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A caridade presente nas ações sociais dos terreiros de Florianópolis

A Sociedade Beneficente Cultura Africana Ylê de Xangô, localizada no bairro do Ribeirão da Ilha (Florianópolis), também possui um calendário de atividades cíclicas de ações sociais. Para Babá Tacques, liderança da casa religiosa, afirma que a ação social deve ser algo inerente a qualquer terreiro. O Ylê de Xangô possui há mais de três anos o projeto semanal de capoeira angola aberto à toda comunidade e oferecido por um dos filhos de santo da casa. Importante lembrar que a capoeira é atividade largamente aceita e foi adotada como prática esportiva ensinada nas escolas, o que não entra em atrito com outros tipos de preconceitos mais evidentes e associados a estas religiões. No Caderno Textos e Debates do NUER nº 10, intitulado Capoeira na Universidade, publicada em 2004, percebemos que a prática cultural da capoeira vem sendo pronunciada no plural, integrando múltiplos saberes e diversos campos de legitimação. Além disso, o próprio fato da capoeira ter sido eleita patrimônio da humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura)  já a coloca num lugar de maior reconhecimento social.

Assim, dentre outras ações, tal terreiro se organiza também para realizar doação de comidas e roupas durante o inverno para os moradores de rua. Em julho, a instituição religiosa chega a distribuir até 100 marmitas. Muitas das carnes utilizadas para realizar as marmitas são originárias dos cortes dos bichos da festa que acontece para o orixá Xangô, anualmente durante o mês de junho. Para Babá Tacques “a redistribuição de energia só acontece quando consumida”. Assim a noção de caridade está relacionada com a possibilidade do ser humano poder ter existência na sociedade “estar bem para estar junto com outros”, nas palavras do babalorixá.

Nesse sentido já na cozinha do Ylê, em meio a conversas sobre à prática religiosa ou sobre assuntos da vida cotidiana, mãos se colocam em cooperação

Imagens 1 e 2: Preparação e distribuição de comidas aos moradores de rua

em junho de 2017. Acervo: Ylê de Xangô

Babá Tacques faz questão de ir junto com seus filhos de santo fazer a distribuição das marmitas às pessoas em situação de rua que habitam o centro da cidade de Florianópolis. Os moradores então se colocam em fila pra receber o alimento, que preenche o estômago, mas também aquece os corações, em meio ao frio intenso da cidade nos meses de junho e julho. O trabalho só termina quando o isopor volta vazio e o povo de santo é tomado por uma sensação de dever cumprido.

Além da distribuição de alimentos, a organização das ações sociais do Ylê de Xangô envolve cerca de 62 pessoas. Essas pessoas, maioria filhos/as de santo junto com Babá Tacques são divididos em seis comissões mais a diretoria. Mesmo o terreiro tendo utilidade pública municipal, não recebe incentivos por parte do governo. As ações sociais são possíveis graças ao pagamento de mensalidades por parte dos/as filhos/as de santo da casa e busca desses por subsídios fora do terreiro.

Tal divisão de comissões tem como princípio a cosmologia em torno do orixá Xangô, patrono da casa religiosa. O babalorixá através de seus estudos e viagens para o continente africano percebeu que as nações de Oyó eram compostas por conselhos formados por seis pessoas correspondente ao número de Xangô e que o voto de minerva era do rei de Oyó. Assim quando pensou o estatuto de sua instituição religiosa tentou aplicar a concepção iorubana na organização de sua associação. Contudo o cartório da cidade de Florianópolis não considerou tal configuração e pediu a liderança religiosa que refizesse o estatuto, conforme o modelo do cartório.

Paula Montero (2006) argumenta que em face das disputas históricas que marcaram as distinções entre o religioso e o mágico no país, podemos perceber como a idéia weberiana de “secularização” é insuficiente para explicar a construção do espaço público no Brasil. A instauração de um Estado secular produziu ao mesmo tempo um espaço civil e novas religiões. para cortar e preparar os alimentos para as cerca de 100 marmitas. O cheiro invade o ambiente e não pode ser sentido apenas no visualizar de tais imagens. Contudo é preciso para além do preparo à distribuição.

Contudo nesse processo, embora tenha perdido legitimidade para organizar o mundo público, a Igreja Católica foi uma importante matriz no processo de constituição da esfera pública no Brasil. Ela não deixa de ser Igreja depois da República: ainda hoje é legitimada como responsável pelos ritos civis socialmente válidos.  Dessa maneira tal forma de institucionalização nega o caráter religioso e histórico-cultural, impondo um tipo de reordenamento institucional aos moldes das instituições coloniais.

Assim é preciso desnaturalizar tais instituições coloniais que impõe o modelo judaico-cristão ou mesmo a negação completa de continuidade do diálogo com a África, através de uma perspectiva pós-colonial. O pós-colonial é uma crítica ao iluminismo e ao essencialismo. O iluminismo no que tange à sua estreita relação com as teorias racialistas, com os modos como a incorporação do conceito raça produziu naturalizações de situações de supremacia do poder colonial. Nos séculos XV e XVI as diferenças dos seres humanos não estavam centradas na questão do tipo físico. Com o iluminismo, no século XVIII, a noção de raça é pautada por critérios religiosos e morais, além de critérios geopolíticos e climáticos, que possibilitaram, dentre outras coisas, a formalização e a intensificação do tráfico negreiro. O iluminismo concebeu as diferenças de forma hierárquica e o fenótipo passou a ganhar maior importância no século XIX e XX.

A teoria pós-colonial surge da crítica sobre o que restou dessas relações e representações. De acordo com Almeida (2000), as principais características da teoria pós-colonial são: repúdio a todas as narrativas mestras - a narrativa mestra principal seria a da modernidade, tanto na versão burguesa, quanto na versão marxista -; crítica do eurocentrismo nelas explícito; repúdio do orientalismo como redução a uma essência sem história, assim como do nacionalismo; repúdio de toda história fundacional; repúdio de qualquer fixação do sujeito e deste como categoria. A teoria pós-colonial se pretende a afirmação das identidades do Terceiro Mundo como relacionais mais do que essenciais, mudando a atenção da origem “nacional” para a “posição do sujeito”. (Almeida, 2000:229).

Contudo tal proposta epistemológica, segundo Bernardino-Costa & Grosfoguel (2016) foi produzida, principalmente, por intelectuais do Terceiro Mundo que estavam radicados nos departamentos de estudos culturais, de língua inglesa, antropologia das universidades inglesas e posteriormente das universidades norte-americanas. A consequência mais óbvia disso foi o fato de o pós-colonialismo ter uma língua de nascença, o inglês, e ter também um espaço de circulação, o mundo anglofônico. Em decorrência do silêncio ou da obliteração da teoria pós-colonial às contribuições de intelectuais da América Latina é que se constituiu na virada do milênio uma rede de investigação de intelectuais latino-americanos em torno da decolonialidade ou, como nomeia Arturo Escobar (2003), em torno de um programa de investigação modernidade/colonialidade.

Assim o decolonial como rede de pesquisadores que busca sistematizar conceitos e categorias interpretativas tem uma existência bastante recente. Todavia, isso reduziria a decolonialidade a um projeto acadêmico. Para além disso, a decolonialidade consiste também numa prática de oposição e intervenção,

que surgiu no momento em que o primeiro sujeito colonial do sistema mundo moderno/colonial reagiu contra os desígnios imperiais que se iniciou em 1492 (Bernardino-Costa & Grosfoguel (2016).

Aqui reside uma importante diferença entre o projeto decolonial e as teorias pós-coloniais. Essas tematizam a fronteira ou o entre-lugar como espaço que rompe com os binarismos, isto é, onde se percebe os limites das ideias que pressupõem essências pré-estabelecidas e fixas. Na perspectiva do projeto decolonial, as fronteiras não são somente este espaço onde as diferenças são reinventadas, são também loci enunciativos de onde são formulados conhecimentos a partir das perspectivas, cosmovisões ou experiências dos sujeitos subalternos (Bernardino-Costa & Grosfoguel, 2016:19).

Mas os autores alertam que é preciso distinguir o lugar epistêmico e o lugar social. O fato de alguém se situar socialmente no lado oprimido das relações de poder não significa automaticamente que pense epistemicamente a partir do lugar epistêmico subalterno. Justamente, o êxito do sistema-mundo moderno/colonial reside em levar os sujeitos socialmente situados no lado oprimido da diferença colonial a pensarem epistemicamente como aqueles que se encontram em posições dominantes. Em outras palavras, o que é decisivo para se pensar a partir da perspectiva subalterna é o compromisso ético-político em elaborar um conhecimento contra-hegemônico (Bernardino- Costa & Grosfoguel, 2016:19).

Dessa forma o fato de cosmologias africanas não serem aceitas pelos cartórios, demonstra o quanto tais religiões não são localizadas como da modernidade e que precisam se enquadrar nos termos das instituições criadas pelo contratualismo ocidental, pautados numa perspectiva eurocêntrica, produzida à época do iluminismo.

As ações sociais como constituidoras de lugares de

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