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A afirmação da diversidade como um direito humano

Todos os povos têm o direito de ser diferentes, de se considerarem diferentes e de serem considerados como tais. Sem embargo, a diversidade das formas de vida e o direito à diferença não podem em nenhum caso servir de pretexto aos preconceitos raciais; não podem legitimar nem um direito nem uma ação ou prática discriminatória, ou ainda não podem fundar a política do apartheid que constitui a mais extrema forma do racismo (Declaração sobre Raça e os Preconceitos Raciais, 1978, Artigo1º).

A adoção da ideia de que a diversidade de povos constitui o “patrimônio da humanidade” se torna um dos pilares de orientação da UNESCO. Há, portanto,

 

uma mudança de orientação nos discursos da UNESCO: distinções como raça, sexo, gênero que, inicialmente, significantes que obliteram a concepção universal de humanidade, posteriormente, passam a ser consideradas como pertencentes à diversidade humana. Dito de outra maneira, a referência à concepção de que os elementos distintivos, que antes fracionavam os grupos em porções distintas de humanidade, passam a constituí-la de modo integral na rubrica da diversidade que adquire relevância como um valor humano. Essas distinções passam a ser derivadas da humanidade.

Maurel (2010) identifica que a UNESCO passa a incorporar uma noção de valorização dos particularismos, vistos como culturais, a partir da metade dos anos 1970, e termos como “conhecer” para “preservar” ganham força no discurso da Organização e nos projetos por ela impulsionados.

Comparato (2010) resume a pauta que a UNESCO passa a adotar:

O pecado capital contra a dignidade humana consiste, justamente, em considerar e tratar o outro – um indivíduo, uma classe social, um povo – como um ser inferior, sob pretexto da diferença de etnia, gênero, costumes ou fortuna patrimonial. Algumas diferenças humanas, aliás, não são deficiências, mas bem ao contrário, fontes de valores positivos, e como tal, devem ser protegidas e estimuladas (COMPARATO, 2010, p. 241).

Em consonância com seu segundo artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos declara:

Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, Artigo 2º).

Alastra-se a partir de então uma concepção múltipla do humano. A UNESCO se posiciona para o argumento de que as distinções culturais, físicas, religiosas, entre outras, são manifestações da pluralidade que constitui a humanidade. O “direito à diferença” refere-se ao reconhecimento de cada elemento passa a ser cunhado como um aspecto cultural, assim como expresso na Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de

 

Discriminação Racial de 1965. Ou seja, o que nos diferencia compõe é colocado no lugar da diversidade como variações culturais20. A concepção de diferentes culturas retorna, contemporaneamente, na noção de multiculturalismo que passa a incorporar princípios de reconhecimento, preservação, divulgação e “diálogo de culturas” permanecendo em seu objetivo de construir uma “cultura da paz”.

A UNESCO, ao proclamar a humanidade sem distinção de quaisquer diferenças, extrai a pluralidade da humanidade, consagrando-a como una. Posteriormente, o desafio é de ao mesmo tempo manter o caráter único da humanidade sem obliterar sua condição plural. A diversidade, outrora retirada da humanidade, é retomada como um valor a ser preservado, alicerçado no discurso de um relativismo cultural. Os condicionantes de raça, sexo, língua e religião, antes constituintes de porções de humanidade, passam a ser adotadas como elementos integrais a serem considerados e preservados. Há, por conseguinte, uma positivação do diverso, pautando, assim, um “novo universalismo baseado na diferença e na diversidade” (MATTELARD, 2005). A UNESCO deparou-se inicialmente com uma contenda, pensar a igualdade como principio básico da democracia e a diversidade utilizada historicamente em diferentes contextos nacionais como elemento de obstrução da igualdade. Articular tal dimensão à garantia política de fortalecer a democracia e a soberania dos Estados torna-se a questão fundamental da UNESCO. A resolução é dada no reconhecimento do valor da diversidade.

Após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, várias publicações são elaboradas e divulgadas de forma massiva. No texto da Declaração sobre Raça e os Preconceitos Raciais de 1978 aparece uma modificação na concepção da UNESCO. O que anteriormente distinguiria os agrupamentos humanos se traduz no reconhecimento de que tais distinções são um direito no léxico da humanidade:

Todos os seres humanos pertencem à mesma espécie e têm a mesma origem. Nascem iguais em dignidade e direitos e todos        

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Ver: RODRIGUES, T. C. ABRAMOWICZ, A. O debate contemporâneo sobre a diversidade e a diferença nas políticas e pesquisas em educação. Revista Educação e Pesquisa: São Paulo, v. 39, n. 1, jan/mar. 2013, pp. 15-29.

 

formam parte integrante da humanidade. Todos os indivíduos e os grupos têm o direito de serem diferentes, a se considerar e serem considerados como tais. Sem embargo, a diversidade das formas de vida e o direito à diferença não podem em nenhum caso servir de pretexto aos preconceitos raciais; não podem legitimar nem um direito nem uma ação ou prática discriminatória, ou ainda não podem fundar a política do apartheid que constitui a mais extrema forma do racismo (Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais, 1978, Art. 1º § 2).

No interior dessa mudança a educação ocupa um papel estratégico de combate ao racismo, sendo tomada, igualmente, como um direito de toda a humanidade ter uma educação que contemple a diferença, direcionada para o ensino da “unidade e diversidade humana” (UNESCO, 1978).

O Estado, conforme seus princípios e procedimentos constitucionais, assim como todas as autoridades competentes e todo o corpo docente, têm a responsabilidade de fazer com que os recursos educacionais de todos os países sejam utilizados para combater o racismo, em particular fazendo com que os programas e os livros incluam noções científicas e éticas sobre a unidade e a diversidade humana e estejam isentos de distinções odiosas sobre qualquer povo; assegurando assim, a formação pessoal docente afim; colocando a disposição os recursos do sistema escolar a disposição de todos os grupos de povos sem restrição ou discriminação alguma de caráter racial e tomando as medidas adequadas para remediar as restrições impostas a determinados grupos raciais ou étnicos no que diz respeito ao nível educacional e ao nível de vida e com o fim de evitar em particular que sejam transmitidas às crianças (Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais, 1978, Art. 5).

A UNESCO toma como princípio fundamental “eliminar a praga do racismo e pôr fim às suas manifestações odiosas em todos os sectores da vida social e política no marco nacional e internacional” (Conferência Geral da UNESCO, 1978). O documento é seguido da Carta das Nações Unidas (1945) onde raça consta como uma distinção que não pode ser considerada como impeditivo para os propósitos expressos na ONU.

A proposição conceitual em torno da noção de cultura na trajetória da UNESCO também se altera no período entre guerras, duas concepções se

 

alternam, pois há uma ideia universalista de cultura como expressão da totalidade, e outra comunitarista, na qual as culturas são distintas (MAUREL, 2005). Para Maurel as definições comunitarista e universalista de cultura são redimensionadas na projeção da UNESCO da existência de fronteira cultural, entre o Oriente e o Ocidente. Com isso, a UNESCO pretende equacionar tal distinção21, propondo que as culturas por serem distintas deveriam manter-se afastadas, de modo a salvaguardar sua distinção particular, em razão de que os conflitos de ordem cultural se dariam na esfera do desconhecimento entre as culturas. Aqui a noção de “diálogo de culturas” na qual os propósitos de assegurar a “unidade na diversidade” e “construir uma consciência de unidade da espécie humana em sua diversidade” institui o investimento central da Organização. A ampliação da noção moderna de cidadania é retomada para a noção de reconhecimento da especificidade cultural dos grupos: o sujeito de direitos é inventado por um contexto e um conjunto de elementos normativos que passam a garantir a diferença individual como um direito. A preocupação da UNESCO em empreender uma “cultura mundial única” permanece nestas interpretações, de modo que as fronteiras entre as culturas seriam um entrave para o desenvolvimento humano e para a paz, neste sentido a investidura em pesquisas se torna o pilar de ação da organização (MAUREL, 2007).

De acordo com Stoczkowicz (1999), o investimento em pesquisas que desacreditassem a existência das raças se tornou o pilar de sustentação da construção da semântica do “Homem Universal” da UNESCO. O autor vai identificar que o conjunto de estudos antes consagrados a estudar as distinções raciais, substancialmente, tornar-se-ia obsoleto, tendendo a se transformar em exames sobre as similitudes entre os homens, aquilo que os caracterizaria como membros do universal. Em sentido próprio, fazia-se crer que o estudo sobre raças era um equívoco epistemológico, visto que elas não existiam, mas os esforços se concentravam nos estudos sobre as ações dos homens naquilo que os iguala e não os diferencia. Percebe-se claramente o esforço em dissipar aquilo que fundamentou as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, sobretudo as diversas justificativas das diferenças humanas. Identificar diferenças tornou-se um erro, o

       

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“Projet majeur pour l’appréciation mutuelle des valeur culturells entre l’Orient et l’Occident”1957-1966 (MAUREL, 2005).

 

que se consagraria como algo de fato relevante eram os encontros que permitissem “alargar ao máximo as fronteiras da humanidade” (STOCZKOWICZ, 1999, p. 44).

Todos os esforços no campo do conhecimento caminham em paralelo com as ações da UNESCO na tentativa de incluir os que habitaram historicamente à margem da concepção de humanidade. A produção do “Homem Universal” da UNESCO foi uma sistemática tentativa de alargar a concepção universal de humano. Piovesan (2000) afirma que a Declaração Universal dos Direitos Humanos significou a reconstrução dos direitos rompidos com os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Tal instituição permitiu, ainda, além do reconhecimento dos sujeitos em sua especificidade (crianças, negros, mulheres), a internacionalização de uma concepção de direitos humanos.

O valor ético e político (em vários sentidos, também jurídico) da Declaração Universal dos Direitos Humanos viria a adquirir importância progressiva na política internacional, influenciando o conteúdo de convenções, tratados, protocolos e declarações nos mais diferentes domínios da diplomacia multilateral (SILVA, 2008, p. 33).

O discurso dos direitos humanos torna-se o epicentro político das ações da UNESCO na medida em que possibilita que aqueles retirados da noção de humano pudessem ser reconhecidos como tais sem abolir as diferenças que os constituem. Esse discurso se consolida na contemporaneidade de forma inconteste. Ao priorizar o indivíduo, no entanto, muitas vezes há um desconhecimento dos meios pelos quais a noção de humanidade é uma construção histórica e social que para se afirmar excluiu alguns povos. A UNESCO busca materializar o universal pela ideia de pertencimento à humanidade. Há um investimento maciço nessa ideia, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi promovida por meio de exposições, conferências, textos informativos, filmes entre outras medidas de popularização dos princípios expressos no documento.

Salientada sobre o campo da proteção aos direitos humanos, a UNESCO se formaliza em concordância entre as nações que, se governadas sob a égide de uma mesma matriz idealizadora, extinguiriam seus conflitos, entre eles, especialmente,

 

os de origem racial. Tal proposição congregar-se-ia em uma “cultura mundial única” um meio de organização do pensamento e da ação direcionada para a harmonia e a paz (MAUREL, 2005). Neste sentido é que a política colocada em prática pela UNESCO no âmbito do antirracismo ocorreu inicialmente por meio da negação do racismo como uma ideia falsa por meio da afirmação dos direitos humanos.

Brah (2010) constata que

Hoy está ampliamente aceptado que la invención del «hombre europeo» como sujeto universal del pensamiento social y político occidental fue realizada definiéndolo frente a una plétora de «Otros» —mujeres, gays y lesbianas, «indígenas», «gente de color», «clases populares» y demás. (BRAH, 2010, p. 247).

As concepções internas a ONU e a UNESCO mostram a proposta de reconstruir um mundo pautado nos direitos humanos. Essa reconstrução esteve envolta em princípios que deveriam ser garantidos por meio da adoção de políticas nos Estados nacionais. No cerne das problemáticas levantadas, ascende a questão racial antes pautada como elemento de definição da humanidade. O presente capítulo buscou delinear o modo pelo qual, em torno desses esforços, a UNESCO passou a centralizar suas ações, se constituindo como um espaço regulador e difusor da questão racial. As propostas de regulação se constituem no procedimento em que a UNESCO toma para si a condução do debate inicialmente produzindo a concepção de “Homem Universal” potencializada pela publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mesmo atuando de forma inexorável para a consolidação da concepção universal e diversa de humano ela passa a ser pressionada pelas críticas crescentes elaboradas por países africanos e asiáticos que ingressavam na ONU e pelos efeiros do Movimento pelos Direitos Civis dos negros norte-americanos. Tais críticas direcionaram as ações da UNESCO para o pensamento sobre a questão racial, conduzindo-as a proposições que assumiram uma proporção mundial na qual as temáticas de combate ao racismo e as diversas formas de discriminação racial se tornaram centrais na agenda da UNESCO. São precisamente essas proposições e os argumentos que delas derivaram o objeto de discussão do próximo capítulo.

 

Capítulo 2

Proposições em torno de uma questão racial

Um dos principais instrumentos no combate ao racismo adotado pela UNESCO referiu-se à produção de pesquisas cujo objetivo específico enfatizava a definição dos conceitos e termos relativos às relações étnicas e raciais. As campanhas com foco na educação se tornaram prioridade e abriram caminho para que se construísse um campo de saberes sobre a questão racial. Estes saberes foram direcionados para questionamentos sobre o modo pelo qual o racismo se manifesta, com objetivo de romper com a ideia de que as capacidades intelectuais fossem hereditárias, mas adquiridas culturalmente. É em torno deste contexto que o modo como o tema ascende junto à UNESCO e o direcionamento para o debate sobre a linguagem a ser adotada convertem-se em resolução para a questão racial.

Eric Fassin e Didier Fassin (2009) adotam o termo questão racial para se referir a conflitos atravessados especificamente por uma dimensão racial. Esses conflitos são analisados a partir da concepção de que sociedades estruturadas por processos de racialização adquirem uma determinada regulação informada pela dimensão racial. Sociedades racializadas são aquelas que apresentam a dimensão racial não como um dado circunstancial, mas que a exibe inscrita em sua própria formação de modo tal que se alia a um conjunto de categorias mobilizadas para identificação e hierarquização entre grupos sociais. O alcance da racialização situa-se de modo tão inexorável em nossas vivências e experiências cotidianas que perceber sua presença requer um exame atento e constante. Sua abrangência atravessa as representações atuando junto a formas de pensamento que orientam práticas e representações contemporâneas.

A ideia de que todas as pessoas são pertencentes ao gênero humano, ou seja, compõem a humanidade é como vimos o discurso mais inflamado da UNESCO. Promover a ascensão e consolidação da noção de humanidade seria o mesmo que afirmar a igualdade de todas as pessoas, não existindo, portanto, qualquer diferença que poderia impedir o pertencimento de todas as pessoas à

 

categoria universal de humanidade: “Todos os seres humanos pertencem à mesma espécie e têm a mesma origem. Nascem iguais em dignidade e direitos e todos formam parte integrante da humanidade” (Declaração sobre Raça e os Preconceitos Raciais, 1978, Artigo 1º).

A noção do pertencimento de todos os homens que constituiria a igualdade entre eles é o pilar de sustentação dos documentos da UNESCO para a resolução da questão racial. Logo, não existindo raça não haveria de igual maneira a diferença racial, de modo que o racismo não teria justificativa científica ficando somente no campo da ideologia e, como tal, passível de ser extirpado pela educação. Como resultado da Conferência Geral de 1949, a UNESCO empreende uma ação científica para oferecer uma recapitulação de “dados científicos concernentes às questões de raça”22. Nesta Conferência é aprovado um conjunto de medidas com objetivo de estabelecer uma rede propagandística e a elaboração de uma campanha educacional para difundir os dados das pesquisas. Para construir essa campanha torna-se consenso que os termos que fariam parte do empreendimento deveriam ser definidos.

A equação proposta pela UNESCO de que ao abolir o termo raça e tudo o que a ela se referisse aboliria, assim, o racismo e suas variantes, não atingiu os objetivos iniciais. Mesmo sua concepção biológica “não existente” sendo fortemente propagada, diferentes formas de racismo não apenas persistiam, como se transformavam, do mesmo modo que os discursos acerca da raça também se modificavam. A ideia de raça consolidada no imaginário social e utilizada como categoria de explicação apresenta na formação moderna, atrelada ao contexto colonial, um caráter normativo. Esta definição iniciada nos debates propostos pela UNESCO está envolta na disputa do século XVIII e XIX onde foram forjados os discursos que acionam a categorização de raça atrelada à biologia e posteriormente, à cultura, ou seja, a relação imbricada de elementos diversos na concepção moderna de raça. Procura-se, neste capítulo, delinear uma síntese das ideias originadas das disputas teóricas sobre o cânone e que sustentaram as proposições da UNESCO, convertendo-se em diversas declarações científicas

       

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sobre o tema. O enfoque recai nos modos como os questionamentos teóricos em torno das diferenças humanas foram transpostos no discurso institucional da UNESCO. As diferenças entre os temas nos informam sobre os termos em que o debate é empregado no interior dos campos científicos que se ocuparam do tema.

2.1 As ações da UNESCO diante da influência de uma concepção moderna de