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Segundo o Sr. Antônio Ribeiro de Souza, quando terminava de ajuntar os bichos, era comum haver, naquele dia, uma derruba pa quem quisesse. Assim como acontecia geralmente ao término dos adjuntos ou

das desmanchas nas casas de farinha, a ajunta do gado era ocasião

propícia para a realização de uma festa: Era, as festas era essa. Quem quisesse brincar o dia inteiro, era o dia inteiro e num tinha histora de pagamento de nada não.243 Mais uma vez, fica evidente que na sociedade tradicional camponesa, trabalho e lazer não se dicotomizavam. Segundo Alda Brito da Motta, o mundo camponês é o mundo do valor de uso, das atividades de utilidade imediata, em que as atividades lúdicas, com aspectos freqüentemente

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João André Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade de Jaguaruana, no dia 18/08/1999

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Antônio Ribeiro de Souza, 82 anos. Entrevista gravada na comunidade do Brito, no município de Itaiçaba, no dia 05/04/2000.

estéticos, têm sempre um emprego inseparável da rotina do trabalho ou do ritual religioso.244

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O trabalho nos comboios, que transportavam mercadorias de outras paragens, foi outra atividade rememorada por alguns de meus amigos de travessia. O comboio era composto por uma tropa de animal conduzidos por uma pessoa comumente chamada de “tangerino”,

além do “tropeiro” que era o responsável direto pelo comboio. Os carros de boi eram, também, outro meio de transporte utilizado na comercialização de mercadorias entre os núcleos rurais. Segundo o Sr. Chiquinho Pitombeira, de longe se ouvia os gemidos das grandes rodas

de madeira dos carros de boi.245

De acordo com os relatos de memórias que foram colhidos junto aos velhos comboeiros, uma viagem de ida e volta entre Morada Nova e Cascavel, por exemplo, demorava cerca de nove dias. A lentidão dos animais e a péssima qualidade das picadas, ou seja, das estrada por mei do mato justificavam a demora para se vencer as distâncias que

separavam a região dos lugares onde comumente os comboios se abasteciam. Entre os lugares que foram recordados pelos velhos comboieiros, destaca-se Cascavel como sendo, talvez, o mais importante ponto de abastecimento de gêneros como a farinha e a rapadura. Além dos Tabuleiros do Ceará, como era mais conhecida a litorânea cidade de Cascavel, os velhos comboieiros também transportavam mercadorias das cidades de Baturité, Mulungu e

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Alda Brito da Motta. “Notas sobre a visão de mundo do camponês brasileiro”. In. Revista de Ciências Sociais. op. cit. pp. 54 e 55.

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“(...) E lá vai o carro-de-boi, puxado por algumas juntas de boi, pachorrento, chiando, arrastado pela estrada que ele mesmo abria, no massapê. Feito do rijo pau d’arco, rodas maciças com chanfraduras semilunares ou losangulares, arrastavam enormes cargas de mercadoria sustentada, lateralmente, pelos fueiros fincados, na mesa de madeira pentagonal, plantaforma que, excepcionalmente, era utilizada pelas moças levadas, no carro-de-boi, para as feiras e festas da igreja. As juntas (havia carros-de-boi com até doze juntas) eram presas umas às outras pelo cambão ligado ao cabeçalho, a partir da primeira junta presa ao carro, chamado ‘bois de coice’. Os carros-de-boi foram o único meio de transporte de cargas, juntamente com os comboios de burros, durante toda a época colonial vindo até o século vinte, quando aparece o caminhão, não tendo sido, ainda, totalmente eliminado. Chegava a pecorrer cerca de trinta quilômetros por dia, em época de verão.” Cf. Lauro de Oliveira Lima. Na Ribeira do Rio das Onças. op. cit. p. 88.

Aracoiaba localizadas na região serrana do maciço de Baturité. De Baturité, por exemplo, transportavam, geralmente, arroz, café, milho,

só bitanga mermo de casa, no dizer do Sr. Francisco Girão Sobrinho.

Quando estavam em trânsito pelas picadas abertas no meio do mato, os comboieiros faziam longas caminhadas durante a maior parte do dia. Ao acordarem ainda pela madrugada, os comboieiros, antes de prepararem os animais para reiniciarem a viagem, faziam um

cafezim e comiam um negoço qualquer que fosse. A primeira parada do dia

acontecia por volta das dez horas da manhã, em algum lugar que tivesse água para darem de beber aos animais e para fazer a bóia, né?

A gente levava a mercadoria da viagem todinha. Era carne, era... Alguma vez a gente levava feijão também, pra... pra num cumer só carne, né? A gente butava um feijãozim no fogo. Era carne seca, carne de boi. A gente comprava essa carne na Aracoiaba, né? A carne lá era umas manta bonita, gorda, tinha a gordura de... um dedo de gordura na carne. Era boa, gostosa. A gente conzinhava e cumia, né? Uma noite o sono pegou, ficou tudo... todo, todo cumer perdido, todo cumer perdido. Não foi perdido, porque a gente cumemo bem cedim, no outo dia. À noite o sono pegou tudim (risos). Era bem seis que andava nesse tempo. Tudo pegou no sono, o derradeiro que pegou no sono fui eu, viu?246

Segundo o Sr. Francisco Girão Sobrinho, quando anoitecia o grupo de comboieiros procurava se arranchar no próprio mato. Além do frio e do sereno da noite, acontecia, às vezes, dos comboeiros e animais passarem a noite assombrados com a presença de alguma onça em torno do rancho.

Era, nós arranchava no mato. Quando não arranchava no mato, nós arranchava numa casa que tinha... que tinha alpende; aí, a gente arranchava-se também. No mato, amarrava a rede nos pau. Aí, na noite de sereno, frio, que tinha vez que a madeira amanhecia o dia pingando, viu? Uma vez, passemo a noite todinha acordado com uma onça esturrando bem pertim. Você sabe aonde é os Pato, num sabe? Ainda hoje, quando eu passo lá, me lembro disso. (...). Aí uma noite, passou toda a noite fazendo fogo e a bicha chega fidia, bem pertim. Os animais tudo assombrado, vieram tudo pra encostado do fogo, os animais, né? Aí, a gente tinha muita lenha, muita madeira, a gente quebrava lá perto

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Francisco Girão Sobrinho (Chicada). Entrevista gravada na comunidade da Palestina, no município de Morada Nova, no dia 08/04/2000.

do fogo, só pertim, pra não sair por ali pudia ela tá esperando, né? Era seis; um, ainda durmiu, ainda. Que era mais durminhoco.

Afora as dificuldades cotidianas, “seu” Chicada, como é mais conhecido o Sr. Francisco Girão Sobrinho, revelou que aqui e acolá tinha uma paquerazinha. Solteiro, à época, o velho Chicada disse que sempre

que pudia, quando achava uma, tinha que fazer a discarga, né? Além do “seu” Chicada, outros velhos comboieiros relataram algumas experiências que foram vividas por eles, ou, por algum de seus familiares, no tempo em que se comboiava pelas veredas de roça a caminho de alguma cidade. No entanto, seguiremos outro intinerário; uma vez que a próxima parada de nossa travessia, será nos sertões das festas.

Sexta Parada: o camponês e as festas.247

“Im tempo de moça, eu chorava pum um samba; num vou minti”

Maria Júlia dos Santos