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Sr Isac e D Rosa – Lagoa de Santa Teresinha – Russas

Às vez, os minino tudo piquininim durmindo, nóis dois num... butava pa durmir e nóis ia fazer carvão, nóis dois. E eles tudo durmindo, nóis dois ia durmir onze hora da noite, doze hora, fazendo carvão, imalando aquele carvão todim, cobrindo, tocando fogo pa no outo dia nóis ter, ir po mato cortar madeira pa tornar a fazer outa carrada. Quando era dia de sábo, ele saía daqui mais um pererecazinha com as carrada medonha de carvão pa vender im Russa, im carroça. E eu ficava. E, po último, os minino foram crescendo, eu ia mais os minino e ele ficava fazendo

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Zacarias Francisco de Almeida (Isac), 84 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no município de Russas, no dia 25/08/1999.

carvão. Eu ia, fazia a feira, nóis já sabia onde ia depositar aquele carvão. Aí, quando nóis... Os minino... Eu tinha um que era bem, bem inteligente, o mais véi, aí: - ‘mãe, a mãe fica aí, que eu vou fazer, vou cumprar as coisa’. Aí, eles cumprava de tudo. Nóis butava nessa carroça, disabava. Chegava aqui uma hora, duas hora da tarde. Eu criei quais tudo desse jeito, quais tudo mermo desse jeito.190

Portanto, além da lenha, da estaca, do estacote, da vara... outro produto de origem florestal bastante utilizado na região é o carvão vegetal, produto oriundo da carbonização da lenha, cujo método predominante é o do forno-trincheira.

O Sr. Américo Simão de Freitas, por sua vez, revelou que durante as décadas de sessenta, setenta e oitenta trabalhou torando

madeira (escoramento, caibro e linha) para ser vendida em Fortaleza. A partir da década de oitenta, no entanto, passou a se dedicar exclusivamente à extração da lenha para abastecer ao mercado local do município de Russas.

Eu vendia na Furtaleza, tinha lá os meu patrão. Eu cortava aqui, ele mandava passar a semana carregando, quando era no sábo eu ia buscar o dinheiro pa pagar os trabaiador aqui. Eu trabaiava com dez, doze, quinze e até com vinte home, eu trabaiava. Quando era sábo, eu ia trazia aquele dinheiro pa fazer aquele pagamento, graças a Deus. (...) trabaiei muito, tirei muita madeira na terra do Edson Queiroz e era desse jeito, eu tirava madeira de todo canto. (...). Aí, passemo, passou- se pa essa lenha. Aí, pronto, deixemo de ir pra Furtaleza (risos). Que a lenha é só daqui pra Russa, daqui pra Russa.191

Como procurei demonstrar, principalmente a partir dos relatos dos Srs. Chiquinho Pitombeira e Isac de Almeida, as memórias avaliam o desmatamento de forma paradoxal: de um lado, revelam que o grande culpado é a ruindade do tempo traduzida pela falta de invernos; de

outro, o próprio camponês na medida em que se acha obrigado a retirar da mata a sua sobrevivência. No entanto, o que explica o fato do camponês tornar-se cada vez mais dependente da natureza é o

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Rosa Maria de Almeida, 64 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no município de Russas, no dia 25/08/1999.

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Américo Simão de Freitas, 79 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no município de Russas, no dia 23/08/1999. Morando na companhia da esposa e de um filho deficiente, o Sr. Américo lamenta não poder mais trabalhar na agricultura. Quase cego, o velho Américo sobrevive, no seu dizer, apenas do “bom emprego” (aposentadoria) que o “gonverno” lhe “deu”.

processo de pauperização a que ele foi submetido ao longo de todo o século XX, e, mais particularmente a partir da década de 1970, quando o Estado patrocinou a modernização do meio rural, o que significou maior concentração fundiária, maior valorização da terra e expulsão do homem do campo.192 Portanto, como observa Durval Muniz, o que tem causado a pauperização camponesa são as relações de exploração vivida no campo e não a ruindade do tempo como pensam muitos

camponeses.

(...). No mundo tradicional, o homem tinha acesso aos bens de consumo produzidos por ele próprio, agora, com a maior parcela de tempo dedicada a uma produção comercial, na sua própria terra ou trabalhando para um patrão, se vê obrigado a recorrer cada vez mais ao mercado, o que o torna dependente de relações invisíveis, tecidas pelas mercadorias, que o tornam quase sempre, cada vez, mais pobre. Esta pauperização é imputada, então, às oscilações da natureza e à ausência de domínio sobre ela. A seca é causadora da miséria, do empobrecimento, e não as relações de exploração a que estão submetidos.193

Não obstante, embora os camponeses consigam estabelecer uma certa historicidade para as transformações ocorridas na paisagem natural da região, é preciso destacar que estas transformações se processaram com mais ênfase a partir das décadas de 1970 e, mais particulamente de 1980. Durante este período, verifica-se em toda a região do Baixo-Jaguaribe, principalmente no município de Russas, a expansão do número de pequenas olarias e de indústrias de cerâmica. O quadro a seguir mostra o número de cerâmicas existentes em cada um dos municípios onde foi realizada a pesquisa de campo.

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Maria Antônia Alonso de Andrade. “Relações de Trabalho e Relações de Poder: Perfil de duas Áreas Geopolíticas”. In. Relações de Trabalho & Relações de Poder: Mudanças e Permanências. op. cit. p. 239.

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Cf. Durval Muniz de Albuquerque Jr. Falas de Astúcia e de Angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877 a 1922). op. cit. p. 117.

MUNICÍPIO N° DE CERÂMICAS Russas 68 Alto Santo 12 Limoeiro do Norte 09 Palhano 07 Quixeré 06 Morada Nova 04 Jaguaruana 03

São João do Jaguaribe 03

Itaiçaba 02

Tabuleiro do Norte 02

TOTAL 116

Segundo dados fornecidos pelo IBAMA, o município de Russas concentra aproximadamente 25% das cerâmicas existentes em todo o Estado do Ceará. Devido, pois, à grande concentração da indústria cerâmica, cerca de 83,4% do consumo de energéticos florestais do município são utilizados nesse setor industrial.194

Desta forma, embora ainda seja possível encontrarmos grandes áreas de caatinga e de mata nativa na região do Baixo-Jaguaribe, é certo que o processo de expansão da indústria cerâmica contribuiu em grande medida para a destruição de grande parte das reservas de madeiras existentes na região.

Todavia, se por um lado as cerâmicas, ao consumirem produtos florestais como fonte de energia, são agentes de poluição e incentivadoras de desmatamentos, por outro, proporcionam geração de empregos, aproveitamento da mão-de-obra local, fatos que garantem um aumento da renda familiar de diversas famílias de trabalhadores rurais que exploram a floresta para sua sobrevivência. Em seu depoimento, o Sr. Américo Simão de Freitas oferece uma visão da dinâmica desta exploração.

Aqui, tem um bucado de gente que corta lenha. Tem um fio meu, tem um genro ali que trabaia com vinte tantos home, trinta, dois caminhão,

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Cf.. Enília da Cruz Moraes Braid (Coord.). Diagnóstico Florestal do Estado do Ceará. Fortaleza: PNUD/FAO/IBAMA/SDU/SEMACE, 1993. p. 25.

mora bem aí. Tem dois caminhão, uma mercede e um chevrolet. É todo dia duas, três carrada por semana. Só um carro, só, tem dia que dá três carrada de madeira. Mas, eu mermo deixei de trabaiar. Agora num sou nem... Como se diz? Num trabaio nem de roçado mais, que num agüento. Trabaiar agora aqui dento de casa, os fi dando uma coisa, outo dá outa e eu vou vivendo.195

Segundo D. Estelita Crispim Gomes, muitos camponeses passam a semana trabalhando no corte da madeira, retornando para casa somente na sexta-feira ou no sábado. Além de venderem a madeira para as cerâmicas, as pessoas que trabalham nesta atividade também estabelecem um regime de troca por tijolos e telhas com o objetivo de construírem casas de alvenaria; deixando, para trás, as velhas construções de taipa. Desta forma, não só o madeiramento do telhado como a alvenaria e as telhas parecem compensar os prejuízos causados à natureza pelo desmatamento. Nesse sentido, as casas representam um composto de fragmentos dos tempos antigos, ou seja, nelas sobrevivem os vestígios que o tempo não conseguiu apagar.

Todavia, a ocupação da mão-de-obra na atividade florestal sofre um arrefecimento de suas atividades no período chuvoso correspondente aos meses de janeiro a junho. Neste período, em razão da mão-de-obra estar quase que totalmente absorvida pelo subsetor agrícola, as olarias chegam praticamente a encerrar suas atividades, enquanto as cerâmicas reduzem em até 50% a sua capacidade produtiva. Só a partir do segundo semestre é que a atividade florestal volta a crescer, pois os agricultores iniciam os desmatamentos – através das práticas do destocamento, da retirada de lenha e madeira, da retirada de ramos e vagens para forragem - visando ao preparo do solo para a próxima safra agrícola. Não obstante, quando ocorre períodos de estiagens, o subsetor florestal em grande medida absorve a mão-de-obra do subsetor agrícola.196

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Américo Simão de Freitas, 79 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no município de Russas, no dia 23/08/1999.

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Entretanto, como já foi demonstrado através dos próprios relatos de memória, os desmatamentos não obedecem exclusivamente a fins comerciais. Em termos gerais, verifica-se que o nível de autoconsumo de produtos florestais contribuem significativamente para satisfazer às necessidades familiares, tanto nas atividades de produção agropecuária (forragem para o gado, construção de cercas), como nas domésticas (energia para cozinhar, para fabricação de materiais de construção). Portanto, trata-se, basicamente, de uma produção de subsistência, objetivando o autoconsumo. Segundo dados fornecidos pelo IBAMA, aproximadamente 2/3 da produção de lenha são autoconsumidos, e o restante destina-se à venda.197

Contudo, se até o início da década de 1990 a principal maneira de exploração dos recursos florestais consistia na extração de todo o material lenhoso, sem nenhum compromisso com a terra; tem- se notado, hoje, uma preocupação mais constante com a reposição florestal para a própria garantia dos recursos florestais. Esta nova prática de desmatamento, que não consiste na derrubada integral da árvore, tem por objetivo o reflorestamento natural da área desmatada, num espaço de tempo equivalente a mais ou menos dois anos. Na verdade, essa nova estratégia atende tanto aos interesses do proprietário da terra quanto do extrator de lenha, uma vez que não é interessante para quem vende a mata “em pé” ou mesmo arrenda ter que reinvestir no seu reflorestamento; da mesma forma que não se torna vantajoso para quem arrenda, por um certo período de tempo, uma determinada área de mata, ver exauridos todos os seus recursos naturais, inviabilizando, por conseqüência, a atividade que lhe é mais rentável, ou seja, a comercialização da madeira.

Portanto, ao mesmo tempo em que os camponeses extraem da mata seu complemento alimentar, através da prática da caça, mantêm, também, uma relação de exploração através da produção de vários produtos de origem florestal. Na verdade, essa produção está

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intimamente relacionada com as demais atividades que compõem o sistema econômico-social do contexto rural, ou seja, em outras palavras, a produção florestal complementa a agricultura e a pecuária nas mais diversas ações de trabalho e manejo.

Deixando para trás as trilhas abertas pelos camponeses “caçadores”, sem, no entanto, deixar de seguir o itinerário das práticas cotidianas que marcam a normalidade de suas vidas, atravessaremos, agora, algumas paisagens que expressam a relação que os camponeses mantêm com os rios, açudes, lagoas...

Quarta Parada: o camponês e as águas.198

“Na época de quarenta, (...), eu vivi mais dento d’água do que dento de casa”

Raimundo Delfino Filho