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A busca pela unidade também atravessa as questões políticas e, neste sentido, a rede relacional entre os terreiros assume uma organização horizontal, ou seja, formalmente não há terreiros mais centrais ou mais importantes que outros na Grande Florianópolis. É verdade que existem casas que tem mais adeptos, são mais frequentadas, líderes religiosos que tem mais fama que outros, entretanto, isto não os coloca numa posição hierárquica no plano formal superior aos demais. É provável que dessa horizontalidade surja a dificuldade destas casas de religião afro-brasileira de formar uma entidade ou associação que as represente, tendo em vista que para isso seria necessário impor um representante, ou um conselho de representantes numa estrutura que naturalmente é horizontal. Ademais, para a formação de uma associação é preciso que exista uma unidade entre as mais diversas casas, o que torna a tarefa ainda mais difícil, já que, como venho demonstrando, a multiplicidade é latente nesta cosmologia. Prandi fez alusão a esta mesma problemática num contexto diferente:

As federações de umbanda e candomblé que supostamente uniriam os terreiros, não funcionam, pois não há autoridade acima do pai ou da mãe-de-santo. (CONCONE; NEGRÃO, 1987

apud PRANDI, 2003, p. 24).

Neste tópico abordo a aderência, ou a falta dela, às associações que deveriam representar as casas de religião de matriz africana na região abarcada pelo mapeamento. Para a análise, usei dados e falas coletadas pela equipe do projeto. Existe uma série de associações criadas com o intuito de organizar certa unidade

entre as casas, o que evidencia um esforço por gerar uma organização hierárquica. Dentre elas se destacam o Fórum das Religiões de Matriz Africana de Florianópolis e Região, a ATUAA – Associação dos Terreiros de Umbanda do Ritual Almas e Angola -, a FUCA – Federação da União dos Cultos Afro-brasileiros –, que tem atuação nacional, a SOI – Superior Órgão Internacional de Umbanda e dos Cultos Afro, e a FUESC – Federação Umbandista do Estado de Santa Catarina.

Foi recorrente nas entrevistas que as lideranças criticassem essas organizações, mesmo sem ser filiadas a elas, alegando que não faz diferença estar filiado ou não, já que elas não têm atuação efetiva que favoreça as casas de religião afro- brasileira. Das 210 casas entrevistadas no projeto, 98 declararam não estar filiadas a nenhuma instância, 104 responderam que estão filiadas a pelo menos uma associação, e 8 não responderam a esta questão. É significativo que quase a metade das casas religiosas opte por não se vincular a uma organização, tendo em vista que para um segmento populacional que vem historicamente sofrendo opressão e é atualmente invisibilizado pelas autoridades, a conformação de uma organização poderia ser um canal eficaz de mobilização e demanda por políticas públicas destinadas ao povo de santo.

A ATUAA é a associação que teve maior número de filiados nos resultados desta pesquisa, com 44 casas filiadas que participaram do mapeamento. Entretanto, em várias respostas é possível verificar uma insatisfação por parte destes, como veremos nos seguintes relatos: “Sim, à ATUAA, mas eu não sei o que eles fazem”; ou então: “Mas não temos um apoio de federação, é cada um por si”. Em outro relato, a liderança elogiou o trabalho dos representantes da ATUAA, mas ponderou dizendo que as casas não dão força para a Associação e a Associação não dá força para as casas, o que consequentemente faz com que as associações em Santa Catarina sejam “captadores de recursos sem retorno”, que não têm força para proteger as casas em situações de intervenção da Polícia ou de vizinhos, já que não tem poder de fiscalização, segundo ele. Outra liderança brincou ironicamente com o nome da Associação, remetendo à sua ineficácia para resolver problemas práticos: “Tem uma tal de ATUAA, que pra mim se chama ‘ATOA’, porque ela não resolve nada pra mim. Quando se tem algum problema, nós pais de santo temos que resolver, porque a ATUAA não faz porcaria nenhuma. Não atua em Palhoça. Por que não avisaram quando me associei? [...]”, questionou. Estas falas revelam a insatisfação das lideranças na forma de atuação desta associação, que não auxiliaria nos problemas tidos por eles como centrais. Se as associações não estão atendendo às expectativas das lideranças, o que estas lideranças esperam das associações?

Uma das demandas que, do ponto de vista de alguns entrevistados, corresponderia às associações, é a fiscalização da fidelidade da prática da casa ao ritual tido por eles como “certo”. Algumas vezes escutei a reclamação que a ATUAA antes fazia visitas às casas filiadas, geralmente quando tinha camarinha, para verificar se a casa estava dentro do que é o ritual Almas e Angola, mas que hoje em dia ninguém visita as casas e basta pagar uma mensalidade para estar filiado. Há, portanto, novamente uma preocupação por parte de alguns setores do povo de santo de que tem casas que não seguem o ritual da maneira vista por eles como

correta, e caberia a uma federação zelar pela conservação e fiscalização da tradição. Esta expectativa em relação às associações representativas revela o desejo de algumas lideranças de controlar a multiplicidade existente. A representatividade então, neste caso, almejaria a unidade e padronização das religiões afro.

Já entre os que responderam que não estavam filiados a nenhuma associação, apareceram relatos interessantes sobre tentativas e decepções em relação a estas instâncias: “Eu até tentei. Na verdade, tem, só que eles só cobram. Se precisar de advogado eles não dão. A associação tinha que ser com pulso forte, advogado, com seus próprios medidores acústicos na prefeitura”. Outra liderança também expressou frustração quando precisou de apoio: “Eu não sou filiado a nenhuma federação hoje porque quando eu precisei, eu não tive respaldo jurídico, nada”. Portanto, outra expectativa que não é alcançada pelas associações é a eficiência no auxílio jurídico quando as casas têm problemas na sua legalização. Em decorrência destas decepções, é possível verificar nas respostas das lideranças que é muito comum o trânsito destas entre as associações. As casas, ao terem uma experiência negativa com uma instância e sentirem-se desamparados, migram para outra em busca de melhores ofertas.

Importante ressaltar que houve sim alguns depoimentos de experiências nas quais estas instâncias atuaram de maneira efetiva, como por exemplo, no apoio prestado para regularizar as casas, mas em quantidade muito menor que as reclamações a estas dirigidas. Apesar do descrédito que as associações e organizações têm com a maioria do povo de santo, é reconhecida por muitos deles a necessidade de criar uma representatividade maior deste segmento social na Grande Florianópolis, como colocado por uma liderança que não é filiada a nenhuma associação: “É preciso fortalecer as religiões de matriz africana. Ter alguém pra representar nas instâncias políticas, alguém do santo, pra que as casas saiam dos cortiços, das favelas e tenham mais representatividade [...]. É preciso mais união entre as casas de santo, ter alguém que centralize e faça reuniões periodicamente”. Isto revela novamente o desejo de unificação de parte do povo de santo em prol de visibilidade e reconhecimento político.

Analisando as colocações feitas pelas lideranças, é notável o desinteresse de grande parte em formalizar uma hierarquia no grupo religioso que conformam e o descrédito das associações em decorrência da sua ineficiência. A resistência das lideranças em filiar-se às associações seria uma forma de afirmar e manter sua cosmologia de multiplicidade? Por outro lado, o desejo de unificação por parte significativa das lideranças expressa a contrapartida da mesma questão: a fiscalização em prol da padronização ritualística e a união em prol da representatividade política são demandas que procuram controlar a multiplicidade.

A modo de reflexão, tendo em vista que a representatividade presume a unidade do grupo, pergunto-me se é necessário, de fato, abandonar a multiplicidade. Seria a representação destrutiva da multiplicidade? A escolha de uma representação de nível formal para o grupo religioso implica efetivamente unificar-se de maneira a dar visibilidade à tradição e situar-sena esfera política de modo afirmativo. Entretanto, essa unidade não demanda necessariamente consensos e homogeneidade teológica, tendo em vista que é uma unidade

assentada num opositor comum – no contraste com as religiões que não são afro-brasileiras. Isto é, as religiões de matriz africana procuram unificar-se na ordem política de maneira a adequar-se à lógica da cidadania, para reivindicar reconhecimento, políticas públicas e direitos.

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