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Justiciabilidade das Obrigações de Respeitar, Proteger, Promover e Prover o Direito à

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 162-165)

3 O PAPEL DO ESTADO

3.2 JUSTICIABILIDADE DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO

3.2.1 Justiciabilidade das Obrigações de Respeitar, Proteger, Promover e Prover o Direito à

Conforme já comentado na primeira parte deste trabalho, Asbjørn Eide391 desenvolveu uma tipologia dos diferentes níveis de obrigações dos Estados quanto ao direito humano à alimentação. Essas obrigações seriam: a obrigação de (i) respeitar; (ii) de

389Ibid, p. 598. 390Ibid, p. 596.

proteger; (iii) de promover; e (iv) de prover direitos humanos392. A jurisprudência nacional e internacional demonstra a possibilidade de justiciabilidade dessas obrigações.

A título de ilustração, trazemos o caso Ogoni393, em que a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (ComADHP) reconheceu violação do direito à alimentação das comunidades Ogonis pelo governo da Nigéria devido à destruição das bases de sua alimentação. A ComADHP concluiu que o tratamento do governo às comunidades Ogoni violou os deveres mínimos do estado em relação ao direito à alimentação: o governo destruiu as fontes de alimentos com suas forças de segurança e com companhias petrolíferas estatais; permitiu que companhias petrolíferas privadas destruíssem as fontes de alimentos; e por meio do terror, impediu que as comunidades Origoni se autoalimentassem394. Dentre as medidas reparatórias determinadas pela ComADHP, o governo deveria corrigir a violação ao direito à alimentação, inclusive mediante pagamento de compensações e despoluição das terras e dos rios.

A obrigação de (i) respeitar o direito à alimentação diz respeito a uma obrigação de abstenção, não acarretando, à priori, despesa orçamentária específica. Um exemplo de violação dessa natureza encontra-se no caso Kenneth George, ocorrido na África do Sul, em que comunidades de pescadores tradicionais perderam acesso ao mar após a promulgação de uma lei sobre os recursos marinhos. As comunidades alegaram, perante a Alta Corte da Província de Cabo d Boa Esperança, que o governo violou a obrigações de respeitar o direito à alimentação e de não tomar medidas que impeçam cumprimento desse direito. A Corte ordenou acesso imediato ao mar aos pescadores e que o governo redigisse uma nova lei, com a participação das comunidades de pescadores tradicionais, para que seu direito à alimentação fosse respeitado395.

A obrigação de (ii) proteger imprime uma conduta positiva, como ilustração, a Corte Suprema da Índia determinou a obrigação do governo de proteger os direitos dos pescadores tradicionais de ter acesso ao mar, à terra e à água contra as atividades da

392Esses níveis de obrigações também são previstos no parágrafo 15 do Comentário Geral 12 do Comitê das

Nações Unidas sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (E/C.12/1999/5).

393ComADHP, Social and Economic Rights Action Center (SERAC), Center for Economic and Social Rights

v. Nigeria, 2001. Disponível em: <http://www.escr-net.org/sites/default/files/serac.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2013.

394Ibid, parágrafo 66.

395South Africa, High Court, Kenneth George and Others v. Minister of Environmental Affairs & Tourism,

indústria do camarão396 e os modos de subsistência das populações tribais contra as concessões outorgadas pelo Estado às companhias privadas397.

Por sua vez, as obrigação de (iii) promover e de (iv) prover o direito à alimentação é frequentemente associado ao dispêndio de recursos orçamentários, e por isso sua justiciabilidade acaba sendo mais dificultosa e questionada. Destacamos três principais situações em que essas obrigações são exigidas por meio da Justiça: (a) para o provimento de um mínimo existencial tendo em vista o abrigo da fome (núcleo duro do direito à alimentação); (b) para o controle da implementação de políticas já adotadas pelo poder público; (c) para o controle da apropriação e razoabilidade das políticas para realização do direito à alimentação.

Para exemplificar a primeira situação, Christophe Golay traz o caso argentino Defensor del Pueblo de la Nación c. Estado Nacional y otra398. A Corte Suprema argentina obrigou o governo nacional e o governo da Província do Chaco a prover acesso à alimentação e à água potável às comunidades indígenas que vivem na Província. Tratava- se de uma situação de urgência, onde as condições de vida deploráveis já tinham gerado onze mortes. Como justificativa para ordenar medidas positivas aos poderes executivos, a Corte invocou a gravidade da situação e seu papel de guardiã da Constituição e de seus direitos fundamentais. A Corte ressaltou que tal decisão não deveria ser vista como uma intromissão indevida do Poder Judiciário, uma vez que estava em jogo a tutela de direitos e o suprimento de omissões399. Nesse sentido, resta claro ser possível a demanda judicial por provimento de alimentos, na circunstância de grave ameaça ao mínimo existencial, de forma a garantir o núcleo duro do direito à alimentação, qual seja o de estar ao abrigo da fome. O provimento direto de alimentos (ou provimento de renda para aquisição de alimentos) é uma obrigação do Estado em relação aos grupos impossibilitados de obter a alimentação por conta própria, como, por exemplo, as vítimas de desastres naturais ou de guerras; os órfãos; minorias étnicas, idosos, doentes e crianças em situação de vulnerabilidade etc. A obrigação de prover alimentos adequados ocorre em caráter emergencial, sempre que as outras obrigações (respeitar, proteger e promover) não forem suficientes para garantir o direito humano à alimentação.

396India, Supreme Court, S. Jagannath Vs. Union of India and Ors, 1996. 397India, Supreme Court, Samatha Vs. State of Andhra Pradesh and Ors, 1997.

398Argentina, Corte Suprema de Justicia de la Nación, Defensor del Pueblo de la Nación c. Estado Nacional

y otra, 2007, par. 3.III.

399Argentina, Corte Suprema de Justicia de la Nación, Defensor del Pueblo de la Nación c. Estado Nacional

A segunda situação diz respeito ao controle da implementação de políticas públicas para a realização do direito à alimentação. Isso ocorre quando as próprias autoridades políticas assumem o compromisso em relação a determinada política, sendo mais fácil para o poder Judiciário exigir que essas propostas sejam implementadas. Como caso ilustrativo citamos o People s Union for Civil Liberties400, no qual várias comunidades passavam fome no Estado do Rajastão, na Índia, enquanto existiam estoques de alimentos não utilizados sendo comidos por ratos. A Suprema Corte da Índia proferiu diversas decisões provisórias, exigindo que os governos dos Estados da Índia implementassem os programas de distribuição de alimentação que foram elaborados pelo governo nacional.

Por fim, como exemplo da terceira situação justiciabilidade para o controle da apropriação e razoabilidade das políticas de alimentação, citamos decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Sawhoyamaxa v. Paraguay. A Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que o governo do Paraguai não havia adotado todas as medidas que poderia razoavelmente ter tomado para garantir o direito à vida e o direito à alimentação dos membros da comunidade Sawhoyamaxa. Tendo em vista a correção da violação, a Corte indicou diversas medidas que o governo devia tomar, como, por exemplo, compensação para as vítimas, reconhecimento de seus direitos sobre suas terras ancestrais, criação de um fundo de desenvolvimento para a comunidade e a distribuição de alimentação adequada até que eles voltem a ter um acesso completo a suas terras 401.

Com esses exemplos, ao refletirmos sobre a situação da produção agrícola não sustentável, ou seja, quando a produção de alimentos não respeita o princípio da precaução, coloca em risco a saúde humana, o meio ambiente, e desrespeita outros direitos humanos, estamos diante de uma afronta ao direito humano à alimentação, havendo assim fundamentação para a justiciabilidade.

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 162-165)