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4. A animação do espaço público como estado

4.3. Factores de animação do espaço público

4.3.10. Coisas para ver e fazer

O presente factor afirma a importância de atractores dos indivíduos, no espaço público e envolvente, para que estes a eles se desloquem e, sobretudo, para que aí permaneçam por períodos mais longos. Entronca, por conseguinte, em muito do que tenho vindo a escrever a propósito de outros factores de animação ao longo deste capítulo. A necessidade de haver “coisas para ver e fazer” intersecta, ainda, dois conjuntos de conceitos que têm vindo a aflorar ao longo deste trabalho: as noções de actividades (acções, na minha terminologia) necessárias e opcionais (de Gehl, 2006), as de envolvimento passivo e activo (de Carr et al., 1992) e as de socialização coberta e aberta (de Marcus et al., 1990b)

Fomentar a ocorrência de acções necessárias no espaço público é das formas mais eficazes de incentivar a animação dos espaços públicos, ao levar à presença de indivíduos no espaço. Ora, uma vez que a presença de outras pessoas é dos elementos mais determinantes para a atracção de indivíduos aos espaços públicos (Whyte, 1990), criar condições para a ocorrência de acções necessárias pode

funcionar como a alavanca inicial para a animação dos espaços. Esta “alavanca” poderá funcionar a

distintos níveis, já aflorados noutros lugares deste trabalho; um deles é, pela existência de “massa crítica”, possibilitar a viabilidade e, consequentemente, o surgimento de actividades organizadas, dependentes de fluxos intensos de pessoas, numa lógica nada distante das economias de aglomeração. É de notar que o surgimento de actividades implica não só um aumento do número de utilizadores do espaço (os trabalhadores / provedores de serviço), mas também ao nível da sensação de “movimento” no

espaço (conforme referi no referencial teórico-analítico e subsequente teorização de estado de animação), constituindo-se, elas mesmas, como “coisas para ver” (este “ver” deve ser entendido em sentido lato, denotando sobretudo uma postura que se aproxime do contemplar / ver / fruir). A alavanca também pode funcionar, portanto, ao despoletar um conjunto de acções opcionais, em particular as de envolvimento passivo, ao fornecerem algo que ver e fruir (pessoas, a socialização coberta). Para tal, é necessário, no entanto, que se reúnam condições ao nível do conforto (físico e psicossocial), sendo que a configuração dos espaços e do seu equipamento pode construir campos de visão que fomentem esta contemplação; ambas as questões foram problematizadas noutros factores de animação, abstendo-me aqui de repetições.

É de realçar ainda que o envolvimento passivo, a contemplação de algo, não tem os outros indivíduos presentes no espaço como objecto exclusivo; relembro, neste contexto, as considerações tecidas a propósito da relevância de determinados elementos de mobiliário urbano passíveis de os transformar em algo “contemplável”. Refiro, ainda, uma concepção lata de paisagem urbana, que inclua não só a cena urbana, o que acontece no espaço, como a materialidade do mesmo e dos edifícios marginantes e eventuais qualidades estéticas dos mesmos. As actividades culturais e recreativas podem ser outro elemento passível de contemplação (mais ou menos passiva) e serão desenvolvidas em algum detalhe mais adiante.

As “coisas para fazer” também podem implicar acções necessárias ou opcionais, sendo a constatação básica, aqui reiterada, a que já foi tecida a propósito da apresentação das actividades organizadas no referencial: a simples presença de actividades no ou em torno do espaço público atrai indivíduos, seus utentes, independentemente do teor necessário ou opcional dessa presença. A tónica, aqui, é a do

envolvimento activo, contraposto ao passivo identificado genericamente com as “coisas para ver”. Este

envolvimento activo inclui, então, não só o consumo das supramencionadas actividades organizadas (comerciais, culturais, recreativas…); o envolvimento físico com a materialidade do espaço, que depende tanto das possibilidades dadas pela organização espacial como da “abertura” do espaço, enquanto liberdade de movimentos no mesmo; e a socialização aberta com outros indivíduos nos espaços. Aplicam-se, assim, todas as disposições já apresentadas noutros factores de animação que interfiram com a capacidade dos espaços albergarem qualquer uma destas três modalidades de envolvimento físico. Há, contudo, algumas considerações específicas ainda não tecidas que sê-lo-ão aqui.

Há três tipos de actividade no espaço público que são particularmente valorizados em muita da literatura: a venda de comida e bebida, a presença de actividade comercial e as actividades culturais e recreativas.

A presença de vendedores ambulantes, quiosques ou de esplanadas disponibilizando comida (e bebida) aumentam bastante a capacidade atractiva dos espaços e animam-nos, por si só, atraindo pessoas que atraem, por sua vez, mais pessoas, para além do mero efeito benéfico, a nível visual, da sua instalação

(Whyte, 1990). A sua presença poderá depender, então, da existência de instalações físicas (quiosques) ou duma atitude, por parte das entidades competentes, de pelo menos permitir a presença de venda ambulante e/ou de esplanadas nos espaços. Uma dependência excessiva de esplanadas associadas a funções marginantes é potencialmente perniciosa dum ponto de vista da acessibilidade e publicidade do espaço; é nesse sentido que o regulamento de zonamento de Nova Iorque, elaborado sob a égide dos trabalhos empíricos de Whyte, incentivava a instalação de esplanadas e cafés exteriores, mas salvaguardando sempre a possibilidade de brown bagging43 na praça. Sá (2010) adopta análoga postura cautelosa, ao definir que a instalação de equipamentos como quiosques e pequenos cafés em parques não deverá ocupar mais de 10% da superfície do mesmo nem interferir com a sua função básica, de estar.

A concentração das actividades e do equipamento para comer e beber em determinadas áreas dos espaços pode ter efeitos bastante positivos na promoção da sociabilização (ibid.).

Se comer se torna numa acção relativamente comum num determinado espaço, tal requererá, para conforto dos utentes, a provisão de um conjunto de equipamentos, dos quais se destacam, sobretudo, os sanitários, bebedouros e papeleiras/caixotes do lixo em quantidade suficiente (Marcus e Greene, 1990).

A especialização da actividade comercial levou a que esta quase desaparecesse de muitos espaços públicos quotidianos das cidades ocidentais, por receios de concorrência às actividades marginantes. No entanto, tem surgido reconhecimento crescente de que a venda de certo tipo de bens em localizações específicas pode, na verdade, contribuir positivamente para os retalhistas na envolvente, para além de animarem os espaços e, sendo presença nos espaços, promoverem maior segurança dos mesmos. Esta actividade pode ser regulada quanto à localização, dimensões e desenho dos equipamentos ambulantes, ao tipo de bens cuja venda se admite e aos processos de licenciamento. Tendencialmente, o comércio que surge nestes espaços, em particular nos centros das cidades, é aquele que mais escasseia na oferta da envolvente, incluindo flores, fruta e vegetais, artesanato e alguma comida (Marcus et al., 1990a). Para além de, no caso da fruta e vegetais, poderem fomentar o comer e beber nos espaços públicos, estas vendas têm ainda um impacto bastante positivo ao nível sensorial, pela sua cor, aroma e convite ao toque; esta “aproximação” a este tipo de produtos é, ainda, bastante interessante ao nível da promoção da sociabilidade (Whyte, 1990).

Estas actividades são mais apropriadas numa multiplicidade de locais, desde espaços já de si animados a outros menos utilizados, onde o seu impacto (em particular da venda de comida, associada a espaços sentados e mesas) pode ser significativo e em alargamentos funcionais junto a paragens ou estações de transporte público ou junto a passeios que acolham fluxos pedonais intensos.

A sua instalação e localização devem, portanto, atentar em detalhes como a largura dos passeios, fluxos pedonais, entradas em edifícios, visibilidade e acessibilidade, mobiliário urbano, paragens de transporte público e localização de montras (ibid.).

A existência de actividades culturais e recreativas é já algo que depende, sobretudo, das práticas de gestão do espaço público. Num primeiro momento, depende somente duma postura mais laxista ou, inversamente, mais restritiva por parte das entidades encarregues da gestão do espaço face a determinadas actividades que aí surjam espontaneamente. Mas, num segundo momento, pode ser, também, fruto de uma atitude pró-activa por parte dessas mesmas instituições, naquilo a que Marcus et al. (1990a) chamam de programação. Estes programas podem incluir desde os oferecidos com regularidade pela administração do espaço, a festivais sazonais, a eventos, mais ou menos frequentes, e a artistas de rua que entretêm os transeuntes, sendo que é prática corrente em muitas cidades americanas que estes tenham que se sujeitar a audições para obtenção de licença para actuar no espaço público (ibid.).

Estas actividades, dependendo da sua envergadura, podem atrair pessoas aos espaços ou incentivá-las a neles permanecerem mais tempo e, em função do seu conteúdo, poderão não só animar o espaço como ter função pedagógica. Podem, ainda, ter impacto positivo no desempenho económico das actividades marginantes e no espaço público (Project for Public Spaces, 1984 apud Marcus et al., 1990a) e, inclusivamente, fomentar o aparecimento destas últimas.

Para além da questão “postural” dos intervenientes na concepção e gestão dos espaços, a ocorrência deste tipo de actividades pode, ainda, ser fomentada por alguns elementos físicos do espaço. Whyte (1990) afirma que os melhores lugares para apresentação de artistas de ruas (de dimensão reduzida) são, pura e simplesmente, espaços abertos. Este tipo de ocorrências atrairá, no máximo 125 a 150 pessoas; a partir deste limiar, os indivíduos nas filas de trás estão demasiado afastados dos artistas. Também aqui a capacidade auto-reguladora da utilização dos espaços é notável.

Eventos de maior envergadura exigirão espaços maiores e logística mais complexa (ibid.). Para estes casos (mas também para os de menor dimensão), pode prever-se uma localização que funcione como palco, permanente ou temporário (incluindo ou não a instalação de um palco propriamente dito), de tal forma a permitir a presença de espectadores sem perturbar os fluxos de circulação e tendo em conta a sua orientação face ao sol nas horas mais sensíveis. Este eventual palco deve, ainda, acautelar o seu uso em alturas em que não haja performances, permitindo a sua utilização como espaço sentável ou de estar (Marcus et al., 1990a). Aplicam-se, ainda, algumas disposições para dias em que ocorram eventos de envergadura razoável, nomeadamente (ibid.):

- Localização das infra-estruturas e equipamentos de forma a não interromper fluxos de acesso aos edifícios;

- Provisão de cadeiras desdobráveis e leves, com a primeira fila já colocada, assim definindo a distância aceitável entre público e performers;

- A amplificação, a haver, deve ser a um volume sensato, de forma a não empurrar o público para longe do palco, assim diminuindo a área disponível para os espectadores;

- Calendarização do evento de forma a coincidir com momentos de maior disponibilidade dos eventuais espectadores (e.g. nas horas de almoço);

- O uso dos espaços nestes dias será fomentado por concessões, temporárias, de licenças para venda de comida e bebida;

- Divulgação adequada dos eventos a ter lugar no espaço.

A provisão de infra-estruturas permanentes deve ser sempre, contudo, encarada com prudência, em particular quando se trata de anfiteatros (Whyte, 1990). Em primeiro lugar, as ocorrências de pequena dimensão são, normalmente, o grosso das actividades culturais e recreativas. Em segundo, a frequente monofuncionalidade e diminuta adequação para grupos menores torna estas estruturas, que podem, de facto, albergar grandes números de pessoas, potencialmente restritivas; o espaço que separa a primeira fila dos artistas é muitas vezes demasiado grande e difícil, se não impossível, de contornar, dada a rigidez da estrutura. Por isso, o simples espaço aberto, ou o relvado, podem assumir-se como espaços perfeitamente adequados, com a vantagem da sua maleabilidade. Eventuais inclinações nos espaços podem contribuir grandemente para a eficácia destes espaços. (ibid.)

No momento de execução destes programas, uma das maiores dificuldades com que as organizações se deparam é o assegurar o equipamento necessário; Whyte (ibid.) sugere que, para o efeito, as administrações municipais devem possuir um stock adequado de cadeiras, mesas, estrados e sistemas de amplificação.

O fornecimento de energia eléctrica é outro obstáculo com que a implementação deste tipo de actividades se depara regularmente, que poderá justificar a instalação de pontos de electricidade de 115 e 220 volts, assim evitando que, de cada vez que haja alguma ocorrência no espaço público, se tenha que esticar cabos, cobri-los, fixá-los e, posteriormente, desmontar tudo, aumentando custos, riscos e tendo um impacto negativo dum ponto de vista estético (ibid.). A existência deste tipo de infra-estrutura nos espaços confere-lhes flexibilidade na programação de eventos. A instalação da rede eléctrica deve ser acompanhada com a de rede de água, necessária para ocorrências em que haja fornecimento de comida e afins, assim diminuindo custos.

A sociabilização no espaço público (aberta, no dizer de Marcus e Greene, 1990) é a última “coisa para fazer” a que dou destaque. A sua relação com o espaço varia, conforme se depreende de muito o que tenho vindo a apresentar ao longo deste trabalho, em função não só do tipo de sociabilização em causa, como da relação entre os diferentes intervenientes. Por conseguinte, aplica-se a este respeito muitas das considerações tecidas a propósito de formas de promoção do envolvimento activo das pessoas com o espaço, que não repetirei aqui.

Surge aqui, mais uma vez, o papel da triangulação na promoção da sociabilidade entre indivíduos que não se conhecem previamente. É essa a definição de triangulação: «um processo pelo qual um estímulo

externo cria um elo entre pessoas e leva estranhos a conversarem entre si como se se conhecessem» (Whyte, 1990: 154).

São vários os elementos que podem despoletar esta triangulação, desde o próprio espaço ou a paisagem às suas componentes, aos seus utentes e, também, às actividades culturais e recreativas que eventualmente nele ocorram.

Já anteriormente avancei com a importância dos níveis de ruído para a possibilidade de manutenção de uma conversa. No entanto, distintas formas de conversa parecem ter exigências distintas sobre o espaço. O nível de ruído aceitável parece ser a única grande condicionante ao estabelecimento de conversas entre indivíduos que estão juntos, gente que se acompanha. As conversas aquando de encontros fortuitos entre conhecidos também só parecem ter um grande requisito: estar fora de casa por um período de tempo parece ser mais relevante para que tal aconteça que o lugar em que a conversa eventualmente se desenvolva. Para conversas entre estranhos, para além da relevância dos elementos trianguladores, a organização espacial pode facilitar este tipo de contactos, se se configurar para dar forma a paisagens de conversação (assentos próximos uns dos outros, organizados em torno de uma mesa, bancos curvos ou com ângulos facilitando conversa...); estas paisagens fomentam a conversa entre estranhos, mas facilitam também, claro está, a interacção entre indivíduos que já se conheçam. (Gehl, 2006)

Estas disposições a propósito do ruído, conjugadas com muito do que já foi tecido aquando de, por exemplo, as dimensões dos espaços ou a instalação de árvores nos espaços públicos, podem ser sintetizadas na apologia que Gehl faz de um desenho baseado no aparelho sensorial.

4.4.

Relações entre factores, indicadores e acções municipais de