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As ações sociais como constituidoras de lugares de enunciação das comunidades afro-religiosas.

O Ilé Asè Ojìsé Ifé, localizado no bairro da Tapera (Florianópolis) trabalha a identidade negra e estética negra em um abrigo para crianças em Palhoça. Além disso, propiciam um projeto de expressão de dança dos orixás (dança afro), aula de tambor, palestras em creches e colégios sobre estética e identidade negras. Pelo bairro, atuam em conjunto com a Associação de Moradores, Conselho Comunitário, Escola de Samba, Posto de Saúde, Conselho Local de Saúde, assim contribuindo com o conhecimento tradicional. O terreiro também faz parte do Fórum das Religiões de Matriz Africana de Florianópolis e Região e participa de atos e manifestações contra a intolerância religiosa e reconhecimento e valorização da população negra que ocorram na cidade.

Mãe Bárbara, uma das lideranças religiosas do terreiro afirma que tal espaço social lhe ajudou a perceber, após quebras de paradigmas vividas na adolescência a pessoa que eu havia me tornado. Alguém que nasceu para, por e pelos orixás.

“Uma mulher negra, pansexual, mãe solteira e Iyá...que hoje passou a cuidar e zelar por suas mais velhas porque essas mulheres são anciãs hoje e necessitam de cuidados. Eu tive que passar a cuidar! Tive que tomar a frente e a administração do terreiro de forma respeitosa, porque essas mulheres também estão no processo de transição para maturidade. Essas mulheres que foram mães solteiras por processos de abandono, violências, recusa de paternidade em sua grande maioria. Elas cuidaram de nós!” (Mãe Bárbara)

Tal libertação e empoderamento vivido pela ialorixá dentro do terreiro nos permite olhar para esse lugar, através da noção de quilombismo. Nascimento (1980) define quilombismo como formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso, que facilitava sua defesa e sua organização econômico-social própria, como também assumiram modelos de organizações permitidas ou toleradas, com ostensivas finalidades religiosas, recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. Assim essa rede de associações permitida ou “ilegal” integraram práticas de libertação e protagonismo da própria história à população negra brasileira.

Como todo levante de resistência ao que está posto enfrenta tensões e dificuldades, no terreiro localizado na encruzilhada, não poderia ser diferente:

Imagem 3:

Representação do Fórum das Religiões de Matriz Africana de Florianópolis e Região durante a Greve Geral das Mulheres no dia 08 de março de 2018.

“Começamos a fazer reuniões falando sobre ervas e saúde, tivemos biodança, grupo de estudos, dança de expressão Orisá, aula de tambor e canto, terapias em grupo. Tivemos as visitas de abrigos de crianças, passamos a fazer doações aos abrigos de idosos, fizemos uma horta orgânica e plantamos também ervas aromatizantes, medicinais e para banhos. Falamos dentro do terreiro sobre a própria filosofia de vida, o modo como a gente vê o mundo através do terreiro, rodas com mulheres negras lgbtq+, com o empoderamento dos corpos negros que habitam aquele espaço, visibilização de casais não heteronormativos e a resistência através do matriarcado da casa, já que a maioria das omorisás são mulheres. Essas pessoas começaram a falar e se comunicar” (Mãe Bárbara).

Hoje as ações do terreiro que são contínuas, são voltadas as pessoas que freqüentam ele efetivamente, e ao público em geral. Tais atividades são sustentadas, através das mensalidades das pessoas que se comprometem a abraçar a estrutura do terreiro, e também de eventos paralelos, festas e que arrecadam fundos para a realização de todas as atividades previstas no calendário anual. As dificuldades encontradas para realizar tais ações, na opinião da ialorixá, são as financeiras, que atinge de modo geral a população humana para se manter, e também as questões trazidas pela sociedade, com os atravessamentos de outras visões de mundo e ideologias que estruturam esta última de forma hostil.

“Vejo que as atividades tem levantado a auto-estima das pessoas, têm contribuído para o cuidado da saúde física e mental, têm levado os jovens e adultos a estudar, salientando os cuidados com os riscos cotidianos. Os mais velhos passam a serem mais ouvidos e cuidados, as pessoas começaram a se olhar de forma diferente e ver o mundo, a partir de uma ética comportamental” (Mãe Bárbara).

Mas é no falar sobre a relação que essas atividades possuem com a religião que Mãe Bárbara avança nas ideias de quilombismo de Nascimento, pois para além de afirmar a importância desse movimento quilombista de resgatar os valores da cultura afrobrasileira, a ialorixá com sua experiência junto às religiões de matriz africana os nomeia, falando da importância da ancestralidade, coletividade, oralidade, que tais ações podem trazer.

“As atividades fazem parte de uma ética de se perceber no outro, quando um corpo está doente, todos estão. Essa ‘doença’ pode ser psíquica, física e/ou comportamental.Quando a gente trás a “cura” através da alegria e o comprometimento ético uns com os outros , que são conceitos da filosofia de Orisá (este Orisá como ferramenta e ser do natural), você consegue olhar para o mundo e ter uma postura diferente diante dele. Orisa é vida, nós fazemos parte da vida uns com os outros, a vida é em toda sua existência sagrada!” (Mãe Bárbara).

Aqui percebemos como as questões estéticas implicam no trabalho com auto- estima, fenômenos também percebido na dissertação de Gomes (2017) em sua dissertação intitulada “Posso tocar no seu cabelo?” Entre o “liso” e o “crespo”: transição

capilar, uma (re) construção identitária? que aborda os processos de transição

capilar15 e como através destes processos, emerge o racismo. Para tanto, a autora retoma como o imaginário social sobre a estética negra se constituiu no Brasil entre os séculos XIX e XX, a fim de contextualizar a relação problemática de gerações de mulheres negras com seus corpos, e mais especificamente, seus cabelos. Nas considerações preliminares deste campo fértil de estudos, Gomes (2017) argumenta que os processos de identificação vivenciados de forma coletiva e pessoal em uma rede social, promovem sociabilidade e transformação, assim como a emergência desta beleza provoca racismo e poderes, gerando conflitos e novos significados.

Nesse sentido no contexto das religiões de matriz africana a valorização da estética dentro dos processos identitários é uma das apostas para introduzir novas visões de mundo e, sobretudo, ajudar às pessoas a se auto-identificarem e assumirem a própria estética afro valorizada nos rituais dos terreiros, nas roupas, nos colares, nas cores, nos ritmos, dentre outros aspectos. Estética esta sem ser necessariamente uma folclorização, ou exclusivamente uma questão espiritual, mas estética esta que permite tomar consciência de si, agindo no mundo de forma criativa.

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