• Nenhum resultado encontrado

AÇÃO POLÍTICA POR MEIO DO CONSUMO

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 125-130)

4 CONSUMO E SUSTENTABILIDADE

4.1 AÇÃO POLÍTICA POR MEIO DO CONSUMO

A cidadania, enquanto ação política, pode ser entendida genericamente como a possibilidade de colaborar, direta ou indiretamente, nos destinos da sociedade através da participação cívica. O conceito clássico da cidadania é extraído da antiguidade grega, em que os cidadãos debatiam seu destino coletivo na Ágora. Na modernidade, um exemplo mais imediato do exercício da ação política é o sufrágio de voto.

No entanto, Gilberto Dupas traça um diagnóstico da sociedade contemporânea (ou pós-moderna) apontando para um cenário de crise da civilidade e aversão do indivíduo à esfera pública:

291BADUE, Ana Flavia Borges et al. Manual pedagógico: entender para intervir. Por uma educação para o

A crise da civilidade e a intensificação do narcisismo levam, assim, a uma emancipação do indivíduo de todo o enquadramento normativo, aversão à esfera pública e sua consequente degradação. A liberdade passa a ser percebida como possível unicamente na esfera privada e gera progressiva privatização da cidadania 292.

Em contraposição ao cenário de descrença nas instituições políticas tradicionais, nasce um movimento não institucional do político. Enquanto na modernidade clássica o conceito de política era sinônimo de abandono da esfera privada para dedicação à esfera pública, atualmente, com a invasão do político na esfera privada, aponta-se para novas formas do exercício da ação política. Na medida em que há uma redução da participação pública nas esferas tradicionais, o conceito de política é ampliado, permitindo a incorporação de novas formas de participação cidadã, agora centradas também na esfera privada293. É o que Ulrich Beck chama de subpolítica da sociedade mundial 294, ou seja, a cidadania exercida fora das esferas classificadas oficialmente como políticas, como na economia, na ciência, nos laboratórios técnicos e na própria vida privada. Seriam as novas formas de exercer a política em lugares sociais que antes se consideravam apolíticos295.

Paralelamente a esse diagnóstico, Ulrich Beck também atenta para o fato de que a questão ambiental enfrentada nos tempos modernos, com a conscientização da finitude dos recursos naturais, submete o mundo empresarial à escolha entre dois papéis antagônicos: o de herói ou colaborador da natureza; e o de vilão, destruidor da perspectiva de vida às futuras gerações296. Nesse universo maniqueísta, a opinião pública desempenha papel de juiz, e assim ganha força de intervenção nas fortalezas empresariais ao lado de governos e da administração297.

292DUPAS, Gilberto. Tensões contemporâneas entre o público e o privado. São Paulo: Paz e Terra, 2003,

p.15.

293PORTILHO, Fátima; CASTAÑEDA, Marcelo; CASTRO, Inês Rugani Ribeiro de. A alimentação no

contexto contemporâneo: consumo, ação política e sustentabilidade . Ciência & saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, jan. 2011. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011000100014>. Acesso em: 11 nov. 2013.

294BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Ventiuno de España Editores, 2002, p. 64. 295Ibid, p. 146.

296BECK, Ulrich. Op. cit. p. 163. 297Ibid. p. 160.

La invasion de la economia por la ecologia abre la primera a la política. La industria y el mundo de los negocios se convierten en una empresa política en el sentido de que la configuración de la propia empresa su política organizativa y de personal, el espectro de productos y el desarrollo de la producción, las inversiones tecnicas a gran escala y las estructuras organizativas ya no puede desarrollarse a puerta cerrada so capa de limitaciones objetivas y del sistema. En vez de esto, todas estas actividades están rodeadas por otras alternativas, lo que quiere decir que otras expectativas, agentes y consideraciones, así como consultas a los consumidores, tienen un efecto sobre grupos de gestores que anteriormente gobernaban en solitario, y, por tanto apoliticamente 298.

Ulrich Beck enfatiza que uma sociedade que desperta do pessimismo acerca da confrontação e concebe a questão ambiental como um dom para a reforma da modernidade industrial, previamente fadada aos desastres ecológicos, pode explorar o potencial dos papéis de ajuda e heroísmo e cobrar ações a partir deles, não para estimular uma cosmética ecológica baseada na construção de imagens, mas sim para garantir realmente a viabilidade de um novo modus operandi, a nosso ver, baseado na ética da sustentabilidade299.

Tendo em vista essas considerações, diversos cientistas sociais observam o nascimento de uma nova forma de exercício político, baseado nas escolhas de consumo como fomentadores da ética da sustentabilidade. Essa nova forma de interferência no público, a partir do privado, tem sido denominada como consumo político . É o que entendemos aqui como ação política por meio do consumo , onde as escolhas cotidianas ligadas ao consumo são percebidas pelo indivíduo (ou grupos de indivíduos) como um poder de influência nos rumos do mercado e da sociedade como um todo as condutas pessoais são diretamente relacionadas aos seus impactos globais.

Entendemos como consumo político a percepção e o uso das práticas e escolhas de consumo como uma forma de participação na esfera pública (Gabriel et al.11; Halkier4; Goodman et al.12; Micheletti13; Portilho14; Stolle et al.6; Halkier et al.15).

298Ibid, p. 159.

299 Sólo una sociedade que despierta del pesimismo de la constelación de confrontación y concibe la

cuestión medioambiental como un don providencial para la autorreforma universal de una modernidad industrial previamente fatalista puede explotar el potencial de los papeles de ayuda y heroísmo y cobrar ímpetu a partir de ellos, no para llevar a cabo una cosmética ecologista a gran escala, sino para garantizar realmente su viabilidad futura. Ibid, p. 164.

Trata-se de uma tentativa de dar concretude à adesão a valores em prol de melhorias sociais e ambientais, materializando-os e tornando-os públicos. Neste contexto, as ações e escolhas mais triviais e cotidianas são percebidas como podendo influenciar rumos globais, ao mesmo tempo em que se tornam globalmente determinadas (Giddens9). Desta forma, a vida privada torna-se o lócus de um novo tipo de ação política em que o aspecto politizador se constitui no fato de que o microcosmo das condutas pessoais se inter-relaciona ao macrocosmo dos problemas globais (Beck16) 300.

Uma nova noção de cidadania extrapola a estrutura formal da sociedade e territorial do Estado, e passa a incorporar também as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento e identidade social. O exercício da cidadania através do consumo político possibilitaria a percepção por parte do consumidor do significado de suas próprias ações em relação aos seus efeitos no meio ambiente e em outros grupos sociais, conectando as esferas local e global301. E, conforme aponta Fátima Portilho, isso poderia produzir sentimentos de cidadania mais fortes, uma vez que os consumidores passariam a ver suas próprias práticas como pertencendo a uma comunidade política mais ampla 302.

No contexto de desregulamentação, globalização dos mercados, transnacionalização dos atores sociais e de centralidade do consumo, observamos também uma mudança de foco dos movimentos sociais, tendo em vista a busca por formas inovadoras de ação política, com destaque para o uso de mecanismos econômicos para cumprir objetivos sociais. Pode-se dizer que o mercado passa a ser cenário de atuação dos chamados novos movimentos sociais econômicos303.

Fátima Portilho observa que, diante de um movimento de incorporação de valores como solidariedade, responsabilidade nos discursos, escolhas e práticas de consumo, que acabam consolidando uma nova forma de ação política e participação na esfera pública, ganham força novas propostas de movimentos sociais. Economia Solidária, Comércio Justo, Produtos Orgânicos, Indicação Geográfica e Slow Food seriam exemplos de movimentos 300PORTILHO, Fátima; CASTAÑEDA, Marcelo; CASTRO, Inês Rugani Ribeiro de. A alimentação no

contexto contemporâneo: consumo, ação política e sustentabilidade . Ciência & saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, jan. 2011. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011000100014>. Acesso em: 11 nov. 2013.

301GIDDENS, Antony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.

302PORTILHO, Fátima. Novos atores no mercado: movimentos sociais econômicos e consumidores

politizados. Revista Política e Sociedade . Dossiê Sociologia Econômica. Vol. 8, n. 15, 2009, p. 219.

sociais econômicos que inserem novos valores e redefinem o mercado304. Inclui-se nesse conceito os movimentos de consumidores.

Conforme explica Fátima Portilho, os movimentos de consumidores podem distinguir-se em, pelo menos, três categorias distintas, quais sejam, os movimentos de defesa dos direitos dos consumidores, os movimentos anticonsumo e os movimentos pró- consumo responsável. O primeiro, também chamado de movimento consumerista, busca essencialmente a correção das assimetrias entre fornecedores e consumidores na relação de consumo, atuando com foco na esfera jurídica e considerando os direitos dos consumidores como direitos dos cidadãos em suas relações com o mercado305. Já os movimentos anticonsumo nascem do discurso contra o luxo, a opulência, o desperdício, o hedonismo, e foram atualizados pelos movimentos ambientalistas e sua crítica aos impactos ambientais dos padrões e níveis de consumo das sociedades contemporâneas. Por sua vez, os movimentos pró-consumo responsável surgem na esteira dos movimentos de ampliação da cidadania, percebendo os consumidores, não como vítimas, mas como importantes e decisivos atores do mercado e enfatizando a autoatribuição de responsabilidades por parte dos consumidores individuais306.

Saindo da esfera dos movimentos de consumidores organizados, observa-se também o consumidor individual, orientando suas escolhas conforme preocupações e valores em prol do meio ambiente e da justiça social, de forma a incidir em uma ação política.

Alguns exemplos do consumo político podem ser observados nas práticas de boicotes (negação do consumo de produtos e serviços por considerações sociais e/ou ambientais), buycotts ou compras responsáveis (opção intencional por produtos e serviços percebidos como social e/ou ambientalmente amigos), petições on-line e no uso consciente de recursos naturais na esfera doméstica (água, energia, automóvel, separação de lixo, compostagem etc.). Essas práticas, consideradas mais autônomas, menos hierárquicas e não institucionalizadas de participação, seriam as referidas novas possibilidades de participação política tendo em vista os meios tradicionais, tais quais sindicatos, partidos, eleições e movimentos sociais institucionalizados.

304Ibid, p. 203.

305RIOS, Josué de Oliveira; LAZZARINI, Marilena & NUNES Jr., Vidal Serrano (orgs.). Código de defesa

do consumidor comentado. Série Cidadania. São Paulo: Idec/Globo, 2001.

Essas novas interferências fazem com que o conceito de consumo e de sociedade de consumo sejam repensados pelas ciências sociais, uma vez que características tradicionalmente ligadas a esses termos, tais quais individualismo, insaciabilidade, superficialidade e alienação, são contrapostas às novas práticas de consumo diretamente relacionadas a valores como solidariedade, responsabilidade, participação social e cidadania307.

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 125-130)