• Nenhum resultado encontrado

“Correr gira” como dinâmica da multiplicidade

Tendo em vista que os fazeres religiosos estão em constante transformação, e que este processo é alimentado em grande parte pelas trocas de experiência e vivências entre as diversas casas de religião de matriz africana, cabe analisar as dinâmicas relacionais entre estas casas, que com rituais e fundamentos diversificados, definem diferentes posições a respeito do que chamam “correr gira” – termo usado pelo povo de santo para designar a participação ou assistência a cerimônias e celebrações em outras casas. Através dela, as lideranças vão formando redes relacionais que articulam as casas que mantêm relações de visitação entre si. Geralmente, as lideranças frequentam cerimônias de casas de irmãos de santo, filhos de santo e pais/mães de santo. Também visitam casas de lideranças com as quais têm afinidade, mas não tem parentesco espiritual. Neste sentido, embora o “correr gira” incentive o intercâmbio de conhecimentos e de experiências religiosas, que pode resultar na diversificação ritualística, também promove certa unificação do povo de santo.

Para exemplificar os diferentes graus de aceitação da dinâmica de troca e visitação entre as casas de religião de matriz africana na Grande Florianópolis, a seguir apresento alguns dados estatísticos e falas de lideranças religiosas coletados pela equipe de pesquisa e que formam parte do resultado do projeto.

Das 210 lideranças religiosas que participaram do mapeamento, 164 responderam que “correm gira”, 30 responderam que raramente o fazem, 7 falaram que nunca e 9 não responderam a esta questão. Dessa maioria de 78% que respondeu que sim, há divergências em relação às visitas e à participação em cerimônias de casas de vertentes ou linhas diferentes das suas. Vejamos algumas falas em que isto aparece: 79 líderes posicionaram-se a favor de visitas a casas de qualquer vertente, muitas vezes aludindo em suas respostas a uma necessidade de união entre as casas de religião de matriz africana. “A gente tem que ser uma coisa ecumênica”, disse uma das lideranças entrevistadas, o que também ressoa na fala de outra: “A espiritualidade não tem paredes”. Para argumentar este posicionamento mais aberto, alguns líderes evocaram a importância do respeito às outras casas e religiões: “O que importa é a cabaça, os Orixás são os mesmos, só muda a liturgia. Eu já fui em várias casas: em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre. O que manda diante disso tudo é o respeito, precisamos respeitar para ser respeitados, não importa a casa”. Na mesma linha, outra liderança disse que tem bons relacionamentos e que aonde vai é respeitada, o que para ela é consequência da sua postura em relação às outras casas: “O respeito a qualquer religião valoriza a si próprio”, por isso, segundo ela, é necessário respeitar para ser respeitado, e acrescentou que já foi até na Assembleia de Deus.

Por outro lado, 67 líderes religiosos responderam que “correm gira”, porém apenas em casas de mesma vertente que a sua, ou seja, há uma aceitação parcial da dinâmica relacional. Devido à larga difusão da Almas e Angola na região da Grande Florianópolis, é comum que as casas que seguem esta modalidade religiosa acabam tendo estreitas relações entre si, e então o círculo social das lideranças acaba ficando restrito aos adeptos de Almas e Angola. Assim foi colocado por uma liderança de Almas e Angola, quando questionada quais as vertentes das casas que visita, dizendo que Mãe Ida liga a todos no parentesco: “[...] Geralmente é Almas e Angola, querendo ou não a gente é tudo parente [...]. É como se fosse uma família, uma grande família”.

Esses posicionamentos de rejeição a outras modalidades religiosas que não a sua revelam que estas lideranças não circulam entre outras vertentes por que se incomodam com as diferenças entre as formas de condução do ritual, como é o caso de uma líder que, com lágrimas nos olhos, queixa-se das novas gerações que vem descaracterizando os fundamentos da religião. Relatou ter sido ofendida por um pai de santo da tradição do Batuque que a chamou de retrógrada. Ela contra-argumentou dizendo que se o conhecimento e as práticas que tomam forma através de um modus

vivendi são de matriz africana, ser “retrógrada” deveria ser uma qualidade, já que é uma

demonstração de preservação dos fundamentos transmitidos pelos antepassados. Complementou dizendo que evita frequentar terreiros que não conhece, pois tem visto coisas que a assustam. Outra liderança fez uma comparação entre a Umbanda e a Igreja Católica, valorizando que nesta última os rituais são seguidos de forma mais estrita, e desejando que na sua religião a ritualística fosse mais padronizada: “Por que todos nós não trabalhamos iguais?”, questionou.

A partir disto, temos um panorama relacional em que prevalece o hábito de visitação e participação das cerimônias em diversas casas de religião afro- brasileira, sendo estas da mesma vertente ou não. Esta dinâmica de relacionamento entre os terreiros evidencia que estas redes que vão se consolidando servem tanto como uma base de apoio entre as lideranças, que ajudam umas às outras durante as camarinhas, assim como uma forma de intercâmbio de fazeres religiosos – o que provoca rejeição em alguns, e respeito em outros. Sendo esta dinâmica alimentadora das relações de troca entre as diversas casas, o “correr gira” é um suporte da multiplicidade emergente, no sentido que proporciona a troca e incorporação de diferentes conhecimentos do santo.

E, por outro lado, a mesma rede relacional, se pensada como uma espécie de diplomacia do santo, evidencia a busca pela unidade religiosa sem a necessidade de recorrer a consensos teológicos de nível formal, já que basta uma política de boa vizinhança para dar lugar a um processo de unificação. Neste sentido, é muito significativa a fala de uma das lideranças que associa “correr gira” a uma dinâmica que promove o ecumenismo. Por isso, o “correr gira” pode ser um viés privilegiado para pensarmos na dialética entre unidade e rizoma: é uma dinâmica que ao mesmo tempo em que promove uma unidade religiosa, abarca e alimenta a configuração rizomática das religiões afro-brasileiras.

Conclusão

Assim como há lideranças que não estão filiadas a nenhuma associação, porém falam da importância da união entre os terreiros, não há concordância quanto ao assunto “correr gira” em casas de outras vertentes. Discordância que aponta para a valorização ora da padronização da ritualística (e com isto a unidade), ora da diversificação: alguns ressaltam a riqueza de tal diversidade, enquanto outros se incomodam com as diferenças rituais. Ainda assim, o “correr gira” representa uma forma de conformação de polos de unificação apesar das diferenças ritualísticas. Nessa mesma corrente, alguns líderes são acusados de conservadorismo em relação aos fundamentos, enquanto outros são criticados por modificarem o ritual. Quando o ritual Almas e Angola é criticado pela sua origem combinatória e por sua tendência à diversificação ritualística, o que está no fundo é uma negação da heterogeneidade e, portanto, a defesa da padronização.

A procura por uma unidade é transversal a diversos aspectos das dinâmicas organizacionais, relacionais e ritualísticas do povo de santo: todas estas questões revelam a busca por uma unidade ao mesmo tempo em que se foge dela. De um lado, temos a unidade formal enquanto estratégia política de reconhecimento, e de outro, a unidade teológica enquanto estratégia de legitimação de certas casas em detrimento de outras. Esta última propõe uma concepção arbórea das religiões afro-brasileiras, isto é, a unidade é assentada na percepção de que estas religiões derivam de uma religião proveniente de África, que com o efeito da diáspora africana veio a misturar-se com outras religiões brasileiras; formando assim um modelo no qual as diferentes vertentes das religiões afro- brasileiras são ramificações de um eixo central. Modelos em formato de árvore são modelos hierárquicos por natureza, e por isso a adoção de um discurso que preza pela africanização da religião legitima determinados fazeres religiosos em detrimento de outros.

Já no momento em que se propõe buscar uma unidade de representatividade política ou uma afirmação identitária fluída, porém una, a tendência à diferenciação pode ser um problema. Este é o paradoxo e o desafio que estas casas enfrentam por serem platôs que conformam um rizoma complexo e horizontal (não hierárquico). A questão que se coloca, portanto, é como desenvolver uma representação da multiplicidade sem torná-la hierárquica. Como conseguir uma afirmação identitária através da representação de um rizoma? Seria possível que a unidade política aceitasse a multiplicidade rizomática?

Neste artigo apresentei evidências do grande fluxo e as difusas fronteiras presentes nas práticas religiosas, o que caracteriza a natureza circunstancial destes platôs. Ao mesmo tempo em que podem formar bulbos em certas dimensões, como foi o caso da Almas e Angola, vertente que se estabilizou na região da Grande Florianópolis. Por outro lado, refleti sobre o discurso de algumas lideranças religiosas que valorizam a africanização da religião, o que caminha para a essencialização de uma África e para a preservação de fundamentos, e é também uma procura pela unidade e pela raiz. Também apontei alguns possíveis desafios que o povo de santo enfrenta ao tentar gerar uma representatividade através

das associações, desafio este que é sintetizado na tensão entre multiplicidade e representação (unidade). Por fim, apresentei evidências do espectro de dinâmicas relacionais existentes entre as casas, e suas diferentes posições em relação à abertura a rituais diferentes dos seus, o que demonstra a rejeição e a aceitação da dinâmica que sustenta a multiplicidade, ao mesmo tempo em que de fato se está gerando uma unidade através de políticas de boa vizinhança.

Portanto, temos um panorama que evidencia algumas tensões entre multiplicidade e unidade que tingem diversos aspectos das religiões de matriz afro-brasileira da região. Desta maneira, isto demonstra uma disputa da própria concepção das religiões afro-brasileiras: a multiplicidade e a unidade estão em constante negociação entre o povo de santo. Um rizoma é formado por uma multiplicidade, e nunca unidade, de platôs que se conectam e incidem uns sobre os outros de maneira circunstancial. Se estas religiões conformam um rizoma, elas jamais serão conduzidas a uma unidade, tendo em vista que o rizoma nunca se fecha. Concluindo, gostaria de colocar esta disputa em termos de uma dialética entre rizoma e árvore, no sentido de que há a constatação da multiplicidade radical nestas religiões, ao mesmo tempo em que se formam polos de unificação. O “correr gira”, ao que me parece, pode expressar uma abordagem privilegiada dessa dialética, já que a mesma dinâmica alimenta a multiplicidade e promove a unidade.

Referências

DELEUZE, Gilles;GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. vol. 1. .

GOLDMAN, Marcio. A construção ritual da pessoa: a possessão no candomblé. Religião e Sociedade, n. 12, v. 1,, 1985, p. 22- 54.

GOLDMAN, Marcio. O fim da antropologia. Novos estudos, CEBRAP, n. 89, 2011. Disponível em : http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101- 33002011000100012&script=sci_arttext. Acesso em: 28 ago. .2018. ________. Histórias, devires e fetiches das religiões afrobrasileiras: ensaio de simetrização antropológica. Análise Social XLIV (190), 2009, p. 105-137.

LEITE, Ilka Boaventura (coord.); Territórios do Axé: religiões de matriz africana em Florianópolis e municípios vizinhos. Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas. Florianópolis: Editora da UFSC, 2017.

MOTTA, Roberto. Umbanda, Xangô e Candomblé: crescimento ou decomposição? Ci. & Tróp., Recife, v. 29, n. 1, jan./jun., 2001, p. 175-187. PRANDI, Reginaldo. Referências sociais das religiões afrobrasileiras: sincretismo, branqueamento, africanização. Horizontes Antropológicos 4(8), 1998, p. 151-167. ________. As religiões afrobrasileiras e seus seguidores. Civitas 4(8), 2003, p. 151-167. SANSI, Roger. “Fazer o santo”: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro- brasileiras. Análise social, vol. XLIV (1), 2009, p. 139-160.

SMITH, Wilfred Cantwell. O sentido e o fim da religião. São Leopoldo: Sinodal, 2006, p. 27-80.

Bruxas e Orixás na Ilha da Magia:

Outline

Documentos relacionados