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Açude do Barracão – Santo Antônio – Russas

Como já foi assinalado, outra atividade reveladora dos modos de viver e produzir da gente do campo é a pesca, que, embora seja uma atividade ocasional do pequeno agricultor, quase sempre restrita aos períodos de bons invernos, é bastante representativa da experiência social dos camponeses do Baixo-Jaguaribe.

Todavia, de todas as comunidades rurais em que realizei a pesquisa de campo, foi na comunidade do Canto da Cruz, no município de Palhano, que obtive o maior número de relatos sobre a relação dos camponeses com as águas; ao mesmo tempo que, paradoxalmente, obtive o menor número de relatos sobre a relação com a mata. Decerto, isto se justifica em razão da Comunidade do Canto da Cruz ser localizada nas margens do rio Palhano. Assim, era nas águas e não na mata, que os camponeses, muitas vezes, encontravam o alimento

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Nesta travessia, cinco foram os guias: Raimundo Delfino Filho, João Delfino Bezerra, Altina Delfino dos Santos, Maria Sinhá de Souza e Estelita Crispim Gomes.

necessário à sua subsistência; da mesma forma que era nas águas e não na mata onde viviam, sobretudo no período dos bons invernos, quando o rio passa a “correr”, momentos de prazer, de descontração, enfim, momentos de pura ludicidade.

A verdade é que a água, em vários relatos de memória, aparece como o principal elemento a compor a paisagem física e cultural da região. Assim, procurei, nesta parte do trabalho, ver mais de perto o significado das águas, especialmente, das águas dos rios - Jaguaribe, Palhano, Quixeré e Banabuiú -, riachos, açudes e lagoas na vida econômica, social e cultural da região.

Como já foi salientado, do ponto de vista econômico, os rios, açudes e lagoas constituem-se em importantes reservas de peixes, das quais os camponeses retiram seu complemento alimentar. Assim, ao rememorar algumas das dificuldades que enfrentou para assegurar a subsistência de sua família, no ano de 1940, o Sr. Raimundo Delfino Filho procurou mensurar a importância que o rio Palhano teve em sua vida neste período.

Se... Na época de quarenta mermo, se eu for fazer a conta, eu vivi mais dento d'água do que dento de casa. Eu ia... houve inverno, né? Aí, as condições num prestava nesse tempo, eu ia, a famia toda dento de casa, grande, eu trabaiava no roçado. Quando dava as três hora da tarde eu vinha mimbora, às vez ainda ficava água na cabaça. Trabaiava... trabaiava... trabaiava as 06 hora, quando era as 11 hora eu saía assim no mato caçando umas fruita de cardeiro. Você conhece o que é cardeiro? Apôs cardeiro é um bicho espinheto. Só caçando as frutinha de cardeiro, cumia aquelas frutinha de cardeiro por lá e vinha mimbora. Aí eu chegava aqui, chegava aqui, o fogo apagando, as muié fazendo os chapéu, fazendo as trança, custurando. O fogo apagado, eu chegava aqui às três hora pra quato eu chegava aqui, em casa. Aí eu pegava a tarrafinha miúda, aí eu ia pro rio e tava correndo, tinha inverno, tava inverno, tava inverno. Eu ia pro rio, butava aquela chama e pescava por ali. Quando chegava com aquela colônia de pato, assim, piabinha, essas coisa, quando chegava com aquela colônia de pato aqui, eu... a muié inda ia pra budega cumprar farinha, do chapéu pra discubrir aquela coisinha. É, comprava a farinha na budega. Ia trocar por farinha, por gênero, né? 199

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Raimundo Delfino Filho, 87 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no município de Palhano, no dia 26/10/1999. Na minha última visita à casa do Sr. Raimundo Delfino, no dia 17/07/2001, fui informado por uma de suas filhas que ele havia falecido três dias antes. Na época em que realizei a entrevista, “seu” Rimundo Delfino dividia com uma filha e um cunhado, com problemas mentais, a velha casa de taipa

O Sr. João Delfino Bezerra, por sua vez, relatou que o pescado além de servir como um importante complemento alimentar, constituía-se também numa fonte de renda para a família. Desta forma, se a terra gerava, por exemplo, o feijão e a mandioca, da qual se fazia a farinha, o rio lhes dava a oportunidade de conseguirem, através da venda do peixe, algum dinheiro.

Eu gostava de pescar e mermo era... era obrigado porque nós tinha cumer, mas num tinha o dinheiro, tá compreendendo? Nós tinha, é, nós tinha tudo dento de casa, tinha feijão, tinha a farinha, mas num tinha o dinheiro; porque a gente num ganhava, né? Ninguém num ganhava isso assim, agora o cumer tinha, mas dinheiro não. Aí, era o jeito o camarada ir percurar no rio, né? Pra cumer.200

Todavia, muito mais do que um nível de trabalho marcado pela regularidade, a pescaria é vista pelos entrevistados em sua dimensão lúdica, como uma descontração ainda visível no rosto expressivo daqueles que a rememoram.

Assim, ao recordar o tempo de suas pescarias, o Sr. João Delfino Bezerra fez questão de ressaltar que gostava de pescar sempre na companhia de um grupo de amigos e que o tipo de pesca praticada não necessitava de anzol, landuá ou tarrafa;201 pois a sua pescaria era de

mão, o que, por sua vez, proporcionava um espetáculo estético

admirável.

Eu nunca deixei, agora vim pegar a tarrafa num dia... num tempo desse pra cá, tá rendo? A minha pescaria era de mão, só pescava de mão, só pescava de mão. Mas meu irmão, nós ajuntava aqui oito, nove pessoa, entrava dento dum poço, era um balançar d'água bonito (risos), era um balançar d'água bonito; no instante o peixe chegava a ... a nossas mão.202

em que morava. Sem poder mais trabalhar na agricultura, o velho Raimundo tinha na aposentadoria sua única fonte de renda.

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João Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no município de Palhano, no dia 27/10/1999.

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Utensílios de pesca usados, com maior freqüência, por aqueles que praticam atividades de pesca nos rios, açudes e lagoas da região do Baixo-Jaguaribe.

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João Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no município de Palhano, no dia 27/10/1999.

Em sua relação com as águas, os camponeses elaboram uma imagem de si, na medida em que inventam um conjunto de práticas - A minha pescaria era de mão, só pescava de mão - e dão significados

aos recursos naturais que o meio lhes oferece. A presença de rios, açudes, lagoas e poços, sobretudo, nas áreas de influência dos rios, sugerem, por assim dizer, relações mais afetivas entre os camponeses e o mundo natural. Por outro lado, por não praticarem uma economia monetarizada, as tarefas diárias que dão maior visibilidade a integração do camponês com a natureza parecem se desenrolar, pela lógica da necessidade, diante dos olhos do pequeno lavrador.203

Assim como o Sr. João Delfino, sua irmã D. Altina Delfina dos Santos fora despertada pela força de um passado que ainda vibra dentro do seu ser. Tomada por uma vertente de emoção, D. Altina relembra as pescarias que realizava na companhia das amigas.

Graças a Deus, era minha, era minha save e guarda era a minha tarrafa. O marido num sabia pescar, eu pegava o vistido, vistia, nesse tempo num usava essas calça não, a gente tinha era o vistido pa vistir. (...). Eu chegava com o uru204 de peixe, piaba... Nunca, graças a Deus, eu

cheguei do rio com a bolsa seca. Pegava peixe bom! Mas também aquele pobe que passava, que me pidia, eu nunca negava, eu dava. Um home me tirou o retrato eu pescando dentro do buraco, ele disse: - ‘dona, se ponha em pé, bote a tarrafa na cabeça.’ Eu pus im pé, butei a tarrafa na cabeça, ele se rindo, aí tirou o meu retrato. Mais aqui no Paiano num saiu não, saiu na Furtaleza; quem conheceu lá foi a Jula da Rufina. (...). (A sua foto saiu no jornal?) Saiu, diz ela que saiu, num sei se foi aqui nessa, num sei não, foi lá na Furtaleza. Aí quando ela viu o Jajão ela disse: 'Jajão a Altina passou aqui com a tarrafa na cabeça, cunheci ela todinha, todinha e os home ainda se rindo'. Pescava de noite era de anzol. Eu ia distança duma légua, pescar de anzol. Levava a lamparina, levava a tarrafa, ia mais de oito pessoa mais eu, mais quem dava as piada pa pescar era eu. Quando ali, o sol ia querendo se por, pantava a tarrafa pa riba era no instante, pantava, era piaba aí com fartura. Aí todo mundo, tava com saco aqui no pescoço, um saco pa butar as piaba pa de noite butar a mão. Aí, quando eu... eu acabava de pescar ele istendia as piaba, o meu irmão istendia as piaba, aí quando tava bem durinha, aquela piaba rola, aquela piaba lisa que num tem iscama, aquela piaba o peixe num gosta, só cumia aquela que tinha iscama, aí... Mas, quando nós vinha, era uma rodana de traíra, cada uma traíra. Ia pescar de linha solta, chegava lá tacava essa linha ia lá perto do, dos poço fundo, quando eu via era a carreira da traíra, pra lá e

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THOMPSON, E.P. Costumes em comum: estudo sobre a cultura popular tradicional. op. cit. p. 271.

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“(...) uru, funda bolsa de malha tecida com palhas de carnaúba.” Cf. Domingos Olympio. Luzia-Homem. op. cit. p. 19.

prá cá e eu puxando só cuendo a linha e ela puxando, quanto mais ela puxava mais ela se interrava, mais ela se farfava. Mais quando eu vinha era a bolsa cheia graças a Deus. Pesquei muito, de dia pescava..., nunca faltou peixe na minha casa não. (Isso era no rio?) Era no rio, era no rio. Aqui nós entrava dento do rio ia sair longe. Você conhece as Peda?

(conheço) Apois, nóis ia pescar ali, até perto das Peda. E nós vinha,

tudim, tudim.205

Embora a atividade da pesca fosse uma atividade subsidiária à agricultura, ou seja, um elemento de apoio no que se refere à necessidade de provisão de alimentos, ela emergiu no processo de rememoração dos entrevistados que a tiveram como uma experiência marcante em suas vidas, como atividade lúdica, diferentemente do caráter exaustivo atribuído às tarefas caseiras. De modo geral, as pescarias constituíam-se em oportunidades de sociabilidade tanto para os homens quanto para as mulheres, pois não existia ocasião melhor para se conversar, bem como para se fazer circular novidades e mexericos.

Portanto, muito mais do que a caça, que é uma atividade essencialmente masculina, a pesca era uma experiência social que envolvia um grupo maior de pessoas, geralmente, composto por familiares e amigos. Assim, não se verifica na prática da pesca uma divisão social fundamentada na questão de gênero. As mulheres, assim como os homens, participavam normalmente de todas as tarefas que estavam de alguma forma ligadas às atividades da pesca, desde a captura do peixe até o ato de prepará-lo para a refeição da família.

Embora não houvesse uma divisão social fundamentada na questão de gênero, a ponto de D. Altina assumir sozinha a atividade da pesca, visto que seu marido não sabia pescar, seu irmão, o Sr. João Delfino fez questão de esclarecer que sua esposa nunca foi pa pescaria de anzol não, nunca foi não. “Seu” João achava que, por ser de noite e pelo

fato de sua esposa não saber nadar, era arriscado iscurregar e cair dentro

d’água: tem eu pa pescar, tem eu pa pescar, num pricisa você pescar não. Vê-se,

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Altina Delfino dos Santos, 84 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no município de Palhano, no dia 27/10/1999. Viúva e mãe de dezesseis filhos, D. Altina Delfino é aposentada e vive na companhia de alguns filhos.

nesse caso, que a posição do Sr. João Delfino é de autoridade sobre a esposa. Freqüentemente, a posição do marido era no contexto doméstico a mais privilegiada.

Ao recordar as pescarias de outrora, D. Sinhá206 ressaltou o quanto gostava de pescar de anzol, no período da noite, na companhia de suas amigas: gostava de anzol! Pescava de noite, nós subia de rio a riba. E, ajuntava um bocado, nós ia. Até uns ano desse, ainda se pescava. No entanto, ao

se referir ao presente, D. Sinhá, ao mesmo tempo que lamenta o fato das pessoas que moram na comunidade do Canto da Cruz, no município de Palhano, pouco se dedicarem à atividade da pesca, ironiza dizendo que o pessoal agora enriqueceram, num tem mais gente pobe não, pobe já houve.

Por outro lado, responsabiliza os ano ruim, sem invernos regulares, pela

falta de peixe nos açudes, o que justificaria a ausência das pessoas no exercício da pesca.

Na parte detrás de sua pequena casa de taipa, D. Estelita, sentada em sua cadeira de rodas, apreciava sua pequena roça semeada de feijão, enquanto procurava em suas lembranças recordar os tempos felizes de outrora. Ao narrar cenas de terna felicidade que marcaram sua vida, era com grande dificuldade que D. Estelita conseguia dissimular seu real estado de espírito. Conquanto os olhos estivessem perdidos na distância, a expressão do seu rosto revelava aos presentes que sentia dentro de si momentos de indescritível emoção.

Pescava porque tinha vontade de pescar, inda hoje eu tenho vontade, assim mermo sem andar. Às vez eu digo assim, leve eu lá po beiço do açude do seu Itamar com uma vara pra vê se eu num pego peixe. Eu pego sim, me sentar lá num canto lá eu pego peixe. Eu tenho força nas mão, né? Ainda é durmente as minha mão, né? Mas, eu tinha era vontade. – ‘Ôpa! Onde mamãe vai?’ Eu digo, ora isso é conversa, eu sei pescar. Pescava e achava bom. Mais aquela minina do... do... mais a Francisca, a muier do compade Osmar, nós pescava de landuá, pegava cada uma traíra que num tinha tamanho. Ela dizia assim: - ‘mãe vamo sair daqui, que isso aqui num é traíra não, pode ser alguma cobra

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Maria Sinhá de Souza, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no município de Palhano, no dia 27/10/1999. Separada do pai dos seus três filhos, D. Sinhá vive sozinha numa pequena casa de alvenaria decorada com alguns objetos que seu filho lhe mandou de São Paulo, onde mora. Suas duas outras filhas moram na cidade de Palhano. Aposentada, D. Sinhá ainda produz chapéus e bolsas com a palha de carnaúba.

preta.’ Eu digo, que conversa quem já viu cobra desse jeito (risos), cobra tem dente mas não desse jeito, né? Eu pescava muito.207