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SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 43-47)

A conceituação do Direito Humano à Alimentação veio em paralelo com outro importante conceito, qual seja, o da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN).

Existem diversas definições de SAN. Tal diversidade ocorre principalmente por essa noção ser utilizada para fundamentar proposições de políticas públicas, ficando assim suscetível às influências das partes envolvidas. As diferentes visões não obstam, no entanto, a construção de consensos ou acordos nesta seara74.

Inicialmente, o enfoque da segurança alimentar era restrito à disponibilidade de alimentos através da expansão da produção agrícola. Predominava-se o entendimento de que a insegurança alimentar decorria da produção insuficiente de alimentos nos países

fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em vista os perigos e riscos da poluição ambiental;

2. Protocolo Adicional às Convenções de Genebra Relativo à Proteção das Vítimas de Conflitos Armados Internacionais e Não Internacionais: versa em seu artigo 54 ser proibido utilizar, contra os civis, a fome como método de guerra; e ser proibido atacar, destruir, retirar ou por fora de uso bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, tais como os gêneros alimentícios e as zonas agrícolas que os produzem, colheitas, gado, instalações e reservas de água potável e obras de irrigação, com vista a privar, pelo seu valor de subsistência, a população civil ou a Parte adversa, qualquer que seja o motivo que inspire aqueles atos, seja para provocar a fome das pessoas civis, a sua deslocação ou qualquer outro.

3. Declaração Universal sobre a Erradicação da Fome e Desnutrição (1974): A Declaração Universal proclama que Todo homem, mulher e criança tem o direito inalienável de estar livre da fome e da desnutrição, a fim de desenvolver plenamente e manter suas faculdades físicas e mentais .

4. Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar Mundial (1996): A Declaração de Roma afirma no artigo 1.: Nós, os Chefes de Estado e de Governo, ou nossos representantes, reunidos na Cúpula Mundial da Alimentação a convite da FAO, reafirmamos o direito de toda pessoa de ter acesso a alimentos seguros e nutritivos, em consonância com o direito à alimentação adequada e o direito fundamental de toda pessoa de estar livre da fome .

5. Declaração sobre a Proteção de Mulheres e Crianças em Situação de Emergência e Conflitos Armados (1974): A Declaração indica que as mulheres e crianças que se encontrem em local de conflito armado, ou que vivem em territórios ocupados, não devem ser privadas de abrigo, alimentação, assistência médica ou outros direitos inalienáveis.

6. Declaração de Princípios da Conferência Mundial sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (1979): A Declaração diz no artigo 1 (7) que a pobreza, fome e desnutrição retardam os esforços nacionais de desenvolvimento e afetam negativamente a estabilidade do mundo social e econômico e que sua erradicação é o principal objetivo de desenvolvimento do mundo.

7. A Comissão do Código de Ética para Comércio Internacional do Codex Alimentarius (1979) reconheceu que a alimentação adequada, segura, e saudável é um elemento vital para a consecução dos padrões de vida aceitáveis.

pobres. Tal premissa servia como justificativa para o aumento da produtividade no modelo da Revolução Verde , com o crescente uso de novas variedades genéticas dependentes de insumos químicos e mecanização. Posteriormente, emergiram as consequências dessa estratégia, tais quais impacto na biodiversidade, contaminação do solo e de alimentos com agrotóxicos, êxodo rural, entre outros. Havia nesse período um enfoque predominante no produto (aumento da produtividade, regularidade no abastecimento), e não no ser humano, estando a dimensão do direito humano em segundo plano. Apesar do aumento da produtividade, paradoxalmente não houve redução no número de pessoas famintas no mundo75.

Com isso, a partir dos anos 1980 começa um movimento para enfatizar a capacidade de acesso aos alimentos pelos indivíduos e grupos sociais, com posterior extensão à capacidade dos países acessarem alimentos por meio do comércio internacional. Em contrapartida, num contexto de ascensão do neoliberalismo, especialistas procuravam deslocar o enfoque para o plano domiciliar e individual, retirando a relevância da esfera nacional em favor da dimensão micro ou local dos problemas76.

Assim, a noção de segurança alimentar passa a adquirir outras dimensões importantes: a da suficiência (proteção contra a fome e a desnutrição); a do acesso a alimentos seguros (não contaminados biológica ou quimicamente), de qualidade (nutricional, biológica, sanitária e tecnológica, que previna os males associados à

alimentação); adequação (alimentos produzidos e consumidos de forma ambientalmente

sustentável, socialmente justa, culturalmente aceitável e incorporando a ideia de acesso à informação)7778. Com isso, o conceito de segurança alimentar associa-se à necessidade de mudança do modo de produção baseado na Revolução Verde para um modo de produção econômica e ambientalmente sustentável, social e culturalmente justa.

No histórico de construção desse conceito, destacamos a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), ou Eco/92. Nessa ocasião foi organizada a Conferência Mundial da Sociedade Civil, que enviou suas

75BURITY, Valéria et al. Direito humano à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar e

nutricional. Brasília: Abrandh, 2010, p. 11.

76MALUF, Renato S. Op. cit., p. 31.

77BURITY, Valéria et al. Op. cit., 2010, p. 12.

propostas ao evento oficial, e o tema da Segurança Alimentar destacou-se, gerando um Tratado da Segurança Alimentar79.

Com o processo de especificação do direito humano à alimentação adequada, a SAN passa a ser entendida como uma estratégia para a garantia desse direito. Em outras palavras, é por meio de uma política de SAN que o Estado deve exercer suas obrigações relativas ao DHAA (respeitar, proteger, promover e prover). Esse direito, por sua vez, integra o objetivo de um estado físico ideal (estado de segurança alimentar e nutricional) aos princípios de direitos humanos (igualdade, participação, não discriminação etc.)80.

Cumpre-nos dar destaque à definição de SAN aprovada na II Conferência Nacional de SAN realizada em Olinda, em 2004. Tal definição contou com contribuições de movimentos sociais e de governos:

Segurança Alimentar e Nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que

sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis .

(Grifo nosso81)

Renato Maluf destaca três peculiaridades na noção nacional de segurança alimentar. A primeira diz respeito ao acréscimo do adjetivo nutricional , cujo propósito era integrar tanto o enfoque socioeconômico como o de saúde e nutrição. A segunda característica é a de englobar numa única noção Segurança Alimentar e Nutricional duas dimensões inseparáveis, quais sejam, disponibilidade de alimentos (food security segurança alimentar) e qualidade desses bens (food safety segurança dos alimentos). Com isso, colocar-se-iam em questão os modelos de produção e as referências de qualidade que se tornaram predominantes. O autor destaca ainda a peculiaridade do uso do vocábulo

segurança , que entre nós possui um significado forte82.

79Disponível em: <http://habitat.igc.org/treaties/at-19.htm>. Acesso em: 04 jun. 2012. 80BURITY, Valéria et al. Op. cit., 2010, p. 23.

81Grifamos as passagens que remetem à sustentabilidade, pois o tema será trabalhado em detalhes nos

capítulos seguintes.

Dessa forma, a SAN seria um objetivo de ações e políticas públicas como meio para a realização do direito humano à alimentação adequada. Mais recentemente, devido às demandas sociais, outros aspectos foram incorporados ao conceito de SAN, como sua interligação ao conceito de soberania alimentar:

Soberania alimentar é o direito dos povos definirem suas próprias políticas e

estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos,

que garantam o direito à alimentação para toda a população, com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade dos modos camponeses, pesqueiros e indígenas de produção agropecuária, de comercialização e gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental [ ]. A soberania alimentar é a via para erradicar a fome e a desnutrição e garantir a segurança alimentar duradoura e sustentável para

todos os povos .

(Grifo nosso83)

Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar. Havana (Cuba), 2001

O respeito à soberania alimentar passa a ser pressuposto para a consecução da SAN e, por sua vez, do direito humano à alimentação adequada. Esses três conceitos devem ser entendidos de forma integrada, assim, para se alcançar uma plena segurança alimentar e nutricional, não bastam a produção de quantidades e a ausência de sinais de desabastecimento (falta de bens), é necessário ter em conta também o modo como os alimentos são produzidos, comercializados e consumidos, se há uma consideração dos aspectos sociais, culturais e ambientais incidentes nesse processo. Deve, portanto, haver uma associação direta da condição social das populações e das relações que elas mantêm com a cultura e o ambiente84.

A afirmação da soberania alimentar como dimensão da SAN é fruto principalmente de uma reação da sociedade às ingerências de grandes corporações transnacionais que impõem certas formas de produção e consumo de alimentos de maneira totalmente dissociada das características locais e ainda provocam uma relação de dependência dos seus modos de produção.

83Grifamos as passagens que remetem à sustentabilidade, pois o tema será trabalhado em detalhes nos

capítulos seguintes.

Por fim, salientamos que a realização da SAN como objetivo de uma ação política é tarefa que vai de encontro com muitos interesses econômicos vigentes. Renato Maluf esclarece que a promoção da SAN requer o exercício soberano de políticas relacionadas aos alimentos e à alimentação que se sobreponham à lógica mercantil estrita isto é, à regulação privada e incorporem a perspectiva do direito humano à alimentação 85. Não podemos perder de vista a complexidade e os conflitos de interesse gerados pelos ditames da SAN e do DHAA. Pretendemos enfrentar esse tema ao longo da presente dissertação.

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 43-47)