• Nenhum resultado encontrado

260

Amaro José da Silva, 90 anos. Entrevista gravada na comunidade do Alto do Ferrão, no município de Itaiçaba, no dia 05/04/2000.

Morando na companhia dos pais até o dia do seu casamento, seu Amaro apega-se a dois motivos para justificar por que resolveu transpor esta esquina difícil que era o casamento em sua vida. O primeiro deles, era uns pensar meio atrapaiado de se amigar; o segundo,

o respeito que devia ao pai. Não obstante, o seu drama continuou até o “pé” do altar. No entanto, recorro ao próprio Amaro para que ele mesmo possa narrar o próximo ato.

Aí, nóis fumo casar. Quando foi pa saí lá de casa, com pouco fizero um chororô danado, trancaro ela lá dento do quarto, lá. E o caminhão aqui na porta cheio de gente esperando pa casar im Jaguaruana, né? E, ela lá. E, eu chamando: - rumbora, rumbora porque o chofé aqui tá avexado, já tá ficando de noi... de tarde, muito de tarde. Foi que ela saiu, de lá pra cá. Quando ela vinha saindo, ainda inchugando os olho, rapaz, me deu uma raiva (risos). Você sabe duma coisa? Esse casamento num vai dá certo não! Lá, eu num disse nada, mais saí com aquele plano: quando passar... que a casa de papai é assim mais pa riba da casa dela, quando passar lá eu desço do carro, eu desço do carro e num vou mais casar, não. Oi que essa mulher, eu... eu... me garantí tanta coisa e agora com uma pena desse povo que nóis vamo morar tudo pertim, isso num vai dá certo, não (risos). Aí, quando o carro parou no terreiro de papai, e eu fui entrando pa dento de casa: papai, diga aí que eu num vou mais casar, não. (...). Aí, eles ficaro lá naquela conversinha, aí, ele me chamou: - ‘Rapaz, você tá fazendo um papel muito fei’. - Eu digo, ora papai, ela saio de lá chorando com pena do povo de lá; e, eu saí daqui, eu quero tanto bem a vocês e num saí daqui chorando, né? - ‘Não, mais você vai, você vai casar’. Rapaz, quando o véi disse ‘você vai casar’, eu... eu ismurici. Mas, é o jeito que tem; o véi mandou, o jeito que tem é ir. Aquela obediência medonha. Aí, ele foi e disse assim, bem alto mermo pa eles vê: - ‘Se você num quiria casar, tivesse dito lá na casa, lá na casa da moça; não trazer um caminhão cheio de gente desse aqui pa minha... pa chegar aqui ainda, ainda num querer ir. Não, rapaz, vai’. Eu digo, pronto, acabou. Aí, eu fui naqueles plano ruim até chegar lá na Jaguaruana; disposto, quando o pade perguntasse (...) se aceita o noivo e a noiva... Aí, até quando eu cheguei lá nos pés do pade, ainda tive... ainda ia com esse mal pensado de dizer que não. Mas, rapaz, quando o pade olhou pa mim (risos), aí eu afroxei, né?

Para melhor compreender o drama vivido pela noiva do “seu” Amaro, quando ela teve que deixar o espaço familiar para ingressar em uma nova fase de sua vida, apoio-me nas reflexões de Armand Frémont, para quem as relações do homem com o espaço combinam-se numa experiência vivida que varia de acordo com as idades da vida. Apesar do espaço vivido da criança prefigurar em larga

medida ao do homem adulto na medida em que este prolonga, alarga, estabiliza, adensa de experiências múltiplas o espaço da infância, a dupla experiência do trabalho e do casamento representa uma descontinuidade do espaço das primeiras idades. Para Frémont, na passagem da adolescência para o universo dos adultos, o trabalho representa uma descontinuidade importante, pois introduz as contingências da economia de produção, ou seja: motiva deslocações, temporárias ou definitivas. Abre para novas relações sociais, ao mesmo tempo que cria estritas obrigações. Nesse sentido, o espaço adulto não apresenta

apenas um alargamento do espaço infantil, mas é também afetado por rupturas, onde a do casamento apresenta-se como sendo a mais universal e a mais significativa, pois efetua-se para ambos os cônjuges (ou para um ou outro) uma espécie de rasgão do espaço infantil, o acesso a novos lugares da vida, um desdobramento mais ou menos bem assumido das relações parentais.261

Retomando a narrativa do casamento do “seu” Amaro, veremos que ao convidar sua ex-namorada para a festa do seu casamento, o velho Amaro quis fazer do último ato de seu drama, uma comédia.

Na minha festa do casamento, (...) eu fui convidar ela po casamento; ela chamava-se Raimunda. Eu digo: - Raimunda... Ela era dançadeira, dançava como todo. Aí, eu digo: Raimunda, vamo po meu casamento; lá, você num vai ser mau recebida, não. - ‘Não, vou não que eu tenho vergonha!’ Aí, eu digo: eu garanto passar a noite... A minha muier num dançava, né? (risos) ela num dançava. Eu te garanto passar a noite dançando contigo e namorando contigo, é a derradeira vez. - ‘Não, vou não, eu tenho vergonha’. Eu digo: é, isso aí na vergonha eu num sei não, eu mermo num tenho não (risos). Mas, rapaz, esse negóço desse casamento, me fez uma soltura; que eu ao lado de papai era preso, nera? Eu só fazia o que ele quiria até vinte ano, né? Mas, quando eu me vi solto, a muier muito boa, muito distinta, e eu me mití na farra praqui e praculá, e praqui e praculá, e ela me tratando bem, me zelando bem pra tudo, pas festas; e, o que aconteceu po fim, foi... eu num larguei ela não, nunca tive vontade de largar ela não, mas, me deu um disassossego de pissuir muier po fora, que eu arranjei um bucado delas.262

261

Armand Frémont. A região, espaço vivido. op. cit. pp. 27 e 28.

262

Amaro José da Silva, 90 anos. Entrevista gravada na comunidade do Alto do Ferrão, no município de Itaiça, no dia 05/04/2000.

Na verdade, esta imagem que o Sr. Amaro revela de si próprio, serve de emblema para caracterizar outras narrativas que investem na afirmação da masculinidade como um dos atributos mais positivos dos sertanejos.263

Ainda com relação às festas de casamento, ao atravessar os sertões de Morada Nova, fui informado que no passado era comum em todas as festas de casamento haver uma disputa pelo lenço da noiva. A brincadeira, acontecia antes dos noivos e convidados chegarem à casa da noiva. Assim, dois cavaleiros se perfilavam, cada um segurando em uma das pontas do lenço, para ver quem permaneceria com o lenço, após a disparada dos animais. Aquele que chegasse à casa da noiva com o lenço na mão, além de ser festejado pela bravura, recebia como prêmio uma garrafa de vinho da noiva. Demonstrando muita saudade desses tempos felizes, o Sr. Pedro das Neves relembrou a época em que corria segurando im punta de lenço.

Corri munto im punta de lenço, lenço da noiva, né? (..). Aí, butava dois cavalo, um pegava na ponta do lenço e o outo nouta, partia, né? O cavalo que fosse mior, tumava o lenço da noiva, né? Saía vuando, né? (...) pa chegar lá na casa do dono da... do pai da noiva com o lenço da noiva, né? Quando chegava com o lenço, aí tinha vinho, vinho da noiva, nera? Pra dá aquele camarada que chegava com o lenço da noiva. (...). Mas, isso era bom, meu filho, isso era bom. (...). Era, o camarada que chegava na frente tinha uma bravura medonha, né?264

Com os olhos perdidos na distância e na rememoração do passado, o velho Pedro das Neves deixou-se levar pelas lembranças que atravessava o seu pensamento, fazendo-o retornar ao dia do seu casamento.

Eu casei no dia vinte e hum de agosto de 1950, vinte e um de agosto de 1950, eu me casei. Padre Assis que fez meu casamento, na matriz de Morada Nova, na paróquia. Fomo de pés, acompanhamento de pés, os noivado. A noiva, era com um vistidão bem cumprido, branco, de véu e

263

Sobre essa questão ver: Durval Muniz de Albuquerque Jr. “’Quem é frouxo não se mete’: violência e masculinidade como elemento constitutivos da imagem do nordestino”. In. PROJETO HISTÓRIA: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP n° 19. São Paulo, SP, 1999.

264

Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Varzantes, município de Morada Nova, no dia 08/04/2000.

grinalda e duas criança, duas mininazinha agarrada alevantando o vistidim dela pra ela puder andar, né? Nóis de pé, tudo de pé. Quando nóis cheguemo im casa do pai da noiva, foi um festival medonho, uma cumiduria medonha pra todo mundo. Sobrou cumida à vontade, só num tinha era bebedeira. Bebedeira num tinha não, era só cumiduria. (...). O velho meu sogro num aceitava bibida.

Envolvido por uma forte emoção, o Sr. Pedro das Neves deixou-se traduzir pela saudade que sentia ao recordar não apenas o dia do seu casamento, mas, sobretudo, os quarenta e nove anos e oito meses que viveu ao lado da sua esposa. Seu pensamento, sem poder fixar-se no presente, vagava pelo passado recobrando os momentos felizes que passou ao lado daquela que desde os seus vinte e cinco anos de idade lhe fora amparo e dedicação. Em seu relato, talvez inconsciente, revelou o quanto o amor é um sentimento profundo.

Eu gosto de me lembrar do passado e num me esqueço nunca; eu num me esqueço nunca do passado. É tanto, que a minha patroa faliceu, hoje tá com Deus, na hora quase das última dela, ela me convidou pa eu ir mais ela, né? E, eu chorando, disse pa ela: - minha filha, eu vou quando Deus quiser. Mas, que você vá hoje, quando Deus quiser eu vou também, né? Aí, ela ainda me respondeu, as lagrimazinha correndo aqui nos olho. - ‘Meu velho, quando você for vá pa onde eu tô’. Aí, eu fui digo: - Quem sabe é Deus, minha filha. Se Deus quiser e permitir, e, você tiver o gosto, o prazer de ir pum canto bom; e, quando eu for, tiver também o mermo prazer, nóis se junta, samo os mermo amor que samo aqui na terra, nóis samo no paraíso, né? E, com isso, meu filho, ela se...