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Considerando o contexto histórico com o qual esta pesquisa é inspirada, é possível evidenciar nas edições da revista O Correio da UNESCO as preocupações face ao processo de reorganização das relações entre as nações, os acontecimentos vinculados ao contexto da Segunda Guerra Mundial e o modo

       

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A educação de base e a luta contra o analfabetismo, a divulgação da informação, incentivo de estudos na área de ciências sociais para cooperação internacional (O Correio da UNESCO, 1948, Ano I, Nº 1, 8p.).

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Palavras selecionadas e o número de ocorrências em parênteses: racismo (110); discriminação racial (109); raça (191); racismo e educação (4); discriminação racial e educação (6); estereotipo racial (9); preconceito racial (32); educação e raça (10); cultura e racismo (13). Fonte:

 

como esses temas são atrelados à preocupação com uma problemática racial em curso. As novas relações globais, guiadas pelos princípios ocidentais dos ideais de democracia e paz, são constantemente atualizadas nas páginas do periódico. Os artigos publicados complementam ou endossam as ações da agência sobre o tema central de determinada edição. Sobre a questão racial, durante os primeiros anos de publicação, os textos correspondem à elaboração dos documentos oficiais da UNESCO, intencionando divulgá-los e girando em torno do debate epistemológico sobre a constituição e validade da raça como categoria científica. Esse debate epistemológico, centralizado como já apontado, em torno da definição do caráter ontológico da utilização da categoria raça, possibilitou a abertura de estudos para a compreensão sobre qual noção de raça deveria ser mais adequada para ser utilizada no campo científico.

O antropólogo e etnólogo brasileiro Arthur Ramos escreve em um artigo sobre a questão racial e o “mundo democrático” 103 publicado em 1949, no qual afirma que a “técnica do racismo”, causadora das guerras, gerou um desequilíbrio entre as nações, sendo o racismo uma consequência direta da “europeização e do imperialismo”. Ainda de acordo com Ramos, a antropologia constituiria a ciência ideal para compreender o desequilíbrio que advém dessas teorias, pois a disciplina ao ser reformulada com enfoque nas “relações humanas” possibilitaria uma inflexão no pensamento que caracterizava os agrupamentos humanos. A reinterpretação em relação ao desígnio da disciplina centrou-se na recusa de um de seus postulados principais: o de se afastar de uma perspectiva etnocêntrica, o que ocasionaria os conflitos entre os grupos. Dito de outra maneira, a antropologia se firmava como campo de saber que incorporava outras disciplinas anteriormente utilizadas para a compreensão das diversas culturas e cuja finalidade dirigia-se a fornecer alternativas para dirimir os conflitos em formações sociais com agrupamentos diversos, como por exemplo, a proposta em torno da aculturação.

Na perspectiva de Arthur Ramos, a aculturação é análoga ao termo sincretismo, no qual os diferentes elementos culturais se somam formando outros.

       

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RAMOS, A. “La question raciale et le monde démocratique”. In: O Correio da UNESCO, 1971, ano II, Nº10, p. 14. Uma versão deste texto foi anteriormente publicada no Bulletin international des sciences sociales, em 1949.

 

De modo que a antropologia, antes vista como uma disciplina voltada ao conhecimento dos “povos primitivos” passa a ser considerada uma ciência que versa sobre as relações humanas e, de modo específico, sobre a cultura produzida pelos agrupamentos humanos. Havia um investimento na ideia de que esta variação interpretativa em relação à função da disciplina poderia auxiliar na compreensão das desigualdades entre povos racialmente distintos. Arthur Ramos indica duas maneiras de pautar as relações entre grupos raciais e culturais diferentes que habitam o mesmo espaço social: a assimilação e a convivência harmoniosa (RAMOS, 1949).

A noção de aculturação configurou-se como os processos de “encontro de culturas” (CUCHE, 2002). Cuche argumenta que a cultura obteve uma função política ao ser empregada como conceito organizador, no qual a proposta consistiria em fomentar por meio da somatória das culturas determinada identidade nacional. A “assimilação” seria o modo pelo qual atuaria a articulação de “diversas culturas” na constituição de uma “cultura nacional”. Tal perspectiva não foi inicialmente pauta de inspiração da UNESCO, cuja postura se direcionou para a preservação das culturas. Paulatinamente houve uma inclinação política em direção à pluralização do termo que passa a ser deliberado na proposição de que as culturas compõem a diversidade humana, definição que encontraria eco na UNESCO.

Quanto à proposta de assimilação, que acabou por ser descrita como correlato a aculturação, inicialmente foi concebida a partir da ideia de que todos pudessem experienciar o mundo de uma mesma maneira, baseada na concepção de humanidade como uma característica comum a todos os seres humanos (MBEMBE, 2001, p. 179). Haveria, portanto, a possibilidade de que todos fossem levados a viver tal experiência desde que fosse permitido adquirir as condições para isso. Em uma edição publicada no final de 1949 há uma descrição das atividades a serem realizadas no ano seguinte na qual aparece a indicação de um “estudo sobre os problemas raciais” (O Correio da UNESCO, 1949, p. 14). Na descrição, os temas centrais são o racismo, o antirracismo descrito como a “defesa do humanismo nas relações entre os povos” e a “coordenação de atividades

 

antirracistas”, assentados em estudos sobre locais onde coabitam diferentes grupos raciais ou culturais (Op. cit. p. 15).

A respeito das questões epistemológicas publicadas nas edições da revista, o texto de Humayun Kabir104 publicado em janeiro de 1950 apresenta uma pequena introdução sobre a ontologia da categoria raça. O autor questiona a noção de que haveria uma “estabilidade dos tipos raciais”, perspectiva produzida pelos etnólogos, afirmando que todos os homens pertencem à mesma espécie. De modo que foram as “migrações, trocas comerciais e conquistas” que provocaram as diferenças entre os “tipos” humanos. Ao final, o autor aponta que a possibilidade de uso de raça como categoria descritiva que poderia ser aplicada aos homens, considerando os aspectos físicos, mas essas diferenças não sendo estáveis, não haveria fatores científicos que pudessem fundamentar as hierarquias entre os agrupamentos humanos.

A publicação dos documentos científicos, a Declaração sobre raça de 1950 e a Declaração sobre a raça e as diferenças raciais de 1951 impulsionam a revista a divulgar os princípios expostos nos documentos. Em uma publicação especial no mês de junho de 1950 é apresentada na capa uma dedicação aos cientistas que corroboram a posição da UNESCO contra o racismo105. A edição apresenta um editorial com os aspectos centrais que aparecem no documento, apresentando o termo “mito” para se referir à raça e ao racismo. Ambos os termos, raça e racismo, são descritos como “mitos”, “alegorias falseadas”, e como tais poderiam ser desfeitos. O antropólogo Alfred Métraux publica um artigo descritivo que apresenta os termos da declaração científica sobre raça de 1950. Em seguida, afirma que o preconceito é o efeito de um mito, o qual define como racismo que consiste em uma crença em que determinados indivíduos detêm defeitos e virtudes inatas e hereditárias106 (MÉTRAUX, 1950). Alfred Métraux, além de atuar como regente na escolha dos temas projetou sua própria influência, evidenciada pela autoria em várias publicações especiais sobre a questão racial.

       

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KABIR, H. Le mythe de la race. In: O Correio da UNESCO, Ano II Nº. 1, 1950.Kabir ocupava a época, o cargo de Secretário Adjunto do Ministério Indiano da Educação.

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Les savants du monde entier denoncent un mythe absurd ... le racisme. In: O Correio da UNESCO, Ano III, Nº 6, 1950, p.16.

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Isto se deu, sobretudo, quando ocupou o cargo de chefe do Setor de Estudos Raciais do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO. Seu desempenho como articulador entre os autores das pesquisas e dos relatórios conforme suas relações próximas gerou certo descrédito público em relação a essas publicações (MAUREL, 2005).

Métraux assim define que é a cultura e não a raça o elemento medular da civilização, de modo que o preconceito racial seria, entre outros, um “fenômeno cultural”. A cultura atuaria como código central de uma herança que permitiria aos homens atuar em sociedade e os distinguiria entre si (MÉTRAUX, 1950, p. 8). Como um elemento que pode modificar a condição do indivíduo, deve-se haver um estímulo à troca e ao desenvolvimento cultural. Métraux avança no texto caracterizando o racismo como um “mito novo”, desenvolvido junto ao movimento das potências europeias cujo êxito é explicitado pelo tráfico negreiro, consistindo em um fato moralmente nefasto, tanto para brancos como para negros. O texto é finalizado com a indicação de que o racismo e o preconceito são mitos baseados em “noções cientificamente falsas” em “dogmas irracionais” e que o papel da UNESCO é demonstrar os limites de tais doutrinas, sobretudo se utilizando de princípios e da divulgação de fatos científicos, assim como é função creditada à revista (Op. cit., p. 9). A edição é encerrada com a apresentação da declaração científica sobre a raça de 1950.

Uma das ações diretas da UNESCO encaminha-se no sentido de mapear o modo como se estabelecem sociabilidades em formações sociais nas quais convivem grupos racial e etnicamente distintos. Na descrição de atividades do programa da UNESCO, a ser realizado em 1951, destaca-se a indicação de um “estudo experimental das relações raciais” a ser concretizado em “algum país da América Latina”, a fim de identificar os “fatores” sobre o desenvolvimento “harmônico de suas relações” (O Correio da UNESCO, 1950). As linhas gerais da pesquisa são descritas no estudo dos problemas de países em processo de industrialização, locais com densidade populacional elevada e com intensos

 

movimentos populacionais107. Essa pesquisa convergiu na aposta da UNESCO, ao visualizar e escolher o Brasil como modelo positivo de relações raciais. Esses estudos promovem o país como exemplo de sociedades que concretizaram a aculturação de “negros e índios na cultura ocidental” (MAIO, 1998). Essa perspectiva apareceria nas demais edições do periódico.

4.2 Um exemplo de relações raciais: o caso do Projeto UNESCO

La confusion qui règne au sujet de la notion de race est telle qu’aucune campagne contre les préjugés qui en dérivent n’est concevable sans une définition du terme, susceptible de recevoir l’approbation des différents milieux scientifiques, et sans une mise au point de l’état actuel de la question raciale (UNESCO, 1950, p. 2).

Um informativo108 de 1950, contendo itens do programa de ação daquele ano, apresenta um texto seguido da descrição da Declaração sobre raça. O texto do informativo apresenta a pesquisa a ser realizada no Brasil, descrita como nação que a despeito de ter recebido grupos raciais diferentes, não sofreria perante o efeito de preconceitos raciais comparados a outras nações com semelhante composição populacional, no que tange a diferentes pertencimentos étnicos e raciais (UNESCO, 1950).

Le moment est venu de nous pencher sur les sociétés qui ont réussi, dans une large mesure, à résoudre ces antagonismes en faisant Ii des différences raciales. C’est dans cet esprit que la Conférence générale de l’unesco réunie à Florence a recommandé pour 1951 l’étude des relations raciales au Brésil. Cette grande république, dont la civilisation a reçu l’apport direct de plusieurs races différentes, souffre moins que d’autres de l’effet de préjugés qui, dans des pays de composition ethnique analogue, sont à l’origine de tant de mesures vexatoires et cruelles. Nous sommes encore mal renseignés sur        

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Além dessas descrições há a indicação da realização sobre as problemáticas específicas da juventude japonesa, bem como a orientação sociológica da pesquisa e a forma de divulgação dos resultados em guias e índex. O objetivo desses estudos ainda é o de explorar métodos diferenciados e oferecer a ONU um “apoio popular” a fim de fortalecer sua estrutura. UNESCO, O programa de 1950. In: O Correio da UNESCO, 1950, p. 5.

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