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O processo de revalorização dos espaços relativos à mata- ciliar, ou seja, dos espaços cobertos por carnaubais, tem sua origem na segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento do extrativismo vegetal, através da extração do pó cerífero para a produção da cera de

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Segundo Pe. Antônio Thomaz, da carnaubeira tudo se aproveita: “O tronco é o mourão, a trave, a cumeeira, o altar e o leito conjugal; o palmito é o alimento; a raiz, a medicina; a palma é o abano, o chapéu, a esteira, a parede e o teto da casa; a cêra é a tocha primitiva, isto é, a luz, a oração, a vigília, na noite quieta e pura do homem nordestino... Tudo, na carnaubeira, é prestante e amigo. Nenhuma árvore é mais dadivosa e fecunda. Ela, sozinha, alimenta, abriga, veste, ilumina e consola as gentes... É como uma deusa familiar que a tudo acode. Como o filho da terra, onde nasce, ela se dá toda a quem a cultiva com amor e resguarda com ciúme... Da copa, ocilante e brincalhona, à raiz, séria e profunda, a carnaubeira é um holocausto vegetal, uma oblação da gleba ao homem que a possui”. Citado por Lauro de Oliveira Lima. Na Ribeira do Rio das Onças. Fortaleza-CE: Assis Almeida, 1997. p. 83.

carnaúba. Em razão da grande valorização da cera de carnaúba no mercado internacional, o chamado ciclo da cera de carnaúba vai, efetivamente, integrar a região do Baixo-Jaguaribe no mercado capitalista internacional. Segundo Hidelbrando Soares, esta atividade vai-se manter hegemônica até meados do século XX, quando se observa o processo de substituição da cera vegetal pela cera sintética.

O auge desse processo de valorização da cera de carnaúba no mercado internacional foi, efetivamente, a primeira metade do século XX. Da década de 60 em diante, o que se observou foi um processo de substituição, na indústria, da cera vegetal pela matéria-prima sintética e, consequentemente, o início de um movimento de desvalorização da cera de carnaúba no mercado internacional. Esse movimento se tornou crônico no início da década de 70, quando essa atividade se tornou praticamente inviável para a maioria dos produtores, devido a evolução decrescente dos preços internacionais de um lado e a manutenção dos custos de produção de outro, este último provocado pela não modernização do processo produtivo.221

Assim, durante o período áureo do ciclo da cera de carnaúba, a Planície Aluvial do Baixo-Jaguaribe tornou-se uma área extrativista por excelência. Para os grandes e médios proprietários dos municípios de Limoeiro, Russas e União, ou seja, para aqueles que possuíam entre 43 e 72 hectares de terras, ou, ainda, entre 43.000 e 72.000 pés de carnaúba em estado produtivo, a cera de carnaúba representou um importante meio de enriquecimento. Dada a lucratividade econômica desta atividade, os senhores dos carnaubais, como

assim os chamou Soares, dificilmente se dedicavam à exploração agrícola. Desta forma, a criação de gado e o cultivo do algodão, por exemplo, tornaram-se atividades acessórias para estes proprietários. Como observa Soares, aos moradores ou rendeiros era permitido, no máximo, a exploração das terras, onde não houvesse a presença de carnaubais, com o cultivo do algodão, do feijão, do milho e da

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Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e (re)organização do espaço: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte-Ceará. op. cit. p. 64.

mandioca; exigindo-se, ainda, o pagamento de uma renda pela utilização da terra.222

Portanto, a presença ou não da mata-ciliar de carnaubal, definia o uso da terra no período que corresponde ao ciclo da cera de carnaúba. Se por um lado, a extração do pó cerífero era a principal atividade nas propriedades que possuíam grandes áreas de carnaubais; por outro, naquelas em que a presença da carnaúba não era dominante, a exploração agrícola constituía-se na mais importante das atividades. Uma outra característica relativa às propriedades que não eram possuidoras de grandes carnaubais, diz respeito à forma pela qual se dava a exploração agrícola destas áreas: nas grandes propriedades, priorizavam-se, mais comumente, a associação entre culturas de caráter mais comercial como, por exemplo, o algodão e as frutas, e aquelas mais voltadas para o consumo familiar como o feijão, o milho e a mandioca; enquanto, nas pequenas propriedades, cultivavam-se, basicamente, estes últimos produtos que são os componentes básicos da alimentação camponesa.223

Devido à pequena dimensão de suas terras, proprietários e familiares ficavam, praticamente, ociosos durante alguns meses do ano. Isto fazia com que essa mão-de-obra fosse utilizada nas áreas onde predominava a atividade extrativista. Segundo Soares, a esses pequenos proprietários juntavam-se, ainda, aqueles que não dispunham de nenhum pedaço de terra, constituindo-se, desta forma, em moradores, rendeiros ou trabalhadores diaristas nas grandes propriedades. Diferentemente das outras atividades agrícolas, que tinham no arrendamento da terra uma prática recorrente, na atividade extrativista havia uma preferência, por parte dos proprietários, em estabelecer uma relação monetária com os trabalhadores, em vez de lhes oferecer uma parte da produção.

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Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e (re)organização do espaço: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte-Ceará. op. cit. p. 65.

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Entre meus amigos de travessia, alguns disseram ter trabalhado tanto no corte da palha da carnaúba quanto no cozinhamento do pó que dela era extraído. Em seu relato de memória, o Sr. Pedro das Neves, por exemplo, disse ter cortado muito olho com uma vara de nove braço, altura medonha.

Com a cera da carnaúba... Eu nunca trabalhei, im cera de carnaúba. Agora, vendi muito. Cortava, levava, tinha o fazedor de cera, né? Eu levava o pó. O meu sogo tinha um carnaubal, às vez nós juntava umas palhazinha, que a gente juntava nos carnaubal dos outo. Nós juntava, levava, lascava, fazia o pó. Aí, levava pra oficina, fazia três, quato, cinco kilo de cera. Quando era no domingo, levava pra vender; fazia a ferinha. Eu fiz muita... eu fiz muito isso. Ajudava, a palhinha da carnaúba ajudou a muito pobe, né?224

Ao recordar os sertões do trabalho, o Sr. Raimundo Nonato da Costa, revelou ter trabalhado muitos anos conzinhando borra para

fabricação da cera de carnaúba. Ao fazer uma breve descrição do processo de produção da cera, o velho Raimundo Nonato, assim como vários outros depoentes, deixou entrever o perigo que representava essa atividade, pricipalmente no momento de coar, em um pano, a cera quente.

Trabaiei muito conzinhando borra, conzinhei muita borra pra tirar a cera. Esprimia... (...). Conzinhava o pó, assim num tacho desse tamanho ou numa lata, quando acabar butava um pano. Tinha assim uma caixa, assim, aí, butava o pano. Aí, derramava, quando acabar cobria. Aí, butava um cepo assim, desse tamanho, ou, maiozinho assim. E, aí, o fuso cheio de rusga. Aí, trucia, trucia, se trocesse demais, estourava. Que eu tenho até esse pé queimado e a mão; que um paieiro tava... nós tava cuando uma cera num pano, e aí ele foi com o entravamento pelo, pelo a boca do pano, queimou esse pé aqui e a mão. No dia que era pra ir pra festa de... que havia, no tempo que vinha Bispo fazer festa aí em Limoeiro.225

Como já ressaltei anteriomente, a partir da década de 1960, inicia-se uma progressiva desvalorização do preço da cera de carnaúba;

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Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no município de Morada Nova, no dia 08/04/2000.

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Raimundo Nonato da Costa, 95 anos. Entrevista gravada na comunidade da Canafístula de Baixo, no município de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000.

em virtude, principalmente, do aparecimento dos produtos sintéticos, que passaram a substituir os produtos naturais no mercado internacional. Passado o auge do ciclo da cera de carnaúba, os proprietários que ainda conservam, por assim dizer, seus carnaubais, praticamente não investem mais na produção da cera de carnaúba. Segundo o Sr. Francisco Abel Lino, as carnaúbas ainda hoje compõem a paisagem dos seus quarenta e seis hectares de terra. No entanto, afirma que tem sido mais conveniente vender o carnaubal “em pé”, uma vez que a margem de lucro contabilizada não compensa o trabalho de exploração da cera de carnaúba.

Mas, ainda hoje, ainda tenho o carnaubal. Morreu muito e já tiremo... Tá aqui, linha, foi tirado lá. Essas linha dessa casa, foi tirada lá. Tem muita carnaúba e já dei muito o povo. Mas, ainda tem muita. Mas, eu faço é vender o carnaubal. O caba paga três real o mieiro, né?226

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Entretanto, a palha da carnaúba não serviu apenas de matéria prima para a fabricação de cera de carnaúba. O manuseio da palha constituía-se, especipalmente no município de Palhano, numa atividade obrigatória de praticamente toda a família em períodos de seca, principalmente como tarefa adicional atribuída à mulher. Nesse sentido, foi que D. Francisca Delfina da Costa lembrou que durante a seca de 1919, com apenas sete anos de idade, já trabalhava de dia e de noite na trança da palha da carnaúba costurando chapéu pa cumer uma xícara de farinha.227

Assim como D. Francisca, o Sr. João Delfino Bezerra, tinha seus olhos perdidos nas lembranças de tempos mais distantes. O velho João, coração apertado pelas emoções que revivia, procurava conter as

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Francisco Abel Lino (Chico Abel), 83 anos. Entrevista gravada na comunidade do Bixopa, no município de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000.

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Francisca Delfina da Costa (Chiquinha), 87 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, no município de Palhano, no dia 26/10/1999. Viúva e com a vista bastante prejudicada em virtude de um cancer que já se proliferou por outras partes do rosto, D. Chiquinha mora numa pequena casa de alvenaria ao lado da casa de sua filha e sobrevive da aposentadoria que recebe.

lágrimas ao falar do seu sofrimento e, especialmente, do sofrimento de sua mulher durante a seca de 1958.