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A produção de um debate: a descrição dos “especialistas”

Em 1949, em sua Conferência Geral realizada em Paris, a UNESCO orienta que o “Diretor-Geral é encarregado: de pesquisar e reunir os dados

 

científicos concernentes às questões raciais [...] difundir amplamente os dados científicos assim reunidos [...] preparar uma campanha de educação baseada nestes dados” (UNESCO, Conferência Geral, 1949). Esses dados deveriam ser construídos e discutidos por meio de encontros e pesquisas com a finalidade de mapear e identificar as motivações que geram os conflitos relacionados às questões raciais. O brasileiro Arthur Ramos, impulsionado por Julian Sorell Huxley (então Diretor-Geral da UNESCO), convida estudiosos para a constituição de um comitê específico composto por “especialistas” sobre os “problemas da raça”48 com objetivo de definir “o estatuto científico” do conceito. Entre os especialistas convocados, destaca-se a participação de Claude Lévi-Strauss um dos poucos estudiosos do campo das ciências sociais chamado, por mais de uma vez pela UNESCO, a apresentar seus conhecimentos sobre o tema. Após o falecimento de Arthur Ramos, uma segunda reunião é realizada com o título “Encontro sobre os Problemas Raciais” (MAIO, 2010).

Em 1950, é criada a “Divisão para o estudo das questões de raça” 49 no interior do Departamento de Ciências Sociais. Segundo Maurel (2010) muitos estudiosos, especialmente sociólogos, se mostraram reticentes em participar do departamento, sobretudo por interpretarem que havia uma imprecisão com referência ao debate sobre a temática racial e em relação à função do setor. Neste mesmo ano no informativo50 sobre seu programa de ações a serem realizadas a UNESCO afirma o objetivo de resolver o “problema da raça” definida no texto como uma questão de ordem “biológico, social e moral” (UNESCO, 1950, p. 3). Aponta ainda sua função de tomar posição diante do racismo, um dos “males sociais que a nova instituição deve combater” (UNESCO, 1950, p. 1). Na publicação o racismo é definido como uma expressão “mesquinha e virulenta” baseada em um modelo de organização social pautado no conceito de casta. Desta forma, o racismo torna-se um desafio ao método científico por se tratar de uma ideologia e não ser fundado por fatos científicos.

       

48

Comité d’experts sur les problèmes de la race, UNESCO, 1949. 49

Division pour l’étude des questions de la race MAIO, 2010. 50

 

Essas reuniões resultaram em diversos documentos publicados paulatinamente. Em 1969 é lançado um informativo que contém as quatro declarações científicas sobre a questão racial no interior da coleção “Por e para os jovens” no quadro do Programa de informação científica sobre a raça e a luta contra o preconceito racial (UNESCO, 1969). Nesta edição consta a Declaração sobre a raça de 1950; a Declaração sobre a raça e as diferenças raciais de 1951; Proposições sobre os aspectos biológicos da questão racial de 1964 e, por fim, a Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais de 1967. Publicadas conjuntamente, apresentam-nos o percurso das mudanças que ocorrem no interior da instituição sobre o tema. Tais mudanças igualmente nos informam sobre o debate empregado no interior dos campos científicos que se ocuparam sobre o tema.

Figura 2 - Capa do informativo Quatre déclarations sur la question raciale. © UNESCO/1978.

 

Ao ler as duas primeiras Declarações é possível perceber a supremacia de duas áreas de conhecimento que vão conceituar raça: a biologia e a sociologia; posteriormente, incorporam-se às análises geneticistas filósofos e antropólogos cuja inflência adquire espaço ao propor que a teorização passasse a ser feita sobre o conceito de etnia. Constitui-se então, uma disputa teórica e científica entre as interpretações desses campos em prol da conceituação do termo raça e etnia. Ao mobilizar os saberes da ciência, a UNESCO constituiu um campo heurístico em torno da questão racial, potencializando a ascensão de termos como cultura, raça, etnia entre outros.Assim, a UNESCO vai investir na noção de que a existência de raças cria o preconceito racial e a própria ideia de raça. O biólogo inglês Julian Huxley51, o primeiro Diretor-Geral da UNESCO (1946-1948), se mostrava preocupado com as questões raciais e acaba por propor a substituição do termo raça por grupo étnico.

Ao publicar as declarações científicas, a UNESCO completa naquele momento um ciclo de publicações neste formato sobre a temática, iniciada nos anos 1950. O material é acrescido de dois textos acerca do conteúdo das declarações: um de Jean Hiernaux52 na perspectiva biológica e outro do sociólogo inglês Michael Banton53 na perspectiva sociológica do tema. Estes textos são indicados como o resultado de estudos dos autores, cujas expressões não se referem necessariamente à UNESCO. Os textos de Hiernaux e Banton apontam o debate que se estabelecia entre os campos da biologia e da sociologia para pensar a categoria raça.

A retomada de escrita de documentos dessa natureza ocorreria após uma década com a publicação da Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais, aprovada pela 20ª Conferência Geral de 197854. Este texto consagra-se como

       

51

Que embora tenha escrito em 1924: “L’esprit du nègre est aussi différent de l’esprit du Blanc que le corps du nègre est différent du corps du Blanc”, quando se torna Diretor-Geral da UNESCO em 1946 coloca-se como um dos mais dedicados na questão da luta contra o racismo (STOCZKOWSKI, 2007).

52

HIERNAUX, J. Les aspects biologiques de la question raciale. In: UNESCO, Quatre declarations sur la question raciale, 1969, pp. 9-16.

53

BANTON, M. Aspects sociaux de la question raciale. In: UNESCO, Quatre declarations sur la question raciale, 1969, pp. 17-29.

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A última declaração neste formato e sem textos teóricos complementares. Cf. Figura 3.1, neste capítulo.

 

referência final da compilação dos argumentos descritos e intensamente debatidos nos documentos anteriores. Em 1979, é disponibilizada em formato brochura uma publicação com a mesma denominação na qual esta declaração de 1978 é apresentada como texto “adotado por aclamação”, em seguida, “a fim de mostrar a continuidade das iniciativas da tomadas pela UNESCO neste campo” o livreto apresenta em anexo as demais declarações desde 1950 a 1967 (UNESCO, 1979). A proposta com esta última publicação é a de tentar, de alguma maneira, concluir o longo debate a respeito da definição das categorias mais adequadas a serem utilizadas nas discussões sobre a questão racial.

A opção em iniciar a análise por essa coletânea permite pensá-la a partir dos debates em voga no momento de sua publicação que nos auxiliam a verificar o percurso feito pela UNESCO até esta publicação. O pouco tempo entre as publicações dos textos demonstra a preocupação da UNESCO com o “problema racial”. Além dos debates suscitados por estes textos, a análise dá ênfase ao conteúdo de outros materiais publicados nos interstícios de tempo entre eles.

3.2 Raça como um mito social (1950)  

A Declaração sobre raça de 195055 consistiu em um dos desdobramentos da agenda antirracista inicialmente deliberada pela UNESCO. Construída sobre as argumentações do tema à época, o texto foi difundido como propaganda de uma postura positiva acerca de uma tese monogênica, segundo a qual a humanidade possui uma origem única, em oposição à tese contrária, poligênica56. Em quinze pontos o texto assevera a origem comum de todos os homens, na qual o Homo sapiens é uma espécie composta por agrupamentos que se diferenciam por possuírem um conjunto genético particular.

       

55

Publicada anteriormente como Déclaration d’experts sur les questions de race. Signatários da Declaração sobre a raça: Ernest Beaglehole (Nova Zelândia); Juan Comas (México); Costa Pinto (Brasil); Franklin Frazer (Estados Unidos); Morris Ginsberg (Reino Unido); Humayun Kabir (Índia); Claude Lévi-Strauss (França); Ashley Montagu (Estados Unidos).

56

A tese poligênica teria servido de argumento a ideologia propagada pelo nazismo, por postular a existência de linhagens distintas de raças humanas.