the exploitation, the shifting towards the Indian settlement, the domestication and the colonization caused by the logistics of the Portuguese state; from Michel Maffesoli and Pierre Clastres, the categories of nomads, mistaken, prophetism, unstable territory and pacific land, to inquire José Bonifácio’s ideas, based on the facts that the Indians were considered thieves, warriors and vagabonds.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO--- 9

PRIMEIRA PARTE JOSÉ BONIFÁCIO NO CONTEXTO HISTÓRICO: DA FORMAÇÃO ACADÊMICA AO ADMINISTRADOR E LEGISLADOR--- 22

CAPÍTULO I – Formação e Produção Científica – o Burocrata e Legislador de Estado--- 23

CAPÍTULO II – Idéias Político-Filosóficas e Religiosas no Século XIX--- 40

CAPÍTULO III – Legislações Referentes às Relações entre Civilizados e Selvagens ---64

CAPÍTULO IV – Discurso de José Bonifácio sobre a Administração do Estado --- 97

SEGUNDA PARTE RELEITURA DE JOSÉ BONIFÁCIO: NOVOS PRISMAS TEÓRICOS E CONCEITUAIS --- 119

CAPÍTULO I – Máquina de guerra, territorialização e espaço --- 120

CAPÍTULO II – Poder, sistemas e violência simbólicos--- 146

CAPÍTULO III – Desterritorialização, endocolonização e guerra justa --- 168

CAPÍTULO IV – Nomadismo e território flutuante --- 191

CONCLUSÃO --- 221

BIBLIOGRAFIA --- 225

ANEXO I – Museu Paulista--- 251

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ---09

PRIMEIRA PARTE José Bonifácio no Contexto Histórico: da Formação Acadêmica ao Administrador e Legislador --- 22

CAPÍTULO I Formação e Produção Científica - o Burocrata e o Legislador de Estado --- 23

CAPÍTULO II Idéias Político-Filosóficas e Religiosas no Século XIX --- 40

1. Guerra Justa--- 46

2. Perfectibilidade e Degeneração --- 52

3. Civilização --- 55

4. Humanidade--- 60

CAPÍTULO III Legislações Referentes às Relações entre Civilizados e Selvagens--- 64

CAPÍTULO IV Discurso de José Bonifácio sobre a Administração do Estado --- 97

SEGUNDA PARTE Releitura de José Bonifácio: novos prismas teóricos e conceituais---119

CAPÍTULO I 1.Máquina de Guerra---121

2. Territorialização e Desterritorialização---123

3. Ciência---126

4. Religião e nomadismo ---134

5. Espaço liso e estriado---136

6. Organização numérica de homens ---139

CAPÍTULO II 1. O poder simbólico---147

2. Ação Pedagógica ---149

3 Habitus ---155

4. Sistemas Simbólicos ---161

5. Estigma dos dominados ---162

6. A Comunicação ---164

CAPÍTULO III 1. Dromologia ---169

2. Desterritorialização ---171

3 Máquina-de-guerra ---173

4. Endocolonização ---174

5. Povos esperançosos e desesperançosos ---177

6. Domesticação ---179

7. Guerra justa ---187

8. Velocidade e tecnologia ---188

CAPÍTULO IV 1 Nomadismo ---193

2. Errância---195

3. Território flutuante---212

4. Profetismo ---218

CONCLUSÃO---221

BIBLIOGRAFIA ---225

ANEXO 1 – Museu Paulista ---251

(10)
(11)

A transformação do Brasil de colônia a sede do reino português colocou os

governantes em face de um problema que a distância havia tornado menor: a proporção

entre os europeus e seus descendentes nascidos no Brasil, os negros e os índios. A

violência exercida sobre os dois últimos grupos parecia ter sido solucionada, até então,

através de algumas ações governamentais que, em diferentes períodos, foram tornadas

públicas na forma de Portarias1, Leis, Alvarás, Cartas Régias, Regimentos, Provisão,

Diretório, etc., com o objetivo de legitimar os atos de dominação exercidos sempre pelo

Estado por meio de seus representantes legais e ilegais, os colonizadores.

Com a instalação da Corte no Rio de Janeiro em 1808 e a sua permanência nessas

terras mesmo depois que o perigo demonstrado pelas pretensões de Napoleão Bonaparte

1 Na concepção do padre João Daniel (1722-1776), cronista da Companhia de Jesus, que viveu de 1741 a 1757 na região amazônica, o termo Portaria designava “licenças não só para subir, passar as fortalezas, e

navegar o Amazonas, mas também para tirar índios pelas aldeias”. Com este documento os índios eram

(12)

havia passado, a composição étnica da população na colônia brasileira não podia deixar de

se constituir numa questão a ser pensada. Para se ter uma idéia de como estava composta a

população, no ano da Independência, o Brasil contava com aproximadamente cinco

milhões de almas que, conforme o estudioso Gondim da Fonseca2, estavam divididas em

2,8 milhões de homens livres, 1,3 milhões de escravos e 0,9 milhão de índios. Outro

estudioso da história brasileira, o médico Manoel Bomfim3, calculou que apenas 30% do

contingente populacional era de sangue português.

Tratava-se, por um lado, de buscar saídas que pudessem minimizar o temor que o

segmento constituído por portugueses e “brasileiros”4 sentia junto de tão grande

contingente de escravos e índios, descontentes com sua situação. Por outro lado, os

clamores europeus pelo fim da escravidão humana, gerados por diferentes interesses, já

não podiam ser ignorados, uma vez que se concretizavam em sanções aos países que ainda

comercializavam escravos. Também encontrava ecos nas discussões o Estado sempre

deplorável dos nativos nas colônias dos diferentes países europeus. Uma outra preocupação

dizia respeito ao resultado pouco positivo, em termos econômicos, da utilização do

trabalho escravo tendo como objeto os escravos da África, ou da “participação” forçada

nem sempre denominada ou oficialmente reconhecida como escravidão indígena.

A independência do Brasil criou de alguma forma, uma nova situação: a daqueles

homens livres que resolveram se colocar ao lado do então auto-proclamado Imperador, ao

escolherem a permanência na América. Isso significava, entre outras coisas, a convivência

2 G. da Fonseca, A revolução francesa e a vida de José Bonifácio, p. 126. 3 M. Bomfim, O Brasil na América, p. 115.

(13)

obrigatória com uma população segmentada em termos étnicos, de que advinham direitos e

obrigações diferenciados gerando descontentamentos de todos os tipos.

Nesse contexto, é perfeitamente compreensível que José Bonifácio de Andrada e

Silva (1763-1838) – “brasileiro”, cujo nome está indissociavelmente ligado à

Independência do Brasil – tenha elaborado, como deputado pela Província de São Paulo,

um documento para apresentar à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império

do Brasil, sobre os índios. Vejamos o que ele nos diz a respeito:

Como cidadão livre e deputado da nação dois objetos me parecem ser, fora a Constituição, de maior interesse para a prosperidade futura deste império. O primeiro é um novo regulamento para promover a civilização geral dos índios do Brasil, que farão com o andar do tempo inúteis os escravos; cujo esboço já comuniquei a esta Assembléia. Segundo, uma nova lei sobre o comércio da escravatura, e tratamento dos miseráveis cativos5.

A escravatura tema da “Representação à Assembléia Geral Constituinte e

Legislativa do Império do Brasil”, foi composta provavelmente em 1823, mas não

apresentada à Assembléia devido à sua dissolução em 12 de novembro do mesmo ano.

Quanto à questão da escravatura africana no Brasil, não faremos dela o centro de nossa

atenção, posto que este assunto foi tratado pela pesquisadora Ana Rosa Cloclet da Silva,

em Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio. O centro de

nosso estudo é outro segmento étnico que também padeceu nas mãos do escravizador: o

índio. Este teve outra sorte, porque ele foi objeto do documento “Apontamentos para a

civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, que foi apresentado à Assembléia no

dia 1ºde junho de 1823, em que ele propunha o “modo de catequizar e aldear” esses índios.

(14)

Parece que a idéia de que os índios eram capazes de civilização ocorreu a José Bonifácio

num período bem anterior à apresentação do projeto à Assembléia. Numa carta escrita ao

Conde de Funchal, datada de 30 de junho de 1812, quando manifesta o desejo de voltar ao

Brasil, ele diz que poderia “criar pescarias e salgações e experimentar o meu projeto de

civilizar a Cristão os índios”6. Numa outra carta ao mesmo conde ele expõe mais uma vez

a sua preocupação com o Brasil e a situação dos índios. Neste texto ele teme pelo

desaparecimento dos “pobres índios, assim gentios como domésticos” e diz ser “mais que

tempo que o governo pense nisso”7.

Contudo, ele reconhecia que o seu projeto seria de difícil execução devido a dois

obstáculos principais: por um lado, a “natureza do estado” em que os índios se

encontravam até o momento, e que deveria ser modificado; por outro, o tratamento que

portugueses e brasileiros deviam aos índios, que deveria também mudar. No terceiro

capítulo da primeira parte estas dificuldades serão discutidas com mais detalhes. Em sua

proposta, José Bonifácio procurava dar solução aos problemas econômicos gerados pelo

modelo escravista do negro e do índio. Assim, ele se opunha ao tráfico de escravos

enquanto pensava a “integração” tanto do negro quanto do índio na sociedade brasileira,

almejando com isso o fim de uma população heterogênea que ele pretendia unificar.

As palavras de José Bonifácio, que podemos ler abaixo sobre o segmento de origem

africana, valem também para o elemento indígena. Ele considerava fundamental:

[...] formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos pois

6 J. B. de Andrada e Silva, “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do império do Brasil”, in: E. de C. Falcão, org. Obras científicas, políticas e sociais de José Bonifácio, pp. 103-114.

(15)

desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política. Mas que ciência química, e que desteridade não são precisas aos operadores de tão grande e difícil manipulação? Sejamos pois sábios e prudentes, porém constantes sempre8.

Conhecedor da arte mineralógica e metalúrgica como poucos em sua época, José

Bonifácio encontrou a analogia perfeita para expressar suas idéias. Ele sabia que uma liga

metálica, além de seu aspecto homogêneo, é muito mais resistente – e, portanto, melhor

para os diversos usos – que os metais que a compõem. Seu texto combina as várias facetas

de sua formação e atuação como homem de ciência e administrador em sua “fase”

portuguesa, assim como político e legislador, no Brasil.

Como veremos José Bonifácio se contrapunha às idéias então vigentes sobre a

degeneração e decadência dos índios. Ele discordava de muitos pensadores influentes em sua

época, como Johann Baptist von Spix, Carl Friedrich von Martius e Cornellius de Pauw que

consideravam a América e tudo aquilo que nela fora criado como defeituosos por natureza.

Dessa forma, a união do nativo com o europeu deveria originar um homem degenerado. Estas

idéias estão bem claras na impressão deixada por Louis Agassiz, ao referir-se ao índio brasileiro.

O mestiço de branco com índio, denominado mameluco no Brasil, é pálido e efeminado, fraco, preguiçoso, embora obstinado. Parece que a influência do índio tem a força justamente precisa para anular os altos atributos do branco, sem comunicar ao produto nada da sua própria energia9.

8 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil. p. 48-9.

9 Jean Louis Rodolphe Agassiz. Viagem ao Brasil (1865-1866), 1938, p. 625. Agassiz (1807-1873), naturalista especialista em ictiologia, nasceu na Suíça, mas naturalizou-se americano. Foi professor de história em Nouchatel e posteriormente em Cambridge. Ele veio para o Brasil onde permaneceu de 1865 a 1867 chefiando a “Expedição Thayer”, e realizou estudos zoológicos e paleontológicos no norte e no nordeste brasileiro. Sobre ele, ver Visconde de Taunay, Amor ao Brasil: catálogo de estrangeiros ilustres e

prestimosos (1800-1892), Sérgio Faraco, org. 1998. Ou Jean Gaudant, Louis Agassiz (1807-1873), fondateur

(16)

Os “Apontamentos...” foram elaborados, como veremos no terceiro capítulo desta

primeira parte que trata das legislações indígenas, na tentativa de preencher um certo vazio

legislativo a respeito do assunto. Da primeira legislação a respeito do indígena, que

apareceu em nossas terras a partir de 1548, até o Diretório de 1757, extinto em 1798, várias

Portarias, Leis, Alvarás, Cartas Régias, Regimentos, Provisões, etc., serviram para

regulamentar as relações entre os colonos e os índios. Da extinção do Diretório até a

apresentação dos “Apontamentos...”, apenas três Cartas Régias – as de 1806, 1808 e 1809 –

fizeram menção aos índios.

Dessa forma, tendo como preocupação principal à questão relativa à civilização dos

índios do Brasil do século XIX, nosso objetivo no presente trabalho é reinterpretar, à luz

dos conceitos sociopolíticos e filosóficos contemporâneos de Gilles Deleuze, Pierre

Bourdieu, Paul Virilio, Michel Maffesoli e Pierre Clastres, os “Apontamentos...

elaborados por José Bonifácio.

Na análise do texto, importa-nos o discurso de José Bonifácio em relação à cultura

indígena, mas esclarecemos que o sujeito do discurso não será físico, mas discursivo, ou

seja, sujeito de e sujeito a. Será sujeito de porque ocupou uma hierarquia na corte como

sujeito de Estado - quer na condição de membro do Executivo como Ministro representante

da monarquia, quer na condição de membro do Legislativo, como Deputado Constituinte

representante da Província de São Paulo - e será sujeito a na qualidade de subordinado à

monarquia representada por D. Pedro I. Esse assujeitamento discursivo a que ficou

subordinado é que explica as contradições do sujeito, posto que ele é livre, mas, ao mesmo

tempo, submisso. Assim, o sujeito é apenas um ideal de completude, no dizer de Orlandi10.

Para esta autora, não devemos procurar verdades escondidas por trás dos textos porque eles

(17)

ocultam apenas gestos de interpretação que precisam ser compreendidos. Tais gestos estão

organizados numa relação entre sujeito e sentido, que nos fornece novas leituras.

Segundo Helena Brandão, o sujeito é totalmente ideológico porque é marcado

temporal e espacialmente e sua fala é produzida a partir de um lugar, um espaço social

(status) e de um espaço-tempo (produtivo).

No que diz respeito aos sentidos, lembramos que nunca será apresentado como

verdadeiro. E por ser ideológico, o sentido do discurso jamais será literal. Assim, uma

mesma palavra, numa mesma língua, poderá apresentar diferentes significados, haja visto

ser ela dependente da posição do sujeito e da formação discursiva. A palavra terra, por

exemplo, terá diferentes sentidos se dita por um índio ou por um colonizador, por um

geógrafo ou por um geólogo, por um agricultor ou por um astrônomo, por um especulador

imobiliário ou por um navegador.

Segundo José Pinto11, a transparência na linguagem é um mito porque na emissão

do discurso, o sujeito é somente um representante das relações, identidades sociais e

condicionamentos (crenças, educação etc.) que moldaram a identidade do sujeito. Segundo

este autor, todo texto se constrói por debate com outros textos. Assim, é no dialogismo

textual que sobressaem os conhecimentos históricos que determinam a produção do sujeito

enunciador. Daí a afirmação de Orlandi12, segundo a qual somente no imaginário existe o

texto original, porque ele é sempre constituído de múltiplos planos com diferentes visões e

formulações.

Desta forma, teremos como corpus o discurso de José Bonifácio, em especial os

“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do império do Brasil”, - de natureza

descritiva, política e jurídica - e como mediação compreensiva os conceitos sociopolíticos

e filosófico da teoria social contemporânea francesa conforme antes assinalado.

11 M. J. Pinto, Comunicação e discurso, p. 40.

(18)

Como forma de realçar o entendimento do trabalho, fizemos a opção pela

intercalação de textos de José Bonifácio com os autores que abordaram os conceitos

epistemológicos da teoria social contemporânea, tendo ainda como suporte histórico,

autores que trabalharam a problemática dos índios nos séculos precedentes ao nosso

objeto.

Para analisar o discurso de José Bonifácio, levamos em consideração o

intradiscurso inscrito em sua memória como o já dito, o dizível ou, aquilo que não consta

na frase dita – suas experiências personificadas na convivência de sua formação coimbrã e

sua passagem pelos centros de estudos da Europa – e que estão presentes no enunciado dos

textos escritos por ele.

Este trabalho é composto de duas Partes, ambas divididas em quatro Capítulos. Na Primeira

Parte, faremos uma contextualização tendo como foco o período que abrange a formação básica de José

Bonifácio de Andrada e Silva na Província de São Paulo, a sua partida para Portugal em busca de sua

formação em Leis e Filosofia na Universidade de Coimbra, os cargos e funções que ele ocupou junto ao

governo português após as viagens filosóficas de especialização pela Europa e o breve período que

atuou como pesquisador no Brasil, de 1819 a 1822, antes de assumir importantes cargos na

administração da monarquia brasileira.

Ainda na Primeira Parte, trataremos dos conceitos que serviram de suporte a José Bonifácio na

elaboração dos documentos que foram enviados à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do

Império do Brasil, órgão no qual ele tinha assento como Deputado, além de Vice-Presidente da

Província natal. A guerra justa, a degeneração, a perfectibilidade, a humanidade e a civilização eram

conceitos comuns nos discursos proferidos em toda a Europa, principalmente após o advento da

Revolução Francesa, que acabou pondo em cheque tudo o que dizia respeito às relações entre os

homens. Além de terem contribuído para a formação de José Bonifácio, estes conceitos foram a base

(19)

território brasileiro. Finalizando esta parte, faremos uma análise da percepção e propostas de José

Bonifácio para a reestruturação do Estado brasileiro em função das reformas que vinham operando

no continente europeu.

Na Segunda Parte, os “Apontamentos...” de José Bonifácio serão sendo

revistos no Capítulo I sob a ótica dos conceitos de Gilles Deleuze para reinterpretar

os atos do aparelho de Estado. Como membro do governo imperial, na qualidade de

Deputado provincial ou Ministro de Estado, José Bonifácio teve todos os seus

trabalhos pautados pela legislação e administração dos interesses do Estado na

ocupação de uma área que Deleuze chamou de “espaço liso”, ou seja, um determinado

ambiente demarcado por todo um modus operandi estatal, incluindo aí a ciência do

Estado. O resultado disto é o confronto dos aparelhos estatais com a máquina de

guerra13 nômade ora representada pelo sedentarismo e a errância dos índios e outros

que por muitas vezes lhes fizeram companhia.

No Capítulo II adotaremos os conceitos de Pierre Bourdieu para analisar o

discurso em função dos usos que se pretendia fazer dos “Apontamentos...”, para

legalizar uma violência que já vinha sendo praticada contra as comunidades

indígenas. Os “Apontamentos...”, antes que um discurso dominante, agiria também

como um instrumento legitimador do arbítrio cultural imposto pelos atos e ações das

autoridades pedagógicas, acrescidas das autoridades civis e militares a que estariam

sujeitos os índios aldeados conforme planejava o legislador José Bonifácio.

(20)

No Capítulo III, veremos como Paul Virilio concebe o vetor de

velocidade agindo para a sedução, o domínio, a exploração do outro, o de

fora, tudo isto em função da logística do Estado. Os “Apontamentos...

deveriam cumprir esta função sedutora para com os índios, na tentativa

de deslocá-lo de seu espaço liso para aprisioná-lo no espaço estriado do

Estado. Este fenômeno é tratado por Virilio como um processo de

desterritorialização, isto é, um processo em que há um deslocamento de

corpos, o esfacelamento da máquina de guerra nômade, um

desenraizamento, o êxodo, a perda da identidade, a errância, a

vagabundagem. Na tentativa de corrigir estes desvios sociais que foram

vistos como distorções proféticas dos feiticeiros indígenas, José Bonifácio

propunha os aldeamentos, as fortificações, e as instruções educativas e

religiosas, de conformidade com o habitus europeu, num processo que

Virilio denominou endocolonização, em substituição ao processo

exocolonizador até então praticado pela ex-metrópole.

E no Capítulo IV, veremos outros conceitos, como: nomadismo,

errância, território flutuante e o profetismo, instrumentos desenvolvidos

por Michel Maffesoli e Pierre Clastres, os quais serão utilizados na análise,

porque José Bonifácio achava que os índios eram “[...] vagabundos, e dados

a contínuas guerras, e roubos”14. Com os conceitos teóricos de Maffesoli,

estaremos em condições de propor uma reinterpretação para a eterna

discriminação e marginalização a que foram relegadas as culturas

indígenas, bem como entender a errância dos índios em busca da “Terra

sem Mal”.

(21)

Como conclusão, pretendemos demonstrar que os discursos de José

Bonifácio, a despeito de suas pretensas boas intenções, não deixam de ser

importantes como discurso, mas apresentavam problemas que as teorias

filosófico-políticas da época não tinham como resolver, como ele já

antecipava no seu projeto encaminhado à Assembléia “Vou tratar do modo

de cathequizar, e aldear os Índios bravos do Brasil: materia esta de summa

importância; mas ao mesmo tempo de grandes difficuldades na sua

execução”15.

Os atos e ações das autoridades pedagógicas que deveriam ser

desenvolvidos pela Congregação São Felipe Neri16 - adicionados aos

instrumentos do aparelho de Estado na forma de colonizadores, militares,

bandeirantes, mercadores etc. legitimados que fossem pelos

Apontamentos...” - viriam apenas a oficializar a exterminação que estava

em andamento nas aldeias que ainda persistiam em permanecer nomádicas.

Na tentativa de atingir o seu fim, José Bonifácio propunha uma verdadeira

assepsia política, social e econômica através da educação, da religião, da

saúde, da produção, do transporte, da defesa, do comércio e finanças etc.,

que certamente iria corroborar na desconstrução das culturas que vinham

sendo desenvolvidas conforme as exigências das dinâmicas sedentárias.

As notas de rodapé têm como função complementar o que não se

completa por ser traço de um outro sentido, pois os textos são formulados

em múltiplos planos, visões e memórias, conforme Orlandi17. Assim, nas

notas desse trabalho optamos pela metodologia em vigor na Pós-Graduação

15J. B. de Andrada e Silva, “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do império do Brasil”. in: E. de C. Falcão, org, Obras científicas, políticas e sociais de José Bonifácio, p. 103.

(22)

em História da Ciência da PUC/SP, desta Instituição, em função de sua

estabilidade, estética e praticidade. Supomos que tal escolha possa melhor

(23)

PRIMEIRA PARTE

JOSÉ BONIFÁCIO NO CONTEXTO HISTÓRICO:

DA FORMAÇÃO ACADÊMICA AO

(24)

CAPÍTULO I

(25)

José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos, a 13 de junho de 1763, sendo

batizado com o nome de José Antônio de Andrada e Silva. Posteriormente, o nome

Antônio foi substituído por Bonifácio, conforme consta do recenseamento feito em Santos,

em 17761.

O pai de José Bonifácio, Sr. Bonifácio José de Andrada - Capitão, Escrivão e Tesoureiro da Junta

da Fazenda da Província de São Paulo - considerado a segunda fortuna de Santos, enviou quatro de seus

nove filhos para estudar em São Paulo, no ano de 1779, na intenção de fazê-los clérigos, no que foi

correspondido apenas por um deles, Patrício Manoel de Andrada. Como não aceitou seguir a carreira

religiosa tal qual o irmão Patrício, José Bonifácio e também os seus irmãos Antônio Carlos e Martim

Francisco fizeram o requerimento de “Habilitação de Gênere”2, que os permitiria viajar para Portugal e

1 E. de C. Falcão, org. Estudos vários sôbre José Bonifácio de Andrada e Silva, p. 62.

(26)

freqüentar a Universidade. Na cidade de São Paulo, José Bonifácio permaneceu dos 14 aos 17

anos, onde passou “a fazer seu curso de lógica, metafísica e ética e de retórica e língua

francêsa, nas escolas que o bispo Dom Frei Manuel da Ressurreição, nome caro às ciências,

erigira naquela capital”.3

A formação de José Bonifácio com o seu preceptor, o franciscano Dom Manuel

(1718-1789) foi importantíssima haja vista o engajamento do bispo com a renovação

intelectual iluminista que estava ocorrendo na Europa. Além de o bispo ter sido Conselheiro de

Estado dos reis de Portugal, ele estava associado à reforma implementada pelo Marquês, pois

“formou resolutamente ao lado de Pombal, na reforma dos estudos”4 da Universidade de

Coimbra.

Com uma boa formação José Bonifácio foi enviado para a cidade do Rio de Janeiro

em 1783, com destino a Portugal5. Em 30 de outubro deste mesmo ano, José Bonifácio

fez sua matrícula no Curso Jurídico da Universidade de Coimbra6. Esta instituição sofreu

em 1772 uma reforma dirigida pelo Ministro de Dom José I, Sebastião José de Carvalho e

Melo (1669-1782), o Marquês de Pombal7.

3 B. F. do Amaral, José Bonifácio, p. 17.

4 Dom Manuel trouxe em sua bagagem para o Brasil 1.548 volumes contendo obras em Latim, Português, Francês e Espanhol, além de duas gramáticas estrangeiras: uma grega e outra hebraica. Destas obras constam autores como Verney, Lineu, Voltaire, Camões, Buffon e Pufendorf. Veja-se Amaral, op. cit., pp. 46. 5 A maioria dos autores que trabalharam com temas ligados a José Bonifácio informa que ele permaneceu no Rio de Janeiro por aproximadamente três anos. Contudo, encontramos na obra do pesquisador Amaral, op. cit., p. 17 e seg., informações de que ele teria estado em Santa Catarina para conhecer as indústrias baleeiras e também em Minas Gerais – Vila Rica e Serro Frio – para conhecer os trabalhos de extração de diamantes. 6 F. Morais, “Lista dos estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra”, Brasília, 1949, suplemento ao volume IV, pp. 326-7. As demais matrículas de José Bonifácio foram: Curso de Filosofia Natural em 12/10/1784, 20/10/1785 e 11/10/1786. Ainda em 11/10/1784 ele matriculou-se no Curso de Matemática e no Curso Jurídico. As demais matrículas de José Bonifácio na Universidade de Coimbra foram: em 1784, Curso Jurídico, Curso de Filosofia e Matemática; em 1785, Curso de Leis (Direito Civil) e de Filosofia; em 1786, Curso de Leis e de Filosofia; em 1787, último ano do Curso de Leis. Neste ano, ele adquire o grau de Bacharel em Leis em 3 de junho e Bacharel em Filosofia em 16 de julho. Veja-se F. Morais, op. cit., pp. 326-7. Importante ainda lembrar que os dois primeiros anos dos Cursos Jurídicos eram comuns; apenas no terceiro ano o aluno optava pelo Curso de Direito Canônico ou Direito Civil. Veja-se Estatutos da Universidade de Coimbra, Vol. II.

(27)

Os ideais reformistas do Marquês de Pombal tiveram sua gênese nos contatos

mantidos enquanto representante do governo português nas Embaixadas de Londres e

Viena. De volta a Portugal, ele foi nomeado Ministro dos Negócios do Rei e da Guerra, em

1750, adquirindo o grande poder político que exerceu até o seu afastamento do governo em

1779, com a morte de D. José I.

A reforma levada pelo Marquês atingiu vários aspectos da vida do Reino Português.

No que respeita à Universidade de Coimbra, as modificações tinham como objetivo alterar

“Os sextos estatutos de 1548” e a “Reforma de 1612”, considerados assaz ineficientes para

atender às necessidades da era da ilustração8. O Estatuto da reforma de 1772 provocou

uma reorganização nos Cursos Jurídicos (Leis e Cânones) e no Curso de Teologia, além de

realizar uma profunda modificação no Curso de Medicina e, ainda, fundar o Curso de

Matemática e o de Filosofia Natural.

Essa reforma contou com os conhecimentos de vários estudiosos, dos quais

destacaram-se o padre Luís António Verney (1713-1792) da Congregação dos Oratorianos,

autor de O verdadeiro método de estudar, e António Ribeiro Sanches (1699-1782), médico

da corte russa por dezesseis anos, autor da Carta para a educação da mocidade e dos

Métodos de como aprender a estudar a medicina. Esse último documento pode ser

considerado segundo muitos historiadores como base para a confecção da reforma

pombalina da Universidade, posto que as modificações9 visavam, sobretudo, ao ensino

dessa área do conhecimento10. É quase certo que o matemático José Anastácio da Cunha

8M. H. M. Ferraz, As ciências em Portugal e no Brasil (1772-1822): o texto conflituoso da química, p. 39. 9 As modificações propostas para a Universidade de Coimbra estão expressas nos Estatutos que foram publicados em 1772. Para este trabalho, foi utilizada a edição facsimilar, dada a público pela mesma Universidade em 1972, em três volumes.

(28)

(1744-1787)11, tenha sido, também, professor de José Bonifácio – a despeito de não termos

encontrado, ainda, referências explícitas quanto à presença de José Anastácio em seus

discursos.

As modificações feitas nos Cursos Jurídicos contemplaram as Faculdades de Leis e

Cânones. Neste trabalho centraremos nossa atenção na Faculdade de Leis, pois foi nela que

José Bonifácio se graduou. Segundo o Estatuto da Universidade, neste curso, os estudantes

deveriam adquirir conhecimentos de Direito Natural Público Universal e das Gentes,

História Civil dos Povos, Direito Romano, História Civil de Portugal e das Leis

Portuguesas. No Direito Civil constava também Jurisprudência Canônica, História da

Igreja e Direito Canônico.

A primeira disciplina: Direito Natural e das Gentes parece ser fundamental para

pensar a relação entre os vários grupos sociais. Segundo os Estatutos nessa disciplina se

deveria estudar:

A Colleção destas Leis, com que a Natureza regulou as acções dos Póvos livres; e o aggregado dos reciprocos Officios, com que ella os ligou para os seus interesses communs, e para o bem universal de toda a

11 O matemático José Anastácio da Cunha foi nomeado 1º Tenente do Regimento de Artilharia do Porto, onde teve contato com oficiais de várias culturas e aprendeu Latim, Grego, Francês, Inglês e Italiano. Em 1767, foi nomeado Tenente-Coronel. Em1769, apresentou um trabalho denominado “A teoria da pólvora em

geral, e a determinação do melhor comprimento da peças em particular”. Em 1773, Pombal o fez Lente de

Geometria da Universidade de Coimbra, cargo que exerceu até 1778. Em 1776, ele apresentou à

Congregação da Faculdade de Matemática o trabalho “Compendio de Ellementos praticos”, versando sobre geometria. Em 1778, foi denunciado à Inquisição e levado ao cárcere sob a acusação de “ter relacionado com camaradas militares protestantes ingleses, de ter lido Voltaire, Rousseau, Hobbes e outros autores que defendiam o deísmo, indeferentismo e tolerantismo e de ter emprestado a uma de sua disciplina livros que

estavam impregnados de´filosofismo`. Por tudo isso José Anastácio foi condenado e sentenciado a“concluir

reclusão por três anos [...] seguidos de quatro anos de degredo para Évora e ficou ainda interdito de entrar

em Coimbra e Valença”. A sua obra maior foi “Princípios de Methematica”, publicada em 1790, três anos

(29)

Humanidade, constitue a quarta, e ultima parte do Direito Natural conhecida pelo nome de Direito das Gentes.

Sendo o principio fundamental deste Direito das Gentes a perfeita igualdade; a omnimo da independencia dos Corpos das Nações: Devendo estes reputar-se como Pessoas Moraes: E competindo-lhes todas as faculdades, e Direitos, que em razão da mesma igualdade competem aos homens particulares do Estado natural: Claramente se conhece, que para se dirigirem, e regularem as causas, acções, e negocios dos Póvos livres, e dos Soberanos, que os representam, se podem muito bem applicar as mesmas Leis, que a razão estabeleceo para a regulação dos Officios dos homens no Estado natural, e que o Professor deverá ter já explicado nas Lições do Direito da natureza Social12.

O capítulo V do Livro II, na parte referente à disciplina Jurisprudencia Natural dos

Cursos Jurídicos, pode-se ver a importância que este curso deve ter tido para a formação

de José Bonifácio, principalmente para entendermos a sua preocupação para com o

indivíduo, a economia e a política do Brasil. O texto alerta que o estudante:

Geralmente procurará ampliar, e profundar o conhecimento de outras Disciplinas Filosoficas: Pondo cuidado muito particular na maior instrução da Politica, e da Economica, as quaes lhe hão de dar muitas luzes para a exploração, e demonstração dos Officios do Homem no Direito da Natureza Social; no Social Economico; no Social Politico, ou Público Universal; e no Direito das Gentes. E por causa do Direito das Gentes cuidará tambem a Estadistica, ou a Razão de Estado.

Da mesma sorte cuidará em aperfeiçoar-se na Historia da Filosofia Antiga, e Moderna; na noticia das Vidas, e Opiniões dos Filósofos Antigos, e Modernos; dos seus differentes Systemas, Escritos, e Sentenças Moraes; principalmente dos Estoicos, que mais se avançáram na Filosofia Moral13.

12 UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Estatutos da Universidade de Coimbra, pp. 322-3. Os Estatutos formam um conjunto de três volumes: o primeiro referente ao Curso de Teologia, o segundo aos Cursos Jurídicos e o terceiro os “Cursos das Ciências Naturais e Filosóficos”, que compreendiam: Curso de Medicina, Curso de Matemática e de Filosofia Natural. Sempre que fizermos referência aos Estatutos, usaremos EUC.

(30)

Os mesmos Estatutos consideravam Hugo Grotius (1583-1645)14 e Samuel von

Pufendorf (1632-1694)15 os restauradores da disciplina do Direito Natural apesar de

criticar algumas de suas idéias e recomendar que os professores não utilizem, em suas

aulas, os textos destes autores. Detenhamo-nos nos Estatutos:

Como Cidadão livre, do Império da Razão procurará o Professor a verdade, a ordem, a deducção, o methodo, e a demonstração, onde quer que a achar. Onde aquelles dous Doutores se tiverem desviado da Justiça Natural; onde tiverem claudicado; onde os seus Discipulos se lhes tiverem adiantado em qualquer das referidas circunstancias; onde tiverem passado com a perspicacia dos seus discursos além dos marcos, e balizas, que Elles fixáram; onde Elle mesmo com o seu proprio entendimento atinar melhor com a Razão; deixará de seguillos, e abraçará sempre o melhor [...] Daqui vem serem diversos os Fundamentos, e Principios do Direito das Gentes; deverem ser procurados por outra parte, que não sejam os puros, e simples fundamentos, e principios dos Officios do Homem no Estado Natural [...] He pois impreterivel o estudo desta parte do Direito Natural. E com razão tanto mais forte, quanto mais consideraveis são os damnos, e mais funestas as consequencias da ignorancia della; pois que della póde resultar nada menos, que a perturbação do sosego, e a ruina, desolação das mesmas Nações16.

O que acabamos de expor aponta para a importância que os Estatutos conferiam ao

estudo da Filosofia por permitir:

14 Hugo Grotius é considerado o fundador do Direito Internacional, uma disciplina em que ele tentava buscar o equilíbrio do contexto internacional excessivamente belicoso em sua época. A sua obra De Iure Belli ac

Pacis Libri Três (Direito da Guerra e da Paz) é considerada a matriz do Direito Internacional.

Especificamente no que se refere ao caso brasileiro, Grotius é importante não só pelo seu profundo conhecimento das causas portuguesas como também pelo seu tratado sobre os povos da América (Dissertatio de Origine Gentium Americanarum).

15 Samuel von Pufendorf é considerado o mestre do Direito Natural das Gentes. Ele defendia a tese da existência de um contrato duplo entre a vontade individual e as obrigações dos governados para com os governantes.

(31)

[...]conhecer bem a natureza das idéas simples, e compostas; em saber a arte de combinallas; em ser bem instruido no methodo de descubrir as verdades por meio da meditação; de communicallas com ordem, precisão, e clareza; e em adquirir hum bom criterio da verdade para saber discorrer com segurança, e certeza, e não se enganar na deducção das Leis Naturaes17.

Justamente por isso, os aspirantes ao Curso Jurídico deveriam ter o conhecimento

de Filosofia Racional e Moral. No caso de não terem estudado esta disciplina, antes de

chegar à Universidade, eram obrigados a fazer dois anos do Curso Filosófico.

Além destes estudos preparatórios, os estudantes do Curso Jurídico eram obrigados

a cursar um ano de geometria, junto ao Curso de Matemática18. Os Estatutos na parte

referente ao Curso Jurídico consideravam que a geometria era:

[...] o melhor meio de se confirmar, e radicar no bom uso do espirito Geometrico, que deve ter adquirido; para poder discorrer com a ordem, com a precisão, e com a certeza, que pede o Methodo Demonstrativo; de que o mesmo Professor deverá usar nos progressos das suas deducções, e das demonstrações, que fizer dos Officios do Homem19.

Como vimos anteriormente, em 1784, José Bonifácio fez a sua matrícula no Curso

de Matemática, cumprindo certamente as disposições dos Estatutos. Ao contrário de

muitos de seus colegas, ele não foi obrigado a cursar as disciplinas do Curso Filosófico

antes de matricular-se no Curso Jurídico. Parece-nos que as aulas do Frei Dom Manuel da

Ressurreição teriam cumprido adequadamente o seu papel.20

17 EUC, p. 331.

18Ibid., p. 152.

19Ibid., p. 333.

(32)

De fato, em 1784, quando ele está cursando o 2º ano do Curso Jurídico,

matriculou-se também no Curso Filosófico, mas, como aluno “Ordinário”21, uma denominação usada

para aqueles que pretendiam obter pelo menos o Bacharelado em Filosofia Natural.

Vejamos alguns detalhes desse curso, que foi criado, como vimos, com a reforma da

Universidade de Coimbra.

Na Faculdade de Filosofia, José Bonifácio teve contato com disciplinas como

História Natural, Física Experimental e Química, introduzidos pela primeira vez na

Universidade de Coimbra.

As lições de História Natural, pormenorizadas nos Estatutos, deveriam dar aos

alunos:

[...] huma idéa da Natureza, e constituição do Mundo em Geral, e do Globo terrestre em particular. E ainda que a História natural comprhende todo o Universo; limitando-se com tudo aos objectos mais vizinhos ao Homem, e mais necessarios ao uso da vida; dividirá as suas Lições em três Partes, segundo a divisão dos tres Reinos da natureza, que são o Animal, o Vegetal e o Mineral22.

Terminados os estudos da História Natural, os alunos passariam à Física

Experimental onde “se incluem os factos conhecidos pela experiencia; que he uma

observação mais subtil, procurada por artificio para descubrir o véo da Natureza; e para lhe

perguntar os segredos mais reconditos das suas operações, quando ella por si mesma não

falla”23.

Também a química tinha o seu lugar como ciência no curso de Filosofia Natural,

que segundo o Estatuto acima referido:

21 EUC, pp 227 e 151.

22Ibid., pp. 239-40.

(33)

[...] ensina a separar as differentes substancias, que entram na Composição de hum Corpo; a examinar cada huma das partes; a indagar as propriedades, e analogias dellas; a comparallas, e combinallas com outras substancias; e a produzir mixturas differentemente combinadas novos compostos, de que na mesma Natureza se não acha modello, nem exemplo24 .

Para as cadeiras das ciências naturais, foram contratados professores estrangeiros,

devido às dificuldades de encontrar estudiosos portugueses com a formação necessária.

Para a Física Experimental, foi nomeado Antonio Dalla Bella (1730 – 1823), que alguns

anos antes havia ensinado a disciplina no Colégio dos Nobres de Lisboa. Para a História

Natural e a Química foi nomeado Domingos Vandelli (1735-1816)25, professor também de

origem italiana como Dalla Bella26.

Em seus trabalhos, Vandelli insistia na importância de formar naturalistas que, recebendo

cargos do governo, realizariam viagens de reconhecimento do Reino Português e se incumbiriam de

outras atividades ligadas à indústria. Assim, poderemos entender a importância que Domingos Vandelli

depositava na figura do naturalista em suas viagens filosóficas27. A complementação dos estudos

desses naturalistas deveria ser mediante viagens de estudos pelos principais centros da Europa.

24 Ibid., p. 250.

25 Foi sócio fundador da Academia de Ciências de Lisboa e mestre de José Bonifácio.

26 Giovanni Antonio Dalla Bella foi nomeado pelo Marquês de Pombal como professor de Física Experimental na Universidade de Coimbra – considerada a melhor da Europa em sua época – de 1773 a 1790, quando então elaborou um compêndio de Física Experimental intitulado Physics Elementa. Foi também um dos fundadores da Academia de Ciências de Lisboa. Veja-se mais sobre este assunto em Márcia Helena Mendes Ferraz, As ciências em Portugal e no Brasil (1772-1822): o texto conflituoso da química, p. 72 e seg. 27 Na obra citada de M. H. M. Ferraz, p. 153, encontramos os pontos idealizados e exigidos por Vandelli a um naturalista, extraído da sua obra: Memorias Economicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa, para o

adiantamento da Agricultura, das Artes e da Indústria em Portugal e suas conquistas”. São eles:

. análise das terras examinando seus principais constituintes para determinar a melhor conjugação planta-terreno; . atenção aos bosques e minas de carvão fóssil;

. estudo dos metais e minerais pesando no estabelecimento de fábricas para substituir os materiais importados; . conhecimento das plantas alimentícias e medicinais; e

. análise das águas minerais para fins medicamentosos.

(34)

Entretanto, cumpre-nos ressaltar que algumas viagens de estudo realizadas nos centros

europeus tinham outras finalidades que aquelas sugeridas por Vandelli. Essas viagens de

estudos foram supervisionadas pela Academia de Ciências de Lisboa, fundada em 1780 pelo

Duque de Lafões com a finalidade de incentivar as pesquisas científicas e utilizar suas

aplicações em prol da economia do reino. Por influência e amizade com o Duque (que admitia

um certo parentesco com os Andradas)28, os “brasileiros” José Bonifácio, Manuel Ferreira da

Câmara Bittencourt e Sá (1762-1835) e o português Joaquim Pedro Fragoso foram indicados

para a viagem de estudos pela Europa29. Às expensas da Coroa Portuguesa eles visitaram os

grandes centros europeus de conhecimento – todos amparados por uma Portaria datada de 1º

de março de 1790 30.

Conforme instruções do Ministro dos Estrangeiros e da Guerra, Luiz Pinto de

Souza, expedidas em 31/5/1790, a viagem pela Europa constava de realização de cursos

em química e mineralogia e visitas aos laboratórios e minas. Eles estavam ainda

autorizados a:

[...] “quando houver necessidade de se fazerem compras de livros da profissão, máquinas e modelos, que se devam adquirir e remeter para a Côrte de Lisboa, o chefe da expedição o representará ao Embaixador ou Ministério da Côrte onde se achar, para que mande satisfazer as despesas

necessárias de semelhantes aquisições 31.

Eles partiram para a capital francesa em 18 de fevereiro de 1790, onde José

Bonifácio freqüentou o curso de Química na École de Mines, no tumultuado período de

1790 a 1791. Neste estabelecimento, ele foi aluno de Antoine François Fourcroy

(1755-28 Veja-se O. T. de Sousa, José Bonifácio: história dos fundadores do Império do Brasil, p. 21. 29 M. H. M. Ferraz, op cit., p.159.

30 Esta Portaria lhes concedia um ajuda de custo de 600$000 a 800$000 (seiscentos a oitocentos mil-réis) para despesas conforme circunstâncias. Veja-se O. T. de Sousa, op. cit., p. 22.

(35)

1809)32 e René Just Haüy (1743-1822)33. Pelos notáveis trabalhos que realizou José

Bonifácio acabou sendo eleito membro da Société Philomatique de Paris e da Société

d’Histoire Naturelle de Paris. Para esta última, ele escreveu um trabalho intitulado

“Mémoire sur les Diamants du Brésil”34.

O envolvimento de José Bonifácio com Fourcroy e J. Chaptal (1756-1832) foi de

suma importância para a sua formação, não somente profissional como também para a

filosofia política, uma vez que estes franceses estavam por demais envolvidos no

movimento revolucionário que estava então em plena efervescência35.

A partir de 1792, José Bonifácio segue para a Saxônia onde freqüentou a Escola de

Minas de Freiberg, aperfeiçoando-se em Minas, Metalurgia, Orictognosia e Geognosia36.

Nesta escola, ele foi aluno do conceituado estudioso Abraham Gottlob Werner (1750-1817) e

colega de estudos de Alexander von Humboldt (1769-1859). Ainda no final deste ano foi

conhecer as minas do Tirol (Áustria), indo a seguir para Pávia (Itália), tendo recebido lições de

Alessandro Volta (1745-1827)37. Como se vê, José Bonifácio teve contato com estudiosos

importantes de sua época.

32 Fourcroy foi professor de química do jardim do rei desde 1794. Ele foi um dos responsáveis pela nomenclatura química e pela reorganização do ensino público francês. Foi também membro da Academia de Ciências e da Sociedade de Medicina. Mais tarde foi-lhe concedido o título de Conde de Fourcroy. Segundo Paul Virilio, além de engenheiro ele foi ainda diretor de fortificações. Em 1782 ele publicou “Ensaio para uma tabela paleométrica ou divertimento de um apreciador de mapas sobre os tamanhos de algumas cidades com uma planta ou tabela oferecendo comparação dessas cidades por meio de uma mesma escala”.

33 Abade Haüy, mineralogista de renome na França, foi um dos grandes estudiosos da cristalografia.

34 Veja-se E. de C. Falcão, op. cit., pp. 50-6. Conforme G. da Fonseca , op. cit., p. 108, o trabalho de José Bonifácio sobre os diamantes consta da Ata da Société d’Histoire Naturelle por influência de Fourcroy. 35 Jean Chaptal, foi professor de química e, posteriormente, intitulado Conde de Chanteloup e Ministro do Interior de Napoleão Bonaparte. No ano II da Revolução (1794), Fourcroy trabalhava no aperfeiçoamento da metalurgia e manufatura de armamentos enquanto Chaptal e Vauquelin dirigiam a indústria do salitre. É importante lembrar que quando da invasão de Lisboa pelas tropas francesas, sob o comando do Gal. Junot, a partir de 30 de novembro de 1806, José Bonifácio aliou-se à resistência portuguesa “dedicando-se ao fabrico de munições de guerra”, conforme consta de G. da Fonseca, op. cit., p. 114.

36 Por Orictognosia entende-se o estudo dos corpos minerais fósseis; e Geognosia o estudo da estrutura e composição da camada sólida da terra.

(36)

José Bonifácio vai ser encontrado na Suécia e Noruega a partir de 1796, onde

pesquisou as minas de Arendal, Sahla, Krageroe e Laugbansita38. Foi justamente neste período

que sua fama de mineralogista se fez pela descoberta de quatro novas espécies de minerais:

petalita, espodumênio, escapolita e criolita. Além destas, José Bonifácio descreveu mais oito

espécies já conhecidas: epídoto, ealita, cocolita, ictiftalmio, indicolita, agrigita, alocroíta e

wernerita, sendo que esta última foi assim denominada em homenagem ao seu mestre A . G.

Werner 39.

José Bonifácio teve seu primeiro reconhecimento científico em Portugal ao ser

indicado em 1799, para membro da Academia Real de Ciências de Lisboa, quando ainda

estava em viagem de estudos pela Europa. A partir de então, tornou-se membro de várias

outras instituições acadêmicas importantes40.

Após dez anos e três meses de incursões de estudos pela Europa, José Bonifácio

retornou a Portugal e a partir de 1801 começou a assumir cargos importantes no governo

português, com destaque para:

a) Intendente Geral das Minas e Metais do Reino em 25/8/1801 e designado

Membro do Tribunal de Minas – tribunal encarregado de dirigir as Casas da Moeda, Minas

e Bosques de todos os domínios portugueses;

38 O. T. de Sousa. José Bonifácio: história dos fundadores do Império do Brasil, pp. 27 e seg.

39 Conforme o Dicionário de Mineralogia e Geologia, a Petalita é uma variedade de feldspato formada de silicato natural de alumínio e lítio (Li Na) (AlSi4O10); o Espodumênio é um mineral de alumínio e lítio LiAl (Si2O6); a Escapolita é um mineral intermediário entre meionita e marialita, contendo de 46% a 54% de sílica; e a Criolita é um fluoreto duplo natural de sódio e alumínio existente na Groêlandia. Posteriormente Werner retribuiu a homenagem a José Bonifácio com uma de suas descobertas, a Andradita , ou seja, uma variedade de granada ferro-calcária, formada de silicato natural de calcário e ferro Ca3Fe2 (SiO4)3, conforme o Dicionário supramencionado. Abraham Gottlob Werner (1749-1817) é considerado um dos fundadores da moderna mineralogia juntamente com o escocês James Hutton (1726-1797). Ele defendia a tese do netunismo, teoria que tentava explicar as formações geológicas a partir de um oceano em que as formações se davam por depósitos. Também foi mestre de José Bonifácio.

(37)

b) Diretoria do Real Laboratório da Casa da Moeda de Lisboa, em 12/11/1801;

c) Responsável pela cadeira de Metalurgia da Universidade de Coimbra, em 1801;

d) Desembargador da Relação e Casa do Porto, em 08/8/1806; e

e) Secretário Perpétuo da Academia Real das Ciências de Lisboa, em 181041.

De todos os cargos que José Bonifácio assumiu, nem todos foram exercidos a

contento, devido, em parte, aos excessos das obrigações e a falta de material adequado para

realizar seu trabalho. Há, ainda, que se considerar os obstáculos impostos pela burocracia

portuguesa, que, aliada à “inveja”42 e aos ressentimentos, acabaram por tornar

desagradável a permanência dele em solo lusitano. Um único caso pode bem exemplificar

isso: ao ser nomeado para a cátedra de metalurgia na Universidade de Coimbra, José

Bonifácio recebeu o capelo doutoral na Faculdade de Filosofia em 20/6/1802, sendo

dispensado da defesa de tese43. Ele aceitou o cargo com a ressalva de que o faria ‘como

vassalo fiel, bem que não fôsse êste lugar de gôsto e vontade sua’44. Em uma carta

endereçada ao Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra (1804-1808),

41 Além dos cargos mencionados a seguir, José Bonifácio assumiu também outros encargos tais como: administrador das “Minas de carvão de Buarcos (mina de carvão e pedra) para restabelecer as fundições de Figueiró dos Vinhos e de Avelar” (fundição de ferro), em junho de 1801; Superintendente das Obras Públicas de Coimbra; Encarregado de ativar as sementeiras de pinhais de Couto de Lavos, tendo em vista a proteção do litoral Português, em 1802; Superintendente do Rio Mondego e Obras Públicas de Coimbra e Diretor das Obras de Encanamento e Serviços Hidráulicos e provedor de Finta de Maralhães em 1807. José Bonifácio criou, ainda, o Corpo Militar Acadêmico em Coimbra, tendo em vista a resistência às invasões das tropas francesas em Portugal, tendo sido promovido ao posto de Major e, posteriormente, Tenente Coronel e Coronel. Foi também Intendente da Polícia do Porto e Superintendente da Alfândega e da Marinha em 1809. 42 Segundo O. T. de Sousa, op. cit., p. 54., encontramos uma reclamação de José Bonifácio em relação a Portugal, “onde a inveja e a presunção suscitam a cada canto e a cada hora inimigos”. A inveja que ele se refere é certamente devida ao Conde de Figueiró - Luís de Vasconcelos e Souza (1742-1807) – 4º Vice-Rei do Brasil no Rio de Janeiro (1779-1790), que hostilizou José Bonifácio quando este foi Intendente Geral das Minas e Moedas do Reino.

(38)

Antônio de Araújo Azevedo (Conde da Barca)45, ele dizia que na universidade “não há

coleção mineralógica que sirva e valha coisa alguma”46.

Ao que tudo indica, o desinteresse pela cátedra não era um atributo exclusivo de

José Bonifácio, haja vista que apenas seis estudantes estavam matriculados no segundo ano

de funcionamento do curso. Um texto de sua autoria denominado “Causas da

não-prosperidade das ciências naturais em Portugal”, enumera 20 prováveis causas

responsáveis pelo atraso científico, dentre elas algumas ligadas às condições em que se

encontrava o sistema de ensino português nesse período, a saber:

[...] a falta de museus, gabinetes de física, e laboratórios; [...] o péssimo estado das mesmas ciências naturais na universidade por falta de mestres hábeis etc.; a ignorância crassa do povo, e dos chamados sábios; [...] a carestia de imprensas, e a falta de gravadores hábeis para abrir estampas [...] falta de aulas de desenho [...] 47.

As críticas de José Bonifácio não pouparam sequer seus colegas do corpo docente

da instituição, que foram classificados como “sátrapas da universidade atrevidos e

pedantes”48. Não bastassem todas essas dificuldades, José Bonifácio teve que suportar as

conseqüências de ter um inimigo no poder, o Ministro D. Luís de Vasconcelos, autoridade

máxima do Real Erário e substituto de D. Rodrigo de S. Coutinho. A este Ministro José

Bonifácio havia feito referência em discurso numa sessão da Academia de Ciências de

Lisboa, no qual o chamou de “ignorante”. A partir de então, a burocracia portuguesa se

45 O conde foi também ministro plenipotenciário na Rússia de 1801 a 1804. Foi nomeado Conselheiro de Estado em 1807 e Secretário dos negócios dos Estrangeiros e da Guerra. Em 1814, foi nomeado Ministro da marinha e recebeu o título de conde em 1815, sendo o responsável direto pela vinda da Missão Artística Francesa ao Brasil.

46 O. T. de Souza, op. cit., p. 38. É digno de nota que, o inventário e a classificação da coleção do Museu Real da Ajuda, foi obra de José Bonifácio, como também “arrolou pacientemente a maior parte das inscrições romanas que encontrou em velhas pedras e monumentos do país, transcrevendo-as e traduzindo-as” (conforme o mesmo autor, p. 54).

(39)

voltou contra as intenções de José Bonifácio, por um lado, impedindo a realização de seu

trabalho, por outro, não atendendo às suas solicitações, de tal forma que:

[...] na Intendência-Geral das Minas nada mais funcionou direito, suprimiram-se os recursos financeiros, interromperam-se os trabalhos; a mina de carvão de Buarcos foi inundada e os depósitos se perderam; uma máquina de valor de 20.000 cruzados, chegada da Inglaterra, ficou abandonada no pôrto de desembarque49.

José Bonifácio tentou por várias vezes retornar ao Brasil. Em 1809, ele havia

conseguido uma licença com o Ministro Conde de Aguiar válida por um período de 12

meses, mas na obrigação de retornar à Europa assim que fosse esgotado o prazo.

Entretanto, a sua viagem foi protelada para o ano seguinte50, e outra vez mais por mais um

ano, até que em 1811 ele desistiu. Em 1818 ele voltou a pedir a referida licença quando

então foi vítima de mais um incidente com a burocracia portuguesa, o que dificultou a

realização de suas pretensões de retornar à terra natal. Após vencer uma série de

obstáculos, José Bonifácio conseguiu finalmente o visto de saída em seu passaporte com

data de 19 de agosto de 1819.

Ao chegar ao Brasil, ele encontrou o seu irmão Martim Francisco, Inspetor das

Minas de São Paulo, com o qual realizou uma viagem de pesquisa mineralógica pelo

interior desta província, entre 23 de março e 5 de maio de 1820, envolvendo-se, como em

Portugal, com os trabalhos em história natural, mineralogia e metalurgia51.

49Idem., p. 43.

50 Em janeiro de 1810, José Bonifácio chegou a encaixotar seus pertences e pediu “três mil cruzados” emprestados de seu irmão Martim Francisco para viajar no mês de agosto. Veja-se O.T. de Sousa, op. cit., pp. 58-60 e 65. 51 Veja-se descrições completas desta viagem em E. de C. Falcão, op. cit., p. 477-500., ou ainda em David Carneiro, A vida gloriosa de José Bonifácio de Andrada e Silva e sua atuação na Independência do Brasil,

1977, pp. 66 e seg. ou ainda em E. de C. Falcão, org, Estudos vários sôbre José Bonifácio de Andrada e

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Algum tempo depois, José Bonifácio começa a exercer cargos que o tornariam

conhecido como político e que exigiram muito mais de seus conhecimentos em Direito,

distanciando-o, de certa forma, de seus interesses em Ciências Naturais. Assim, em janeiro

de 1822, José Bonifácio tornou-se Vice-Presidente da Junta Governativa da Província de

São Paulo, mas já estava nomeado Ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros, cargo

que, com a Independência, passaria a ser denominado de Ministro do Império e dos

Estrangeiros. Aí permaneceu até 17 de julho de 1823, quando foi demitido por

divergências com D. Pedro I. Retornou assim à Assembléia Geral Constituinte e

Legislativa para ocupar a cadeira de deputado conquistada pela província natal.

Na Assembléia, José Bonifácio iria permanecer até o dia 12 de novembro de 1823,

quando aquele órgão foi dissolvido pelo Imperador. Juntamente com seus dois irmãos,

acabou sendo preso e enviado para o exílio na França em 20 de novembro do mesmo ano,

passando a viver em Bordeaux.

Foi justamente como deputado que José Bonifácio apresentou o seu projeto

“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, que será o

objeto central de nossa análise a partir da Segunda Parte do presente estudo.

No próximo capítulo, veremos como os discursos de José Bonifácio foram

permeados pelas idéias políticas e filosóficas que estavam em discussão na Europa do

(41)

CAPÍTULO II

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A formação de naturalista de José Bonifácio na Universidade de Coimbra, bem

como suas viagens de exploração e conhecimento pelos melhores centros de ensino

europeu, lhe deram a oportunidade de estar em contato com o que havia de melhor em

termos de produção científica e filosófica da época. A sua formação deu-se num período de

efervescência política na Europa - de 1783, quando se matriculou na Universidade a 1800,

quando retornou de suas viagens. Conforme exposto no Capítulo anterior, as excursões

científicas que ele realizou proporcionaram-lhe conhecer vários centros de pesquisas e

cientistas de renome, como: Fourcroy, Werner, Volta, Priestley, Chaptal, Haüy, Vauquelin,

Duhamel, Jussieu, Le Sage, entre outros.

Além de ter conhecido vários laboratórios, ele teve a oportunidade de trabalhar com

o que havia de melhor em termos de conhecimentos e equipamentos. Por meio de seus

mestres ou por influência de amigos, ele teria sido introduzido no pensamento iluminista

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