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Sr João Delfino – Canto da Cruz – Palhano

Na verdade, a razão daquela emoção estava ancorada na dor da separação que a morte recente de sua esposa tinha lhe cravado no peito. Portanto, seu relato representa um misto de pena, gratidão e amor para com aquela que foi sua companheira durante tantos anos.

É por isso que eu digo, eu sufri muito na minha vida. E minha muier, minha muier, coitadinha, trabaiava aqui im cinqüenta e oito pa... Quando o sol, quando o sol tava perto de se pôr, ela se sentava nesse mermo cantinho aí, fechava a janela, a noite todinha custurando chapéu. Quando a barra vinha culariando, o mói de paia dela já estava escaiado. Butava de baixo do suvaco, aqui, ia vê meia garrafa de leite

com uma légua lá no Coigo, ia vê com uma légua pa criar a famia, tá rendo?228

Por outro lado, foi com rosto expressivo e transbordando de alegria, que D. Maria Sinhá de Souza rememorou os serões de trança que participava quando jovem, sobretudo nas noites em que o céu, espanado de nuvens, permitia que o sertão ficasse envolto na luz prateada da lua. Os serões de trança possuem, pois, um grande significado para os moradores da comunidade do Canto da Cruz, no município de Palhano, uma vez que essas reuniões, que envolviam familiares, parentes e amigos, tinham por objetivo aumentar a produção familiar de chapéus e bolsas, possibilitando, assim, a aquisição de algum dinheiro com a venda do produto, ou, como pareceu ser mais comum, trocá-lo por aqueles gêneros de que mais necessitavam. Por outro lado, os serões de trança constituíam-se em oportunidades de sociabilidade para aqueles – homens e mulheres - que se dispunham a ver entrar a madrugada trançando habilmente as palhas da carnaúba.

Às vez, nóis se ajuntava mais na casa do... do Nel, era casado o meu irmão. Aí, nóis ia pro terreiro, ela tinha três moça e lá em casa era duas, e, às vez, se ajuntava umas do Cândido, meu irmão. Eu sei que se ajuntava ali um bucado; aí, nóis trabaiava até de madrugada. E era cantando no terreiro, a lua clara, né? E, era cantando. E, quando era ali por umas zora, nóis ia simbora pra casa (risos). Era muito bom naqueles tempos, eu achava. Mas, hoje em dia é bom, mais num é como nos outos tempo que a gente é nova. Vez, os rapaz também ajudava a fazer trança mais as moça. Eu, eu nunca namorei, num gostava não.229

A rememoração dessas vivências deixou claro que a produção de chapéu era feita em pequenas unidades familiares. O processo produtivo baseava-se especialmente na habilidade das mulheres em trabalhar com a palha da carnaúba, utilizando instrumentos como faca, agulha e linha para costurar os chapéus. Cabe

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João Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, no município de Palhano, no dia 27/10/1999.

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Maria Sinhá de Souza, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, no município de Palhano, no dia 27/10/1999.

ressaltar, todavia, que a habilidade que as mulheres da região do Baixo-Jaguaribe demonstram ter no manuseio da palha da carnaúba é fruto da sua própria experiência de vida e não um processo natural.

Segundo Sylvia Porto Alegre, a produção artesanal que sobreviveu aos avanços do capitalismo industrial não é apenas uma atividade isolada, que por motivos circunstanciais ainda persiste, sobretudo, nas regiões mais pobres do país. Assim, ao contrário do que se costuma supor, o trabalho produzido artesanalmente, bem como o contigente de artesãos existentes, tem tido um papel bem mais significativo ao longo do processo histórico. Não resta dúvida que as décadas seguintes ao início do processo de industrialização, ou seja, a partir dos anos de 1920, representaram um novo momento de ruptura no processo histórico das relações de trabalho no Brasil. Nesse processo, diante da ideologia da modernização, do desejo de superação do “atraso” por parte das teorias desenvolvimentistas e industrializantes, a figura do artesão ficou submersa num profundo obscurecimento, embora não tenha deixado de existir, principalmente, nos lugares onde as condições estruturais não mudaram tanto e onde a sobrevivência do trabalhador continuou a depender desses meios precários de sobrevivência. Como ressalta Porto Alegre, o próprio Estado vem constatando, há algumas décadas, a importância do artesanato como meio de sobrevivência de amplas camadas da classe trabalhadora, especialmente no Nordeste.

Tem havido, também, por parte dos setores de mercado envolvidos de diferentes maneiras com a indústria do turismo, um interesse pelos

produtos artesanais, principalmente por aqueles que guardam características marcadamente regionais.230 As mulheres da comunidade do Canto da Cruz, no município de Palhano, que ainda trabalham produzindo os mais diversos objetos com a palha da carnaúba, criaram uma espécie de associação que, através da CEART (Central de Artesanato), comercializam seus produtos nos locais de venda de

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Cf. Maria Sylvia Porto Alegre. Arte e Ofício de Artesão: história e trajetórias de um meio de sobrevivência. Tese de Doutorado, USP, 1988. pp. I, II, III, 245 e 246.

artesanato na cidade de Fortaleza. Além da comercialização dos produtos, a CEART tem procurado diversificar a produção através de cursos, bem como imprimir um controle de qualidade sobre a produção. Todavia, apesar de haver um incentivo por parte do Estado e de setores comerciais ligados à atividade turística, é visível a exploração sofrida pelos artesãos no que diz respeito ao valor que os atravessadores pagam pelos produtos adquiridos junto a eles, muitas das vezes reunidos em associações. Além de ser muito baixo, o pagamento só chega às mãos dos artesãos depois que toda a produção é vendida para os consumidores.

Segundo os relatos colhidos, a participação dos homens, na divisão social do trabalho, não era decisiva para a realização ou não dos serões de trança. Todavia, mesmo que os rapazes não participassem efetivamente do trabalho de confecção dos chapéus, D. Egilda Delfino do Nascimento revelou que a presença deles era quase certa nas noites em que aconteciam os serões de trança.

Ia rapaz, ia rapaz, tudo conversando, tudo namorando na maior gaiatice do mundo, era. Só pra namorar com os olho, namorava é com os olho, num é com as mão não. Hoje em dia, é que a pessoa... é uma coisa medonha; no meu tempo, num tinha esse namoro acochado desse jeito não. Era a pessoa aqui e o rapaz acolá, era.231

Entretanto, segundo D. Altina Delfino dos Santos, embora os rapazes namorassem só com os olhos, não ficavam de braços cruzados vendo ou admirando a namorada trançar com habilidade a palha da carnaúba. Assim, as moças faziam o começo de uma trança e dava para o namorado continuar; e, se num quisesse, a moça deixava (risos).232

Diante do conteúdo dos depoimentos citados, ressalto, mais uma vez, que os espaços do trabalho e do lazer não aparecem

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Egilda Delfino Nascimento, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, município de Palhano, no dia 27/10/1999. Viúva e mãe de onze filhos, D. Egilda mora na companhia de sua filha Fátima, 44 anos. Aposentada, ajuda a filha na trança da palha da carnaúba para a produção de chapéus e bolsas.

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Altina Delfino dos Santos, 84 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, município de Palhano, no dia 27/10/1999.

separados nos relatos de memória de meus amigos de travessia. Por não possuírem uma lógica estritamente capitalista, na qual o tempo do trabalho caracteriza-se por sua intensidade, a jornada de trabalho nos espaços das casas de farinha e dos serões de trança, por exemplo, é marcada pela porosidade do tempo que permitia, além das conversas alimentadas, muitas vezes, por histórias de outros tempos, a presença da

música, dos versos e dos namoros. Segundo Milton Santos,233 com a globalização o lazer artesanal, aquele entranhado na sociedade, cede lugar ao lazer industrial globalizado, autonomizado. Esse processo de autonomização do lazer, por sua vez, transformou-o numa indústria, cujo sistema é relativamente fechado e autosustentado.

É imperioso dizer, ainda, que não é só o trabalho doméstico que surge com maior intensidade na memória das velhas camponesas. Ao contrário, o trabalho feminino não estava exclusivamente reduzido ao espaço doméstico; estando, elas, portanto, envolvidas nas atividades da roça, das casas de farinha, além das atividades na produção de chapéus e bolsas de palha para serem vendidas no comércio das pequenas cidades da região.

(Foto 16 – mulheres da comunidade do Canto da Cruz – Palhano –