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ALIMENTAÇÃO COMO DIREITO NO BRASIL

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 47-50)

Não se pode comentar o processo de consideração da alimentação como direito no Brasil sem citar o legado da obra de Josué de Castro, médico e sociólogo internacionalmente conhecido que atuou entre os anos de 1933 e 1973. Seu trabalho possibilitou a mudança de viés sobre os determinantes da fome, passando da esfera exclusivamente biológica para as causas políticas, econômicas e sociais. Sobre isso, Josué de Castro esclarece:

Querer justificar a fome do mundo como um fenômeno natural e inevitável não passa de uma técnica de mistificação para ocultar as suas verdadeiras causas que foram, no passado, o tipo de exploração colonial imposto à maioria dos povos do mundo, e, no presente, o neocolonialismo econômico a que estão submetidos os países de economia primária, dependentes, subdesenvolvidos, que são também países de fome 86.

A partir dos alertas trazidos pelo intelectual Josué de Castro, deu-se início a algumas políticas públicas essenciais para o campo da alimentação nos anos 1940-50, como, por exemplo, a criação dos primeiros serviços de alimentação coletiva, a 85MALUF, Renato S. Op cit., p. 22.

86CASTRO, Josué de. Explosão demográfica e a fome no mundo . Civillità delle Machine, julago de 1968,

Campanha de Merenda Escolar e a instituição do salário mínimo. Em 1964, instaurou-se a ditadura militar no Brasil que durou 20 anos, período marcado pela supressão de direitos civis e políticos e pelo acirramento da desigualdade social. Apenas na década de 80, com o aumento das pressões pela redemocratização que emergem as reivindicações sociais contra a fome e pela segurança alimentar e nutricional. Realizou-se em 1986 a I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, cujo relatório final fazia menção à alimentação como um direito, assim como se esboçava o conceito de segurança alimentar e nutricional 87.

Durante a década de 1990 até o início dos anos 2000 algumas iniciativas88 se destacaram para a consolidação do conceito de SAN e para seu reconhecimento como objetivo de ações e políticas públicas.

Em 2003, o Governo Federal recriou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), cuja composição é de 2/3 de representantes da sociedade civil e 1/3 de representantes governamentais, e funciona como um órgão de assessoramento imediato da Presidência da República. Com o Consea retoma-se o debate acerca da alimentação como um direito humano, enfatizando a importância das articulações intersetoriais e da participação social para o alcance do DHAA. A partir de então, começa a se construir o arcabouço legal e institucional para a proteção e promoção desse direito. A lei que trata do tema é a Lei nº 11.236, de 15 de setembro de 2006, denominada Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan)89, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

A Losan define os princípios do sistema, quais sejam: universalidade, equidade, autonomia, participação social e transparência. Tal lei recomenda a elaboração de uma Política (PNSAN) e um Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan). A

87LEÃO, Marília; MALUF, Renato. A construção social de um sistema público de segurança alimentar e

nutricional: a experiência brasileira. Brasília: Abrandh, 2012, p. 14.

88Uma proposta de Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi apresentada pelo Governo

Paralelo (grupo de militantes organizados após a derrota dos partidos de esquerda, coordenado por Luiz Inácio Lula da Silva, que veio a se tornar presidente do Brasil nas eleições de 2002). Tal documento,

apresentado em 1991 à sociedade, mencionava a criação de um Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, base para a primeira e efêmera experiência de um Consea que funcionou entre 1993 e 1994. Posteriormente, a organização não governamental Instituto Cidadania apresentou uma nova proposta de política de segurança alimentar, agregando contribuições de diversos membros da sociedade civil. Tal documento fora chamado de Projeto Fome Zero , inspirando posteriormente o programa de governo do presidente Lula em 2003.

LEÃO, Marília; MALUF, Renato. A construção social de um sistema público de segurança alimentar e nutricional: a experiência brasileira. Brasília: Abrandh, 2012, p. 18.

89BRASIL. Lei Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan). Lei n. 11.346 de 15 de setembro de

Política apresenta os procedimentos para colocar em prática as diretrizes da Losan (como as atribuições dos entes federativos, os procedimentos de gestão, financiamento, monitoramento e avaliação da ação do Estado). Por sua vez, o Plano é um instrumento de planejamento da ação do Estado, informando os programas e as ações a serem postas em prática, as metas e o tempo de seu cumprimento, tendo em vista a alocação de recursos do orçamento público90.

O Sisan é o sistema público que articula diversos setores de governo para a coordenação das políticas de segurança alimentar e nutricional. São instâncias máximas da gestão do Sisan na esfera federal91:

 A Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional92: 2/3 de seus participantes são da sociedade civil e 1/3 do governo; ocorre a cada quatro anos para indicar ao Consea as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de SAN e para avaliar o Sisan;

 O Consea: 2/3 dos seus conselheiros são da sociedade civil e 1/3 do governo; é um órgão de assessoramento direto da presidência da república, propõe diretrizes, prioridades e indica o orçamento necessário à Política e ao Plano de SAN;

 A Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan): integrada por Ministros de Estado e Secretários Especiais; elabora a Política e o Plano de SAN a partir das diretrizes do Consea.

No ano de 2010, o marco regulatório do DHAA é reforçado por um importante feito, fruto de uma ampla mobilização social: a aprovação da Emenda Constitucional nº 64, que inclui a alimentação entre os direitos sociais da Nação, ao lado da educação, da saúde, do trabalho, da moradia, entre outros direitos positivados no artigo 6º da Constituição Federal93.

Destacamos que, além de disposição constitucional sobre o direito à alimentação, a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346/2006) afirma o direito humano à 90LEÃO, Marília; MALUF, Renato. A construção social de um sistema público de segurança alimentar e

nutricional: a experiência brasileira. Brasília: Abrandh, 2012, p. 28-29.

91LEÃO, Marília; MALUF, Renato.Op. Cit., p. 30.

92Aqui reiteramos a importância da definição de SAN elaborada na II Conferência Nacional de SAN

realizada em Olinda, em 2004, conforme comentamos anteriormente.

93BRASIL. Constituição Federal. 1988

Art. 6. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 64, de 2010)

alimentação adequada e a obrigação do poder público em adotar políticas e ações para sua promoção:

Art. 2º A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.

§ 1º A adoção dessas políticas e ações deverá levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais.

§ 2º É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação

adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade.

Uma vez exposto esse breve cenário da concepção do direito à alimentação no Brasil e no mundo, cumpre-nos dissertar sobre a natureza jurídica desse direito.

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 47-50)