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A administração municipal e a acção cultural e recreativa

5. Acções municipais de animação do espaço público

5.3. Acção cultural e recreativa

5.3.4. A administração municipal e a acção cultural e recreativa

As competências municipais no domínio da política cultural são vagas (Santos, 2007) e são-no de forma mais aguda no que à sua realização nos espaços públicos diz respeito, dando azo a uma multiplicidade de formas de actuação distintas neste domínio, incluindo a não actuação. A primeira constatação que aqui cabe é, consequentemente, a de que a acção cultural e recreativa para a animação do espaço

público depende, em primeiro lugar, da sua inclusão na agenda política e de uma vontade explícita do município para a sua promoção.

As recomendações ao nível da concepção dos espaços que com a acção cultural e recreativa interferem também são relativamente escassas e incidem sobretudo sobre a sua predisposição para o acolhimento de ocorrências de pequena e média dimensão, variando, naturalmente, com o próprio teor do evento. Existem, pois, pistas sobre como conceber espaços de forma a que a presença de arte e entretenimento de rua não entre em conflito excessivo com as dinâmicas de utilização quotidiana dos mesmos, podendo assim cumprir de forma mais adequada o seu desígnio. As recomendações incidem, ainda, sobre práticas de gestão complementares, aquando da ocorrência desta sorte de acontecimentos, aqui incluindo também, de forma mais explícita, actividades como feiras e mercados ao ar livre. Encontram-se, também, algumas linhas de orientação relativamente às características de obras de arte pública a instalar, ainda que aqui se encontre uma variabilidade grande de opiniões, sobretudo quando se confrontam discursos oriundos do campo artístico com as posições de urbanistas e planeadores.

Para eventos de maior dimensão, torna-se mais difícil a prescrição de princípios de concepção dos espaços. Haverá, naturalmente, atributos dos espaços públicos que os tornam mais ou menos indicados para acolher determinado tipo de eventos, mas esta adequação dependerá, claro está, das características dos mesmos. Por serem razoavelmente esporádicos e bastante distintos entre si ao nível das exigências colocadas aos espaços, duvido da necessidade de moldar a concepção do espaço público aos requisitos que os eventos lhes coloquem eventualmente; exceptuar-se-ão, talvez, espaços que, devido a, por exemplo, o seu valor simbólico ou serem marginados por determinadas ocupações, como equipamentos culturais, se assumam como lugares prováveis de acolhimento deste tipo de ocorrências. Será sobretudo o evento, creio, que deverá procurar o espaço mais adequado para o seu desenrolar e adaptar-se às contingências que o mesmo lhe coloque.

O fomento da animação dos espaços, através de actividades de maior ou menor dimensão, tem, contudo, que acautelar inevitavelmente a intensificação da utilização dos espaços públicos que daí advier. Este acautelar poderá justificar a dotação do espaço com equipamento e actividades adicionais (por exemplo, sanitários, bebedouros, fornecimento de água e energia eléctrica, vendedores de comida), mas deverá contemplar sempre as práticas de limpeza e manutenção dos espaços. A questão da capacidade de carga foi por mim tratada sempre como a quantidade de pessoas que, geométrica/fisicamente, cabem numa determinada área e o conceito de capacidade efectiva que lhe contrapus assenta em noções de limiares de conforto e agradabilidade da experiência em função da densidade de pessoas. No entanto, uma eventual sobreutilização dos espaços é também relativa à capacidade das práticas de gestão instaladas, e em particular as de limpeza urbana, incluindo a instalação de equipamento associado (e.g. papeleiras). Nesse sentido, esta deverá ser reforçada para acolher a carga de utilização adicional e a limpeza dos espaços deverá ser feita o mais imediatamente possível, de forma a não interferir negativamente com a utilização dos mesmos por outros utentes, no seguimento destas situações.

Todavia, ressaltou igualmente desta discussão que a programação de actividades no espaço público

deve estar enraizada numa política cultural, urbanizando-a. A ambiguidade das competências

municipais neste domínio dá larga margem de manobra às administrações e uma eventual prossecução das linhas de actuação que aqui delineei poderá incorrer, com alguma facilidade, em autoritarismo (Pinder, 2002) normativo, ainda que bem intencionado, ou em versões comodificadas e apaziguadoras da diversidade e multiplicidade urbanas que pretende celebrar. Arrisca-se, ainda, a burocratizar e, por consequência, a normalizar, num processo “gestionalista” (Quinn, 2005), algo cujo carácter imprevisto, subversivo e alheio a arquitecturas organizacionais institucionalizadas eu valorizei repetidamente ao longo do presente trabalho.

Ao risco do autoritarismo e do afastamento da programação das necessidades e desejos das populações, na sua diversidade, tem sido contraposto, como medida mitigadora, um conjunto de processos artísticos e de concepção e gestão dos espaços que buscam o envolvimento directo das comunidades visadas. Não obstante os potenciais ganhos interessantes deste tipo de abordagens, sobretudo para espaços comunitários, penso que é necessária cautela no estabelecimento de relações imediatas entre dinâmicas participativas e mais e melhor democracia. Quaisquer que sejam, os processos seguidos por determinada acção não prescindem do teor substantivo da mesma53 e a convocação explícita de grupos específicos para um processo decisório e a exclusão, voluntária ou não, de outros pode, na verdade, acentuar exclusões eventualmente existentes no espaço, legitimando-as institucionalmente. Simetricamente, uma acção concebida e executada centralmente, desde que sensível ao contexto em que se insere, não será necessariamente alienante e despropositada e, por vezes, a convocação do cidadão anónimo ou do público abstracto pode ser menos anti-democrática que operações baseadas em dinâmicas participativas. A minha opinião é a de que esta deriva autoritária será mais facilmente contrariada se as acções culturais e recreativas de animação do espaço público entenderem como sua missão primeira o fazer perguntas e suscitar esse questionamento nos cidadãos, ao invés de procurarem oferecer respostas claras.

O risco de burocratização poderá ser contrariado se, a par desta programação activa de actividades culturais e recreativas, a administração municipal adoptar postura permeável e receptiva a eventuais propostas, manifestações e intenções bottom-up, acompanhada dos meios adequados para o efeito. O surgimento destas depende largamente da existência de uma sociedade activa e dinâmica; a administração municipal disporá certamente de formas de a estimular, mas estas estão para lá do âmbito do presente trabalho. Certo parece-me ser que a relação com os agentes e actores locais é um dos aspectos sensíveis e determinantes no desenho de uma hipotética política de animação do espaço público. Adicionalmente, julgo que, também aqui, fará sentido advogar uma postura de não-intervenção em manifestações de natureza cultural e recreativa que surjam espontaneamente no espaço público, excepto quando o motivos de força maior o justifiquem.