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A UNESCO e a constituição de uma agenda em torno da questão racial

acerca das diferenças humanas e o modo como orientam as ações da UNESCO, vincula-se a proposta metodológica de articular temporalidades, espaços, e campos disciplinares e examiná-los de forma articulada como nos auxilia a diáspora como categoria analítica. Tal proposta possibilita estabelecer conceitualmente uma ótica intertextual sobre os textos, representações, imagens que atuam de modo conjunto em nossa vida social contemporânea.

Ao optar em manter a noção de unidade do homem, havia uma expectativa, sobretudo entre as leituras dadas pela perspectiva liberal, de que a ênfase colocada na humanidade seria uma forma de proteger também as minorias culturais. Essa percepção foi dirigida à proposição de que a proteção aos direitos individuais ipso facto resguardaria o grupo ou a comunidade. A partir do investimento de áreas de conhecimento distintas, como a etnologia que irá atribuir um caráter descritivo às diferenças entre os grupos e estas diferenças serão caracterizadas como culturais, a UNESCO vai investir na conceituação de etnia em substituição à raça. Esse investimento vai contribuir para um debate sobre a

 

oposição entre raça e etnia, e a indicação sobre o modo como as diferenças devem ser pensadas em termos culturais e não raciais.

A ação da UNESCO vai influenciar também a adoção de outros métodos empíricos para identificação das diferenças e como elas se modificam. Nas ciências, a utilização de testes investidos nos corpos passa a dar lugar para análises teóricas sobre as relações e comportamentos sociais na qual a etnografia é o método mais utilizado. Esse direcionamento encapsulado pela UNESCO, instituição que traz em si os paradigmas da racionalidade moderna, aponta a mudança de orientação do Estado-nação antes visto como uma unidade homogênea, política e culturalmente, passa a ser questionado como um espaço heterogêneo. O expediente utilizado pela UNESCO é reconhecer tal heterogeneidade cultural sem, no entanto, abdicar de suas premissas centrais trazendo implicações para suas diretrizes normativas.

Com esse objetivo em pauta, a UNESCO regulou a produção de um conjunto de saberes diversos sobre a raça e o racismo. Aqui nosso foco é a compreensão dos diferentes sentidos descritivos que a UNESCO emprega ao debate racial, inicialmente pelas diferentes noções de raça, a partir dos debates empregados e de que modo essas descrições aparecem na sucessão dos documentos e das publicações encomendadas, instituindo um caráter normativo da questão racial. Refere-se a uma tentativa de ver “por dentro” o que exprime em sua exterioridade, que são os materiais publicados sobre sua orientação.

As sucessões de termos que aparecem nos documentos e nas publicações encomendadas pela Organização mostram um itinerário acerca da construção do termo raça, que caminha com o processo histórico de constituição da noção moderna de raça e do racismo, pautado pelos tropos acerca da ideia de raça vistos acima. Isso nos levou ao encontro dos discursos sobre a noção de raça que aparecem nos documentos e as maneiras pelas quais a categoria raça foi sendo construída.

Já foi dito que a presença de alguns pressupostos culmina em algumas dissonâncias entre os documentos desenvolvidos pela UNESCO. Essas

 

dissonâncias desencadearam uma sucessão de documentos com diferentes interpretações acerca da noção de raça a ser empregada. Estas diferentes interpretações apontam por um lado, a disputa interna na instituição e, por outro, a disputa externa onde se identificam diferenças de compreensão e interpretação sobre a questão racial. É a partir deste escopo teórico que nos voltamos para os textos produzidos pela UNESCO. O esforço de síntese objetiva pensar a dimensão história do termo raça e do racismo pelo interior dos debates teóricos que a UNESCO imprime, este é o objeto do próximo capítulo.

 

Capítulo 3

A UNESCO pesquisa a raça

Em primeiro lugar, entende-se que a UNESCO é uma instituição global de referência e autoridade em seus campos de competência. Isso significa que ao mesmo tempo em que promove o debate necessário para que as inovações intelectuais ganhem espaço no mundo, deve garantir que o conhecimento produzido e acumulado sejam preservados como legados para toda a humanidade. A credibilidade, ética, estratégica e normativa é, portanto, um dos pilares de sua atuação no mundo (UNESCO, 2001, p. 24)42.

Os estudos encomendados pela UNESCO direcionados a objetos de referência específicos, ao apresentarem uma heterogeneidade de abordagens que ampliaram as conceituações sobre raça e racismo, contribuíram para o alargamento do debate sobre a questão racial. Como já apontado, a preocupação inicial da UNESCO era orientar a constituição de um conjunto de medidas políticas no interior das nações e entre elas para que as relações sociais fossem retiradas de uma esfera racializada. Afastar-se de tal concepção racializada implicava abandonar a ideia de que as relações sociais de pessoas de pertencimentos étnicos e raciais distintos fossem interpretadas como relações raciais. Essa percepção estava pressuposta na concepção de que estas relações organizavam-se de forma hierarquizada. Isto acabou se tornando o argumento central para a efetivação de medidas normativas que articularam ciência e política.

A UNESCO dirigiu suas ações para fundar uma proposta em torno da unidade da humanidade em uma perspectiva “universal”, ou seja, em que os pertencimentos étnicos, raciais e culturais não estabelecessem uma distinção, mas fossem interpretados como patrimônio pertencente ao “universal”, como derives de algo único e comum. A partir dessa perspectiva, verifica-se um investimento na produção de um debate, no âmbito das ciências, com estudiosos de várias áreas e localidades geográficas sobre a questão racial. Tal empreendimento caracterizou

       

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um debate internacional sobre a matéria que consistiu na produção de materiais informativos e documentos específicos sobre o tema.

Klineberg (1973) afirma que as duas medidas de ação mais eficazes a serem tomadas pela UNESCO seriam as “declarações científicas” e as monografias temáticas de caráter educativo sobre os temas de interesse. Ao atuarem em conjunto essas ações tornaram-se aparelhos fundamentais da “ofensiva educativa” sobre o tema no contexto do empreendimento antirracista da UNESCO (KLINEBERG, 1973 apud STOCZKOWICZ, 2007). Neste capítulo, o foco é direcionado a distintos documentos e materiais com objetivo de explorar e identificar os termos em que se estabeleceu o debate teórico empreendido pela UNESCO sobre a questão racial. Isto é realizado com enfoque na mudança na interpretação dos conceitos utilizados nos documentos da UNESCO.

Durante os anos de 1950 a 1978, a UNESCO reuniu profissionais de variadas áreas de conhecimento das ciências humanas e biológicas orientados a produzir pesquisas sobre o caráter científico da categoria raça43. Tais pesquisas pautaram a elaboração de um conjunto de documentos sobre a temática racial. Para cada documento elaborado sobressaem termos de determinada área de conhecimento: biologia, sociologia, psicologia, entre outras, nas quais seus respectivos estudiosos fizeram formulações acerca do conteúdo científico do conceito de raça. A proposição de uma compilação de estudos dessa natureza resulta do Programa de Informações Científicas da UNESCO sobre a Raça e para o Combate ao Preconceito Racial (UNESCO, 1969).

É possível identificar que esta construção gerida pela UNESCO, produziu uma dimensão de saberes e noções a respeito da existência de uma questão racial cujo resultado seria um tipo de racismo movido por uma “crença” falseada. A alusão ao termo crença reforça a tese segundo a qual se assenta os debates realizados sob a rubrica da UNESCO de que a plataforma de luta contra o racismo deveria ser o investimento na consciência, na alma do sujeito com o objetivo de atingir sua moralidade. Havia um pressuposto de que a evidência da inexistência

       

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das raças levaria à conclusão de que o preconceito racial é subjetivo, uma vez que se concluía que o modo de operação da ideia de raça ocorreu em esferas de saber díspares, porém interdependentes, como a biologia, a cultura e a política. Cada uma dessas esferas adquiriu uma determinada emergência em tempos históricos específicos. Os documentos da UNESCO refletem essas esferas. A noção de diferença racial, tal como podemos visualizar hoje, traz elementos específicos constituídos no interior de cada um destes princípios, junto aos quais, por vezes, incidem no social em conjunto ou de maneira específica.

Esse processo de incentivo à pesquisa em âmbito transnacional conferiu um caráter global ao debate sobre a questão racial, ao passo que a dimensão política concreta efetivava-se por meio de análises comportamentais acerca das relações raciais e em medidas para coibir práticas racistas no interior dos espaços nacionais. No entanto, para não alimentar os possíveis conflitos políticos que poderiam ocorrer a partir das opiniões contrárias de alguns Estados-membros, a UNESCO opta por analisar as “situações positivas”, ou seja, os locais que não apresentavam distúrbios raciais considerados graves.

A maior parte das publicações como monografias temáticas, livros e informativos gerais destinados ao público amplo, estão disponíveis ou a venda nos serviços comerciais da UNESCO44. Alguns relatórios de conferências ou eventos de outra natureza estão disponíveis na página eletrônica da organização. Os periódicos compostos por revistas temáticas pertencem à coleção da Biblioteca da UNESCO, algumas edições podem ser repertoriadas via o suporte eletrônico. Outras publicações específicas são distribuídas gratuitamente com objetivo de informar e promover as opiniões e objetivos da organização45. Há determinadas diferenciações entre estas obras:

a. Publicações nominalmente creditadas à UNESCO.

       

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Podem ser encontrados na base de dados unesdoc:

http://www.unesco.org/new/fr/unesco/resources/publications/unesdoc-database/

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Algumas dessas publicações estão disponíveis para consulta física na Biblioteca da UNESCO em Paris e para consulta via web: http://www.unesco.org/library/fre/.

 

b. Obras elaboradas a pedido da UNESCO financiadas de maneira integral ou parcial pela instituição.

c. Obras publicadas por outras instituições como ONGs que foram beneficiadas ou subvencionadas pela UNESCO.

d. Obras específicas publicadas pelas comissões locais nos países membros a pedido do Secretariado da UNESCO.

Compreender a mudança na interpretação dos conceitos utilizados nos materiais elaborados sob a chancela da UNESCO pode nos informar de modo indicativo a constituição de um campo analítico acerca da ideia de raça e de racismo. De fato, tal como poderá ser visto, identificar as maneiras pelas quais emergem os conflitos de origem racial revela muito sobre a processualidade das relações sociais como um todo. Verificar esses conflitos pelo conjunto de termos e utilizações que são mobilizados permite compreender como são retomados de formas diversas termos e expressões precedentes de debates raciais de outros contextos. Dito de outra forma, a cada vez que vimos surgir, nos mais diferentes lugares, uma menção ou um conflito que alude a qualquer significante racial são invocados valores, percepções e sentidos estabelecidos entre diversas temporalidades. Esse funcionamento não ocorre de modo isolado, compreendê-lo nos permite avançar no exame do modo contemporâneo em que atua sobre o social.

Já mencionamos que as indicações e termos que aparecem nos documentos da UNESCO apresentam os debates em torno da noção moderna de raça e de racismo. A discussão sobre qual seria a melhor forma de combater o racismo ocasionou um investimento na linguagem, ou seja, implicou em pensar sobre qual terminologia seria mais adequada para se referir e compreender como o racismo evidencia-se no social. Isso incidiu naquilo que estamos denominando como política antirracista da UNESCO. Desta forma, a ação no sentido de repudiar o termo raça provocou um debate teórico sobre seu conteúdo semântico no qual se percebe as formas pelas quais o termo foi construído no interior de diferentes temporalidades que deram diferentes formas de interpretação às diferenças raciais.

 

A equação não há raças, por conseguinte não deve haver racismo é forjada pelos intelectuais de “notório saber” sobre a questão. Isso pode ser verificado na introdução das declarações científicas sobre o tema de 1950 e 1951 que se iniciam com os “estudiosos acordam”, e no texto de 1964 “os estudiosos reconhecem”. É, portanto, nos estudos sob a tutela da UNESCO e nas suas indicações normativas que é possível verificar um percurso histórico em torno da construção da categorização racial no qual a contenda entre antropólogos, sociólogos e biólogos apresenta não apenas divergências teóricas, mas de igual maneira, indicações sobre as diferentes conceituações acerca do tema.

Os temas que aparecem na publicação dos documentos trazem a construção histórica do racismo, das ideias sobre a classificação das diferenças humanas cujos exemplos se conhecem por meio do racismo anti-negro e antissemita. No século XVIII, as justificativas que apontavam o meio-ambiente como fator de “desenvolvimento racial” e no século XIX, do “racismo científico” fundado sobre caracteres biológicos, surgem de modo alusivo nos documentos analisados. Ao nos voltarmos para os documentos e demais materiais, identificamos um caráter relacional, permeado por uma lógica racial, o qual se dirige ao contemporâneo. Seguindo a analítica proposta nesta pesquisa, optamos por não seguir uma cronologia em relação aos textos, ao invés disso, dirigimo-nos aos contextos dos discursos de construção racial que compõem a conjuntura a partir da qual os termos que aparecem nos documentos da UNESCO são articulados.

No momento em que uma agência das Nações Unidas elege um objeto a ser investigado, o órgão realiza determinadas etapas anteriores à formalização de um documento acerca da matéria. Para sua efetivação, primeiramente é realizado um estudo preliminar sobre o tema, o qual deve ser tratado no que concerne às suas dimensões técnicas e jurídicas. Em seguida, cria-se uma “proposta de regulamento internacional da questão” para posteriormente decidir se o documento será uma Convenção, Recomendação ou Declaração. Após essa etapa são convocados para análise os “especialistas” de cada Estado-membro para

 

realizarem um debate pormenorizado sobre os temas levantados para avaliação e posterior ratificação e aceitação dos Estados.

O termo documento46 na estrutura da UNESCO tem um propósito operacional, atuando de modo a descrever o objeto de referência ao qual se destina e para direcionar de maneira organizativa as ações políticas em relação a este objeto. Deste modo, é designado para elucidar as fases de um trabalho, descrição de reunião ou deliberação corporativa. Os documentos possuem especificidades de acordo com a configuração jurídica e política do objeto que descreve. A Convenção de Viena realizada em 1969 define as caracterizações e diferenciações entre Declarações, Convenções e Recomendações47:

 Convenções: definem um regulamento da questão a ser tratada, estão sujeitas a ratificação ou aceitação pelos Estados e definem as regras que os mesmos se comprometerão a adotar, incorporando-as ao seu direito interno. As Convenções têm eficácia de Lei para os Estados-Parte (Convenção de Viena, 1969).

 Declarações: apresentam a dimensão dos temas de grande importância para o Sistema das Nações Unidas, “é um instrumento formal e solene, que se justifica em raras ocasiões, quando se define os princípios de grande importância e valor duradouro, como no caso da Carta de Direitos do Homem” (Convenção de Viena, 1969).

 Recomendações: tem caráter menos formal que as Declarações, formulam os “princípios e normas” a serem adotados para a regulamentação nacional no interior das nações. Referem-se à indicação aos Estados-Parte para a elaboração de legislações, preceitos e regras de ação específicas sobre a temática. As

       

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Acordos Internacionais incluem-se convenções, pactos, cartas entre outros acordos que são denominados de Tratados celebrados entre Sujeitos do Direito Internacional sendo, portanto regulados pelo Direito Internacional (ALLEMÃO, 2011, p. 2).

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Instrumentos normativos da UNESCO http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this- office/unesco-resources-in-brazil/legal-instruments/, acesso em 12 de maio de 2012. A Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados, elaborado em 1969 entra em vigor internacionalmente em 1980.

 

recomendações incitam os Estados a elaborar medidas legais, não estão sujeitas a ratificação, mas mesmo os Estados que não a aprovam assumem um pacto moral de “obrigações a cumprir” sobre a matéria (Convenção de Viena, 1969).

Após um levantamento preliminar sobre as Convenções, Recomendações e Declarações exclusivas ao tema da questão racial, procedeu-se à leitura dos textos de modo a identificar na escrita a lógica interna dada em cada documento. Em acordo com o desenho que orienta esta tese, os estudos encomendados pela UNESCO, ao mesmo tempo em que acompanham o curso do debate, interferem nas mudanças conceituais e teóricas sobre o tema. Primeiramente, os discursos estão centrados entre os biólogos, os sociólogos e os antropólogos que serão autorizados a teorizar sobre o que é raça e de que maneira o termo deve ser utilizado. Portanto, esses discursos cujos resultados serão cientificamente validados irão construir uma analítica biológica e social-antropológica a respeito da categoria raça. Posteriormente incluem-se teóricos de outras áreas como a psicologia e os estudos da genética, é importante ressaltar que embora essas disciplinas possuam objetos e métodos específicos, e por vezes apresentem distinções internas sobre o modo de referência a temática, a intencionalidade colocada a questão as colocam como atuantes centrais da política da UNESCO.

As mobilizações entre as disciplinas e a ação da UNESCO revelam um modo articulado de contenção do debate cujo trajeto inicial permitirá a posterior construção da noção de raça veiculada ao termo cultura. Este efeito será centralizado na proposta de expurgar a nomenclatura raça substituindo-a por uma categorização sobre a categoria etnia como empreendimento central na busca por produzir um antirracismo a partir da linguagem.