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Acções de maior dimensão e reterritorialização dos espaços

5. Acções municipais de animação do espaço público

5.3. Acção cultural e recreativa

5.3.2. Acções de maior dimensão e reterritorialização dos espaços

O recurso ao termo “reterritorialização”, que surge aqui com destaque pela primeira vez neste trabalho, pretende frisar que a “maior dimensão” do título é, na verdade, relativa, referindo-se a situações em que a ocorrência da actividade cultural e recreativa se sobrepõe, transformando-as radicalmente, às dinâmicas quotidianas de utilização dos espaços. Sublinha igualmente, por consequência, o cariz situacional e transiente de um estado de animação do espaço público, recusando noções essencialistas do mesmo. Neste sentido, o recurso ao termo de Deleuze e Guattari (2004; 1992) - atente-se que de forma ligeira e sem querer mergulhar na complexidade da sua obra -, é particularmente adequado, na medida em que ele estabelece precisamente o cariz transitório dos territórios, sempre susceptíveis a profundas transformações, em constantes movimentos de des- e reterritorialização em realidades outras, através de linhas de fuga.

Ora, é na medida em que estas actividades transformam um dado espaço público num espaço outro (dum ponto de vista relacional, claro está) que se constituem como oportunidades para a prossecução de uma agenda filiada numa concepção normativa de animação do espaço público. Esta oportunidade será melhor entendida, e problematizada, a partir da apresentação, sucinta, da tensa relação que existe entre eventos e aquilo a que se pode chamar a sociedade do espectáculo50.

O espectáculo e a sociedade do espectáculo têm-se assumido como um constructo recorrente em muita da produção crítica sobre as cidades e sociedades contemporâneas e, com particular frequência, em relatos sobre o papel de eventos no espaço público. O termo, originário da produção intelectual da Internacional SItuacionista (Knab, 2006) e, em particular, da obra Sociedade do Espectáculo de Guy Debord (1992), não se reporta aos espectáculos em sentido estrito do termo, eventos que se assumem como entidades discretas, mas ao espectáculo como totalidade, à ubiquidade da representação e de regimes representacionais, sobretudo através da imagem, nas sociedades (capitalistas) contemporâneas, das quais se assume como um princípio organizador central (Pinder, 2000). Esta organização social,

50 Assumindo que serei mais uma das vozes que, recorrendo e referenciando este corpus teórico e discursivo, o não

farei com a profundidade devida, não referindo o contexto da sua génese nem dando conta do seu significado no mais vasto projecto intelectual e revolucionário da Internacional Situacionista (Pinder, 2000).

onde a imagem se articula com os bens materiais e as técnicas administrativas para alienar progressivamente as pessoas das várias esferas das suas vidas, redunda numa acumulação de espectáculos que insta as pessoas a serem, mais que agentes activos, espectadores, «ocupando os papéis que lhes foram atribuídos num estado de contemplação passiva» (ibid.: 362). Não se trata somente, pois, de um acumular de imagens, mas de «uma relação social mediada por imagens» (Kohn, 2008: 477) e uma forma de ver o mundo que se transforma numa força objectiva (Debord, 1992: 17) de tal forma que «tudo o que outrora era vivido directamente se tornou mera representação» (Debord, 1992: 15).

O espectáculo torna-se, pois, uma força unificadora através, paradoxalmente, da imposição de movimentos de separação, separando «os indivíduos uns dos outros e ligando-os através da sua relação com um objecto partilhado», o centro que os mantém isolados uns dos outros ao estabelecer relações unidireccionais com cada um deles (Kohn, 2008: 477), perturbando o elo entre resposta emocional e acção e entre experiência e responsabilidade. O espectáculo é, assim, simultaneamente um veículo de alienação e de sociabilização, ainda que esta última se assuma como uma «forma imaginária de estar junto» (ibid.: 477).

É claro, julgo, o potencial da transposição destas considerações para eventos e ocorrências de animação do espaço público através de actividades culturais e recreativas. A definição destas actividades primariamente como algo “para ver” no espaço público pode, inadvertidamente, justificar opções de programação que actuem exclusivamente a um nível “cosmético”, incrementando, de facto, a atractividade e, provavelmente, a agradabilidade do espaço, mas que não operem para lá desta dimensão espectacular, incentivo à passividade não estabelecendo elos significativos com o contexto e não capitalizando, portanto, a oportunidade que estes eventos podem constituir.

A questão é, então, a de fomentar uma programação de actividades no espaço público que contrarie a passividade do público e que, ainda que a eles tenha (e deva) inevitavelmente recorrer, se não torne refém de regimes representacionais, incentivando a exploração de outras possibilidades à realidade actual e outras formas de relacionamento com o espaço urbano (Pinder, 2000). Irei desenvolver este meu argumento em torno de três noções-chave: a de convivialidade / festividade, a de reflexividade e a de

urbanismo utópico prático.

Esta última expressão, cunhada por Ash Amin (2006), consiste numa crença na coisa comum (shared commons, no original) e no envolvimento público activo como forma de contrariar o individualismo desinteressado que domina, no seu entender, as sociedades contemporâneas, desinteresse este que me parece relativamente coincidente com a alienação a que a teorização situacionista alude. O termo “prático” permite a articulação com uma concepção de pensamento utópico como algo «explicitamente parcial, (…) que aceita a resistência e o fluxo como necessários e merecendo reconhecimento e não como algo a esconder na criação de um mundo supostamente isento de conflitos», sendo, por

conseguinte, «resistente à oclusão e [estando] sempre em processo», tornando-se numa abordagem em direcção a algo por estabelecer, para lá de limites estabelecidos (Pinder, 2002: 238), ou, no dizer de Amin (2006: 1013), «permanece experimental nas suas práticas e resultados, sem que isso diminua a sua significância enquanto modelo de boa cidade». Procura, assim, evitar os perigos de uma orientação por imagens singulares do futuro ou de representações estáveis de uma boa sociedade, “sonhos de unidade” que negam as suas condições situadas e parciais de existência (Deutsche, 1996 apud Pinder, 2002). Este utopismo de processo não prescinde, contudo, de construções materiais e espaciais que lhe sirvam como referenciais, sendo na dialéctica entre processo e coisa que, precisamente, se desenvolve (Pinder, 2002).

Reporto esta “noção-chave”, claro está, à subjugação da programação de actividades à concepção normativa de animação do espaço público, que, no fundo, se assume como uma visão de espaço público, cidade e sociedade melhores, partilhando, por isso, algumas semelhanças com uma visão utópica próxima das “utopias de reconstrução” (Mumford, 2007), tentativas de proporcionar condições para a libertação futura das populações, procurando transformar o mundo de forma a que seja possível com ele interagir nos termos dos próprios indivíduos51. Ora, creio que a forma de instrumentalizar a programação de actividades sob a égide desta concepção normativa é, precisamente, pela promoção da convivialidade / festividade e da reflexividade nos seus espectadores.

A promoção da convivialidade e da festividade entronca, naturalmente, na convivialidade enquanto parâmetro constitutivo da concepção normativa de espaço público. Uma vez mais afirmo que, não obstante a sociabilidade e festividade no espaço público se afirmarem como realidades desejáveis por direito próprio52, interessa aqui também a forma como um particular arranjo das mesmas pode funcionar, pedagógica e metonimicamente, como uma promessa de plenitude assente numa crença profunda nas virtudes da vida urbana, assim contribuindo para o fortalecimento de uma noção não totalizante de civitas urbana.

O espectáculo (na sua acepção debordiana) pode, contudo, funcionar como elemento de sociabilização, conforme afirmei, mas através, paradoxalmente, da separação dos indivíduos enquanto colectivo, surgindo como «espectáculo da comunalidade baseado numa experiência partilhada passivamente ao invés de uma comunidade activamente constituída (...), [onde] o consumo do lazer substitui uma vida pública mais participativa» (Kohn, 2008: 479). É necessário, portanto, e retornando às figuras de Rousseau, contrariar uma configuração teatral das relações entre público e actividades, rumo a uma

51 Às utopias de reconstrução opõem-se as de escape, que deixam o mundo tal como ele é, procurando uma

libertação imediata das dificuldades ou frustrações existentes.

52 Devo, todavia, referir que há quem discorde desta minha crença. É o caso de Lamarche-Vadel (1997), que

defende que a arte nos espaços públicos deve combater o perigo de se tornar exclusivamente lúdica (e, por conseguinte, exclusivamente animação, subentendendo-se uma conotação ligeiramente pejorativa no emprego do termo).

baseada na figura teórica da festividade, onde a sua função social se sobrepõe ao seu conteúdo (ibid.; Chaudoir, 1999), assumindo-se como «estratégia social [usada] para combater a crescente alienação e insegurança sentidas no espaço público» (Quinn, 2005: 937).

As acções de animação do espaço público através da cultura e do recreio deverão, consequentemente, refutar o mais possível a replicação dum modelo performativo associado à sala de espectáculos, assente na passividade e reactividade do público, procurando revestir-se de um poder triangulador que, de certa forma, se consiga eclipsar após esta alavanca inicial, de maneira tal que a experiência animadora não seja exclusivamente aquilo a que se assiste (consome, repescando a terminologia do referencial teórico- analítico), mas o acto e o contexto do consumo. Ou, parafraseando novamente Amin (2008), através de intervenções que se dirijam explicitamente ao grão da interacção interpessoal.

Kohn (2008: 482) estabelece e paralelo entre esta capacidade trianguladora dos espaços e a função fática da linguagem, um conjunto de expressões que «inicia, mantém ou interrompe o contacto», sendo que também os espaços podem agregar ou separar, encorajar ou inibir o contacto entre pessoas e determinar a forma e âmbito dos mesmos. Esta função fática não se aplica somente, contudo, à intersubjectividade explícita, mas também à reflexividade individual.

Decorre da minha convicção do potencial poder pedagógico e metonímico da convivialidade (relembro que se referem, respectivamente, a uma promoção da negociação com a diferença e a uma experiência da totalidade da urbanidade e da civitas urbana pela vivência de situações concretas) que esta será a primeira forma através da qual as actividades culturais e recreativas poderão estimular a reflexividade nos indivíduos presentes no espaço público. Socorrendo-me novamente da terminologia deleuzo- guattariana, creio que as acções de animação se poderão constituir linhas de fuga ao longo das quais se poderão vislumbrar territorializações alternativas que dêem corpo a concepções alternativas de cidade e sociedade e que substituam a homogeneidade de racionalidades únicas (Crang e Graham, 2007), refutando explicitamente a máxima thatcheriana de que “não há alternativas” (Pinder, 2002)

Mas as actividades culturais e recreativas, e aqui incluo igualmente um entendimento estrito de arte pública enquanto arte plástica, também podem ser trabalhadas, sobretudo ao nível do conteúdo, de forma a irem ao encontro do referencial normativo e de uma determinada postura por parte da administração. Sharp et al. (2005: 1004) disso fazem eco, ao afirmarem que «através da arte pública, as autoridades podem sinalizar a sua disponibilidade para lidarem com problemas sociais e ambientais».

Não obstante o perigo de se cair nos excessos representacionais a que a teorização do espectáculo alude (e sobretudo no caso das artes plásticas / visuais), é minha convicção que as acções municipais de animação do espaço público, normativamente orientadas, devem lidar explicitamente com as questões de injustiça simbólica, reconhecendo o passado e reivindicações não atendidas aos espaços públicos, dando visibilidade e promovendo a redescoberta das margens da sociedade, combatendo estereótipos existentes e, genericamente, reconhecendo a inevitável existência de dinâmicas de dominação cultural e consequentes resistências (ibid.).

Trata-se sobretudo, por consequência, de interpelar os parâmetros urbanidade e publicidade da concepção de espaço público animado, na sua multiplicidade, diversidade e denotando preocupações com noções de justiça social e urbana. Esta interpelação corre, no entanto, alguns riscos, nomeadamente quando é feita, ainda que inadvertidamente, através dos dispositivos preferenciais do espectáculo. Latham (2003) dá conta de uma tendência contemporânea para a valorização das cidades enquanto lugares de diferença que, não sendo em si nova (relembro Simmel, Wirth e Benjamin, por exemplo), ganha contornos de novidade porque esta celebração da diversidade é «mediada, manufacturada e embalada», onde o desfrutar dos gostos, estilos e sons de outras culturas não requer qualquer sorte de interacção profunda com as mesmas nem com os seus protagonistas, quedando-se num consumo estetizado da alteridade. Neste sentido, mais que sítios de diferença, são sítios do pitoresco (May, 1996 apud Latham, 2003). É disso que Jamieson (2004: 72) dá conta, no contexto dos inúmeros festivais que têm lugar na cidade de Edimburgo: «as diferenças culturais que são celebradas (...) privilegiam os interesses dos peregrinos culturais abastados que procuram a alteridade tradicional e saborosa» sustentada em imagens estereotípicas do léxico do consumismo e da publicidade. Esta cidade do festival «ordena as aparências e cultiva a aparência de diferenças», encenando uma diferença performada, de maneira a que esta seja «promovida, reconhecida e celebrada, ao passo que as diferenças que desafiariam genuinamente e reordenariam o significado social estão para lá do mapa do festival». Este surge, enfim, como uma heterotopia manufacturada, habitado por uma «aparência de liminalidade e liberdade (...), mais preocupada com o aparato que com a inversão e a revolta» (ibid.: 72), «uma versão idealizada, saneada da cidade, onde as oportunidades reais de envolvimento genuíno com a cultura e múltiplas realidades do lugar, tanto para os locais como para os visitantes, se mantêm à margem» (Quinn, 2005: 936).

Estes “perigos” decorrem, em grande parte, dos objectivos que presidem à organização deste tipo de ocorrências, em particular os festivais urbanos e outros mega-eventos, de natureza maioritariamente económica, assente numa crença num efeito catalítico (Quinn, 2005) dos mesmos na atracção de turistas, no alavancar de processos de regeneração urbana, em processos de marketing territorial e de reformulação da imagem dos territórios, mas também no reclamar de espaço e tempo para celebrações comunais. Não obstante a legitimidade destes objectivos, creio que se deverão sempre articular com preocupações de outra natureza. Esta origem tende a incentivar lógicas de reprodução formulares conducentes ao aprofundar de uma «tensão entre cultura como algo enraizado no lugar e cultura como um padrão de eventos e experiências globalizados com cariz de não-lugar» (ibid.: 937); lógicas estas que deverão ser contrariadas com um esforço de localização destas ocorrências, que se revela necessário, não obstante os receios de que pela sua «natureza focada (...) possam ser incompatíveis com a capacidade de interpelar os diversos conjuntos de preferências representados na cidade» (Sharp et al., 2005: 1003).

Estes objectivos não são necessariamente incompatíveis com a ênfase que tenho vindo a colocar no teor normativo das acções culturais e recreativas para a animação do espaço público e a conciliação destas

duas lógicas distintas, frequentemente em conflito, deverá ser um dos focos de preocupação das acções municipais de animação do espaço público.