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Cultivo Transgênico, Combate à Fome e Riscos Sociais

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 98-102)

3 PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E SUSTENTABILIDADE

3.1 O CASO DOS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS

3.1.4 Cultivo Transgênico, Combate à Fome e Riscos Sociais

O cultivo de organismos geneticamente modificados é frequentemente apresentado como um mecanismo de resolução dos problemas da fome e da subnutrição no mundo. Publiciza-se a ideia de eficiência na produção, uma vez que os genes de resistência a herbicidas ou de toxinas que destroem diretamente os predadores facilitariam a vida do agricultor através da limpeza mais rápida e eficiente da lavoura ou do fácil combate a pragas. Outras promessas relacionam-se ao enriquecimento das plantas transgênicas com nutrientes escassos em certas regiões do mundo, como, por exemplo, o caso do arroz dourado, no qual foi introduzido um gene de narciso amarelo que enriquece os grãos com beta-caroteno precursor da vitamina A sendo assim uma solução ao problema de avitaminose A em diversos países da África e da Ásia. Sobre essas considerações, Marc Dufumier enfrenta a questão: poderiam os OGMs alimentar o terceiro mundo?224

Antes de tecer qualquer consideração, vamos aos dados da fome e subnutrição hoje no mundo. De acordo com os dados da FAO estima-se que, no período 2011-13, 842 bilhões de pessoas (ou uma em cada oito pessoas) sofrem de fome crônica no mundo. A grande maioria das pessoas que sofrem de fome crônica, ou seja, que não têm alimentos suficientes para uma vida saudável e ativa, está nos países em desenvolvimento 827 milhões delas onde a prevalência de desnutrição é agora estimada em 14,3%, mas há 15,7 milhões de pessoas desnutridas que vivem em países desenvolvidos. O relatório da FAO alerta que políticas destinadas a melhorar a produtividade agrícola e aumentar a disponibilidade de alimentos, especialmente quando estão em foco os pequenos produtores, podem alcançar a redução da fome até nos locais onde a pobreza é generalizada. A FAO complementa que quando essas políticas são combinadas com proteção social e outras 223Ibid, p. 35.

224DUFUMIER, Marc. Os organismos geneticamente modificados (OGMS) poderiam alimentar o terceiro

mundo? . In: ZANONI, Magda; FERMENT, Gilles (orgs.). Transgênicos para quem? Agricultura, Ciência e Sociedade. Brasília: MDA, 2011, p. 380.

medidas que aumentam os rendimentos das famílias pobres para comprar comida, elas podem ter resultados ainda mais positivos para o eficaz desenvolvimento rural, estimulando a criação de mercado e oportunidades de emprego, tornando possível um crescimento econômico equitativo225. No entanto, a própria FAO conclui que a subnutrição mundial continua a ser inaceitavelmente alta226.

Em contrapartida, Marc Dufumier coloca que as produções alimentares não fazem falta na escala do planeta: elas atingem, em média, 300 quilos de equivalentes-cereais anuais por habitante (sendo que as necessidades não excedem 200 quilogramas por pessoa e por ano). Aponta-se porém, que essa disponibilidade alimentar é repartida de forma extremamente desigual. Por exemplo, grandes quantidades de grãos provenientes de países com excedentes de cereais (EUA, União Europeia, Argentina, Austrália etc.) destinam-se a alimentar animais domésticos, ao passo que certas populações do mundo não conseguem mais produzir cereais ou se abastecer. Marc Dufumier conclui que a fome e a subnutrição decorrem, de fato, essencialmente, da insuficiência de renda da qual são vítimas os habitantes mais pobres do nosso planeta 227. Tal conclusão se coaduna perfeitamente com a lição de Amartya Sen já anteriormente comentada nesse trabalho. No mesmo sentido, Olivier de Schutter aponta em seu relatório especial sobre o direito à alimentação que as causas da fome são associadas, principalmente, não à insu ciência de estoques ou à oferta global incapaz de atender a demanda, mas à pobreza; aumentar a renda dos mais pobres é a melhor maneira de combatê-la 228.

Cumpre destacar que, paradoxalmente, dois terços da população que passa fome no mundo é de camponeses. Trata-se de pessoas que possuem meios escassos para produzir sua própria alimentação ou para dispor de renda suficiente para adquirir alimentos no mercado. Em regra, a fome e subnutrição entre a população urbana também se relacionam com a pobreza no campo, que acaba estimulando a migração para as cidades. Assim, o 225FAO, IFAD, WFP. The State of Food Insecurity in the World . The multiple dimensions of food security.

Rome: FAO, 2013. Disponível em: <http://www.fao.org/docrep/018/i3434e/i3434e.pdf>. Acesso em: 03 out. 2013.

226FAO. El estado de inseguridad alimentaria en el mundo. Resumen, 2012. Disponível em:

<http://www.fao.org/docrep/016/i2845s/i2845s00.pdf>. Último acesso em: 31 ago. 2013.

227DUFUMIER, Marc. Os organismos geneticamente modificados (OGMS) poderiam alimentar o terceiro

mundo? . In: ZANONI, Magda; FERMENT, Gilles (orgs.). Transgênicos para quem? Agricultura, Ciência e Sociedade. Brasília: MDA, 2011, p. 381.

228CAISAN - Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Conselho de Direitos

Humanos. Décima sexta sessão. Item 3 da agenda Promoção e proteção de todos os direitos humanos, direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, inclusive o direito ao desenvolvimento. Relatório apresentado pelo Relator Especial sobre direito à alimentação, Olivier de Schutter. Brasília, DF: MDS, 2012, p. 15.

desafio central consiste em criar condições que permitam aos camponeses superar a pobreza e alimentar corretamente o planeta, sem, para isso, colocar o meio ambiente em perigo 229.

Reconhece-se o aumento na produtividade ocasionado pelos recursos da Revolução Verde , no entanto, priorizou-se certos cultivares (capazes de se desenvolver em todas as estações e latitudes), tendo em vista a economia de escala de modo a rentabilizar rapidamente os investimentos realizados com a pesquisa. Tais cultivos obrigam uma homogeinização do meio, demandando grandes investimentos em irrigações, drenagem, fertilização, uso de adubos químicos, inseticidas, fungicidas, herbicidas etc., o que inevitavelmente acarreta em risco de endividamento dos camponeses em questão e dependência em relação às empresas de sementes e às transnacionais da agroquímica. Marc Dufumier assevera que os camponeses que sofrem hoje de fome, e as famílias que migraram para as favelas urbanas, são na realidade os excluídos dessa Revolução Verde .230

Outra questão a enfatizar a dependência dos agricultores em relação às multinacionais, trata-se dos cultivos terminator, ou seja, qualquer cultivo transgênico manipulado com um gene suicida para provocar a esterelidade masculina, feminina ou da semente, de forma a impedir que os agricultores guardem e replantem as sementes, sendo assim obrigados a readiquirir, todos os anos, novas sementes da companhia multinacional. Com a mobilização de diversas organizações da sociedade civil, a Monsanto precisou renunciar ao desenvolvimento de OGMs munidos do gene esterelizante (Late embryogenesis ou terminator). No entanto, Mae-Wan Ho et al. apontam que há muitas formas de construir a esterelidade e cada uma delas é objeto de uma patente específica231.

O aprofundamento de um sistema que privilegia a dependência dos camponeses em relação às transnacionais ao invés de emancipá-los é também agravado pelo alto grau de concentração das empresas de agroquímicos vinculadas à dominação do mercado mundial de sementes. No cenário mundial observou-se o movimento de fusões entre empresas do ramo farmacêutico e aquisições de empresas de sementes. As seis empresas que até o final da década de 1990 atuavam predominantemente no ramo agroquímico passaram a dominar mais da metade do mercado mundial de sementes: Monsanto (EUA), Dupont (EUA), 229DUFUMIER, Marc. Os organismos geneticamente modificados (OGMS) poderiam alimentar o terceiro

mundo? . In: ZANONI, Magda; FERMENT, Gilles (orgs.). Op. cit., p. 371.

230Ibid, p. 385. 231Ibid, p. 67.

Syngenta (Suíça), Bayer (Alemanha), Dow (EUA) e Basf (Alemanha). Em 2011, as cinco principais empresas de agroquímicos também estão entre as dez maiores empresas de sementes e a Basf, a única que não aparece entre as líderes do mercado de sementes, tem diversos acordos de colaboração com as demais empresas em cultivos importantes, como milho, arroz e trigo. No caso das sementes transgênicas, a concentração é ainda maior: a Monsanto é proprietária de 39 dos 54 eventos de modificação genética aprovados para uso comercial no mundo232.

A estratégia comercial dessas empresas consiste em prioritariamente inserir no mercado variedades de plantas geneticamente modificadas que possuam, também, a resistência a um herbicida; somando-se ao fenômeno biológico de resistência das plantas adventícias aos herbicidas, as novas variedades permitem utilizar doses mais fortes de herbicidas, tolerando um espectro mais amplo233. Assim, por exemplo, a companhia Monsanto vende o glifosato e sementes de variedades transgênicas resistentes a esse mesmo herbicida. Assevera-se assim o estado de dependência dos camponeses, e o ciclo vicioso da lucratividade das empresas transnacionais agroquímicas e produtoras de sementes.

Em relação aos OGMs de segunda geração (com transferência de genes que confiram às plantas maiores qualidades nutricionais e organolépticas, ou uma resistência maior aos agentes patogênicos, ao estresse hídrico, salinidade dos solos etc.), Marc Dufumier aponta as dificuldades em desenvolvê-los234, podendo impactar em diminuição sensível dos rendimentos agrícolas, sendo necessário ainda muitos anos de estudo do conjunto dessas regulações (o que passa a ser desinteressante para as companhias privadas, uma vez que o período de validade das patentes é de vinte anos, e corre o risco desse período ser ultrapassado quando estes OGMs puderem ser liberados comercialmente)235.

A grande crítica sobre as propostas de melhorias genéticas aos camponeses e consumidores do terceiro mundo reside no fato de focarem unicamente na rentabilidade 232PIESSE J.; THIRTLE C. Agricultural R & D, technology and productivity. In: Philosophical Transactions

of The Royal Society B . v. 365, n. 1554, p.3035-3047. 2010. Disponível em:

<http://rstb.royalsocietypublishing.org/content/365/1554/3035.full.pdf+html>. Acesso em: 31 ago. 2013.

233NOISETTE, Christophe. OGM: as empresas colhem os dividendos da fome . In: ZANONI, Magda;

FERMENT, Gilles (orgs.). Transgênicos para quem? Agricultura, Ciência e Sociedade. Brasília: MDA, 2011, p. 408.

234Pois as proteínas expressas pelos transgenes devem interferir com um grande número de regulações

metabólicas das plantas afetadas. No caso do beta-caroteno no arroz dourado, essa síntese pode ocorrer às custas de outras funções, como a diminuição do rendimento calórico/hectare. DUFUMIER, Marc. Os organismos geneticamente modificados (OGMS) poderiam alimentar o terceiro mundo? . In: ZANONI, Magda; FERMENT, Gilles (orgs.). Op. cit., p. 390.

dos sistemas de produção, com propostas de soluções padronizadas aos campesinatos, a despeito do savoir-faire contido em suas tradições, assim como das condições econômicas e sociais em que operam as diferentes categorias de agricultores (maior ou menor precariedade da posse da terra, dependência em relação a comerciantes usurários, maior ou menor solidariedade nos clãs ou vilarejos etc.).

Marc Dufumier fala na priorização do savoir-faire do camponês, levando em conta as condiçõe agroecológicas e socieconômicas locais, abrindo-se mão das soluções do tipo panaceia (cura de todos os males), e tratando de reconhecer que, na maioria dos casos, os camponeses é que devem ser os verdadeiros inovadores. Trata-se de operar no fortalecimento das capacidades humanas e da condição de agente, já identificada por Amartya Sen. Por fim, conclui que os obstáculos ao desenvolvimento agrícola sustentável provêm, portanto, no essencial, de estruturas agrárias injustas, legislações fundiárias inadequadas e condições desiguais de concorrência entre agricultores nos mercados agrícolas e alimentares 236. E sobre essa questão, a atual lógica produtivista definitivamente não apresentará solução.

No documento Direito à alimentação e sustentabilidade (páginas 98-102)