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4. A animação do espaço público como estado

4.3. Factores de animação do espaço público

4.3.3. Relação com tráfego motorizado

Apesar de a animação do espaço público ter vindo a ser conceptualizada em torno do peão e do espaço pedonal, a presença do tráfego motorizado na envolvente imediata é um factor bastante relevante para as modalidades de utilização de um dado espaço público.

Ainda que muitos dos espaços públicos paradigmáticos do ponto de vista da sua animação sejam pedonais, trânsito automóvel e actividade pedonal não são incompatíveis. Contudo, tráfego motorizado

intenso e/ou a velocidade elevada nas imediações do espaço público tem impactos negativos fortes na

sua utilização, em particular para actividades de teor não necessário, por reduzir o conforto da estadia no espaço e por colocar restrições fortes ao movimento dos indivíduos. Gehl (2006) afirma ainda que esta relação não é directamente proporcional, na medida em que basta um volume de tráfego minimamente intenso e a uma velocidade razoável para que a utilização do espaço público pelos peões para lá do necessário diminua consideravelmente. A presença de tráfego automóvel intenso coloca ainda questões ao nível da percepção de segurança no espaço público, que serão abordadas adiante. A velocidade de circulação que, naturalmente, varia bastante quando se compara trânsito motorizado com deslocações pedonais, tem ainda implicações na percepção da quantidade de pessoas no espaço público: «se a velocidade de circulação se reduz de 60 para 6 quilómetros por hora, a quantidade de gente que há nas ruas parecerá dez vezes maior, porque cada pessoa estará dentro do campo de visual por um período de tempo aproximadamente dez vezes maior» (Gehl, 2006: 87).

Carmona et al. (2008: 45) sintetizam os relatos desta visão crítica da presença do automóvel na cidade na figura do “espaço invadido”, que se manifesta em quatro problemas principais:

- A fragmentação e degradação do espaço urbano pela proliferação de vias rápidas, de tal forma que o movimento entre fragmentos se torna uma experiência exclusivamente de movimento, ao invés de uma de movimento e social;

- O espaço público sobrante é, também ele, dominado pelo trânsito motorizado, perdendo a sua função social; o espaço dedicado ao trânsito automóvel é bastante superior ao dedicado aos peões, apesar de estes últimos serem em maior número;

- A transformação da cidade num “arquipélago de enclaves”, em que as deslocações entre distintos lugares comprimem-nos num espaço só, ostracizando os espaços intermédios, votados ao abandono.

- Surgimento de espaços totalmente dependentes do automóvel, onde os espaços públicos chegam a não existir, substituídos por estradas e estacionamentos, e as paisagens construídas nestes contextos são-no para serem consumidas a partir do veículo em movimento.

A relação com o tráfego motorizado coloca-se, por conseguinte, a um outro nível, mais alargado, que não o das características do tráfego na envolvente imediata dos espaços, e que de certa forma vai ao encontro do debate opondo o urbanismo funcionalista às cidades de matriz tradicional: a existência de

espaços públicos animados depende bastante de utilizações incidentais, não planeadas, que requerem que as pessoas estejam, antes de mais, a circular a pé pela cidade para nelas se poderem envolver. Uma cidade, ou parte de cidade, que privilegie as deslocações em veículos motorizados e em função delas se organize e configure o seu espaço público (a vialidade de que Borja e Muxí (2003) falam) não será, genericamente, palco de uma utilização do espaço público particularmente intensa.

É a constatação desta relação tensa entre actividade no espaço público e tráfego motorizado, conducente a uma «redução dramática no espaço disponível para os peões, uma redução na qualidade do espaço remanescente, restrições significativas à liberdade de movimentos dos peões dentro e entre espaços e o preenchimento dos espaços com a desordem e parafernália que o senso comum determinou que a coexistência segura entre pessoas e carros requer» (Carmona et al., 2008: 45), que tem levado à adopção de medidas como a pedonalização de ruas, a introdução de medidas de acalmia de tráfego, em particular em áreas residenciais, e a reorganização da rede viária com o intuito de retirar o tráfego de atravessamento de áreas mais sensíveis das cidades, nomeadamente os seus centros. Gehl (2006) defende estes modelos de organização, tanto o da troca da circulação rápida para uma lenta à entrada das cidades, como o da integração da circulação local em âmbitos pedonais (como nos sistemas woonerf, na Holanda), na medida em que representam esforços de integração da circulação com as actividades relacionadas com estâncias no exterior. Neste sentido, assumem-se, no entender do mesmo autor, como opções preferenciais aos actuais sistemas de vias diferenciadas, demarcando claramente espaços de circulação automóvel, pedonal e ciclável, que acabam por dispersar e separar pessoas e actividades e, por conseguinte, por ter impactos nefastos no nível da actividade no espaço público.

Mas há, contudo, outras actuações que, não se opondo tão explicitamente à presença do automóvel, poderão contribuir para mitigar eventuais consequências nefastas desta tensa relação entre trânsitos motorizado e pedonal. Alves (2003), procurando requisitos e identificando problemas que se colocam às superfícies de circulação motorizada e de estacionamento, avança com algumas propostas, como a definição geométrica e o controlo da escala da rua, assim inibindo excessos de velocidade automóvel e facilitando o atravessamento pedonal; a localização de passagens para peões em áreas mais sensíveis; a continuidade entre passeios; e a instalação de refúgios centrais em ruas largas, entre outras.

A geração de ruído por parte do tráfego automóvel é um outro aspecto que, neste domínio, impacta a utilização dos espaços, não só pelas suas consequências no conforto do espaço, numa perspectiva genérica, mas também, em concreto, pelos constrangimentos que colocam ao desenvolvimento de conversas. Estas só podem ser mantidas com ruídos inferiores a 60 decibéis e, para que se possam ouvir as nuances sonoras de uma situação social completa, não deverão exceder os 45-50 decibéis (Gehl, 2006). Todavia, Whyte (1990) defende que o impacto do ruído no conforto dos indivíduos não depende somente do volume do som, mas também, e em grande medida, do tipo de som em questão e do contexto em que se faz sentir, dando o exemplo do som de fontes e outros elementos com água que, não

obstante o volume bastante alto do ruído feito (e ao qual as pessoas reagem negativamente quando confrontadas com uma gravação do mesmo), tem um efeito positivo no contexto do espaço público.