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Uma leitura sociológica e uma leitura biológica da questão racial

Os textos de Jean Hiernaux e de Michael Banton, sobre os aspectos biológicos e sociológicos da questão racial abrem o material “Quatre declarations sur la question raciale” de 1969 no qual constam as quatro declarações da UNESCO sobre a matéria e são apresentadas considerações gerais das declarações em conjunto.

Jean Hiernaux apresenta a perspectiva biológica assinalando como os pressupostos racialistas de inferioridade e superioridade vinculam-se a convicção em um tipo de hereditariedade racial. Essas ideias associadas a caracteres morais e físicos culminaram em representações estereotipadas sobre estes grupos. Hiernaux retoma as indicações estabelecidas nas declarações científicas de 1951 e de 1967, mais comprometidas, como vimos à perspectiva biológica sobre a matéria. Com este objetivo, assinala que a formação do ser humano do ponto de vista mental e psíquico é resultado das interações entre o meio e a hereditariedade. Segundo Hernaux a Declaração sobre raça e as diferenças raciais de 1951 teve por objetivo sustentar a indicação do uso metodológico da noção de raça como um conceito classificatório a partir de uma análise antropológica.

De acordo com o biólogo, na década de 1950 o emprego de uma terminologia racial referia-se a um conjunto populacional possuidor de uma frequência de determinados genes. Essa noção se consolida na década de 1960, ocasião em que a humanidade é compreendida como um agrupamento composto por um conjunto de populações que possuem uma determinada quantidade de

 

genes. Isto se torna uma das preocupações centrais da “biologia moderna”, ou seja, os modos pelos quais as pluralidades genéticas das populações são aferidas como diferenças raciais. Outro aspecto que se destaca da análise de Hiernaux é sobre o caráter da mestiçagem, segundo ele as declarações científicas auxiliaram na compreensão de que a mestiçagem não é em si algo trágico, pois cada população possui uma diversidade interna ao grupo. A prática da mestiçagem, ao contrário, deveria ser estimulada, uma vez que auxiliaria no esvaziamento do pensamento racista e de discriminações de cunho racial (HIERNAUX, 1969).

Hiernaux, entretanto, indaga sobre os limites da utilização de raça sugerindo, por conseguinte, o termo “população” para efeitos de categorização dos seres humanos. O autor adota a noção de população definida como uma “comunidade de indivíduos” (CUCHE, 2002, p. 29). O estabelecimento de relações matrimoniais e determinados elementos específicos à formação de cada grupo forjaria um tipo de pertencimento para o qual a noção de etnia é mais adequada para fazer referência a um agrupamento populacional.

O texto de Michael Banton aborda os principais pontos dos documentos anteriores analisados sob uma ótica sociológica e ainda apresenta um posicionamento em relação à postura que o profissional sociólogo deve ter sobre o tema. O autor centraliza a noção moderna de raça do século XIX, que serviu para explicar as “diferenças de desenvolvimento cultural e técnico existente entre os povos” (BANTON, 1969). Segundo o sociólogo, ao ser levada a reconhecer que as “tensões sociais” eram fundamentadas pela crença na existência de teorias “racistas”, a UNESCO foi considerada naquele momento a mais qualificada para compreender e difundir os dados sobre o caráter científico da categorização racial fundamentada na ideia de raça. Ainda sob este prisma, Banton argumenta que os cientistas concluíram que a ideia de raça seria a geradora de um obstáculo na compreensão das desigualdades que se mantinham entre grupos etnicamente diferentes.

Banton se inspira nas análises de Ruth Benedict sobre o caráter comportamental e sistêmico do racismo, na medida em que uma atitude racista se encadeia diretamente a outras atitudes. Com esse argumento, o autor indica a

 

necessidade de se observar os “conflitos raciais” junto a uma análise psicológica. A perspectiva de Benedict alega que os grupos ou cada cultura estão suscetíveis a determinado número de tipos classificados em raças ou os “tipos” possuem uma medida de concretude que pode ser estudada como um “modelo” (CUCHE, 2002) que compõe o racismo.

Banton qualifica o texto de 1967 como um manifesto “engajado”, uma vez que o tom é de alerta para a urgência dos efeitos do racismo e da necessidade de medidas concretas em seu combate, criadas pela educação, moradia, emprego, informação e legislação, o que deveria ser feito por meio de uma “discriminação positiva” (BANTON, 1969, p. 22). Aponta ainda a crença no caráter plural das causas da “hostilidade racial” de acordo com o contexto e as circunstâncias (BANTON, 1969).

O autor frisa que, naquele contexto, os trabalhos de analítica sociológica apontavam a plasticidade da formação do racismo no meio social. A pesquisa de cunho diagnóstico que afirmava o modo pelo qual se imprimem em um dado contexto social as práticas racistas e as maneiras pelas quais tais práticas são transmitidas é especialmente importante. Os modos de identificação utilizados pelos grupos “minoritários” deveriam influenciar as formas de análise sociológica (BANTON, 1969, p. 23). Conclui afirmando que não se pode ignorar o valor social atribuído à categorização racial no plano social pelo fato das pessoas se mobilizarem e se identificarem influenciadas por uma apropriação de tais classificações racializadas. A simples proposição da negação da categoria raça é inócua, pois não impede que as pessoas permaneçam pensando a si mesmas e aos outros em termos raciais. Por fim, afirma que os aspectos sociais da questão racial devem ser associados à desigualdade nas sociedades humanas.

Posteriormente, a posição de Banton sobre a analítica sociológica sobre a questão racial sofre uma modificação. No livro “A questão de raça”63, Banton enfatiza a terminologia ‘relações raciais’ como um modelo metodológico de identificação antiquada, em razão de ser baseada em uma concepção biológica de raça sem qualquer fundamento. Afirma, também, que a compreensão da

       

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construção da “ideia de raça” deva ser feita a partir dos modos como historicamente ela foi sendo utilizada, a primeira mudança de significado teria ocorrido a partir de 1800 dando lugar ao que o autor denomina de racialização como um processo de categorização que acabou se tornando a engrenagem do colonialismo.

O autor sustenta a tese de que a raça foi utilizada inicialmente como elemento que caracterizaria descendência e, posteriormente, como modo de classificação. Essa ausência de embasamento a respeito da ideia de raça sustenta- se pelo caráter contingente do termo, visto que significou diferentes coisas em diferentes contextos históricos. No entanto, do ponto de vista analítico, o estudo das relações raciais deve ser direcionado para a apreciação do “crescimento do saber” acerca do tema, articulando o desenvolvimento do conhecimento, a percepção das pessoas e as obras acadêmicas sobre a temática (BANTON, 2010, p.13). Banton destaca ainda que a problemática central acerca dos conflitos étnicos ou raciais é a existência de desigualdades entre estes grupos no interior de um mesmo “Estado-nacional”. No entanto, não se pode deixar de pontuar que as reflexões do pesquisador se dão a partir de um contexto europeu e com um cunho marcadamente sociológico, dado o momento histórico de sua elaboração.

O aparecimento do termo racismo na Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais de 1967 ocorreu junto à definição a partir da qual o racismo é uma doutrina cuja crença se refere à existência de uma tipologia que incide sobre os comportamentos individuais determinados por características hereditárias. Os sociólogos identificam que o racismo alia essa noção ao caráter da cultura e a possibilidade de identificação de “raças humanas”. Há uma ampliação das áreas de conhecimentos dos estudiosos convocados para a escrita do texto como a psicologia social, direito, etnografia, história.

A UNESCO realiza uma associação direta entre as ideias acerca das noções raciais e o racismo, isto é, a atribuição deste sentido de equivalência entre a existência da raça que sustenta o racismo. Ou seja, tal percepção orienta as medidas da agência que podem ser lidas como uma proposta de “desracialização” a ser operada, prioritariamente em âmbito linguístico, que culminaria na

 

finalidade de eliminar o racismo. Segundo Stockowiscz (2007) há uma leitura de que o que faz as pessoas aceitarem ou excluírem o outro, definido como não pertencente ao seu grupo, reside em um tipo de pensamento racional comum e não somente no pensamento científico. A elaboração científica por ser considerada mais sofisticada se afastaria das justificativas e práticas comuns que geram as discriminações e atitudes preconceituosas.

Os tópicos que até aqui estruturam este capítulo, destinaram-se a análise das questões colocadas no âmbito das disciplinas acadêmicas que embasam as declarações científicas da UNESCO. De agora em diante, os itens que seguem, dirigem-se aos esforços da UNESCO na mudança de orientação ao identificar que operar primeiramente pelo campo científico apresentava determinados limites os quais tentaram ser resolvidos por meio do aumento no investimento em pesquisas específicas sobre o tema congregando áreas diversas.