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CAPÍTULO III: A CONVALESCENÇA COMO POSSIBILIDADE DE

3. A afirmação da vida

Depois de fazer o seu diagnóstico do caso Sócrates, "haver reconhecido Sócrates como décadent"83, percebendo que a vida era a maior prejudicada, Nietzsche entende que a décadence é vingança contra a vida. O autor, percebe que através da décadence, fala um espírito pessimista, que tende a fugir da vida, a negligenciá-la. Por isso, o filósofo se vê como um antipessimista. Nietzsche se coloca como aquele que primeiro percebeu esse espírito de pessimista, não só na filosofia, mas também no âmbito cristão, que para ele, é herança do platonismo, como ele assinala no prólogo de Para além de bem e mal, (Nietzsche, 1992, p.8,). O que Nietzsche analisa está para além das conotações reflexivas que circundavam sua época. Pois, o seu diagnóstico da décadence, estaria fora do campo de conhecimento que se tinha até então, pois, para perceber tal fenômeno seria necessário tomar distância.

A que altura eu havia, com esses dois pontos, saltado além da deplorável tagarelice de cabeças ocas sobre otimismo versus pessimismo! Eu fui o primeiro que viu a verdadeira

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94 oposição: - o instinto degenerado, que se volta contra a vida com subterrânea sede de vingança84.

Ao esboçar sua posição em relação a alguns comportamentos diante da vida, de modo particular o filosófico (pessimismo filosófico) e o religioso (cristão), Nietzsche pretende fazer o papel inverso, isto é, voltar o seu olhar para vida, desejando afirmá-la. No seu entender, a vida não deve ser vista de forma pessimista, negando suas múltiplas facetas, mas afirmá-las, em todos os aspectos, mesmo nos mais desagradáveis. Porém, o dizer sim à existência, pressupõe aceitação de todas as circunstâncias que a compõem, mas não um aceitar passivo, mas um autoafirmar-se diante da vida, sem falsas expectativas: "nascida da plenitude, da abundância, uma fórmula da suprema afirmação, um dizer sim sem reserva, mesmo ao sofrimento, mesmo à culpa, mesmo a tudo o que é problemático e estranho na existência"85.

No entanto, o dizer sim à vida, como Nietzsche o entende, exige muito do indivíduo, pois não é um sim habitual, que passe só pela reflexão. É um sim que vai de encontro a compreensão de vida que se teve até então, que pede do indivíduo, um rompimento até com a sua própria noção de vida. Para o filosofo, este sim, é um sim audacioso, que provoca até a própria vida, por isso exige muito do individuo, logo, não é qualquer um que o suporte. É um sim que ultrapassa muitos sins já dados, o sim que afirma as faces mais "feias" que a vida tem para oferecer. Com esse pensamento, Nietzsche lança algo desafiante, para muitos, insuportável, pois convida o homem a afirmar a dor, o sofrimento, a morte, o que, na ótica do autor, esse afirmar essas nuances da vida, é o maior dos pesos que se pode carregar, como ele esboça no aforismo 341 de A Gaia Ciência. Mas, o que Nietzsche entende por vida, brota também da dor, do sofrimento e da morte, essa é uma das grandes diferenças da compreensão de vida que emerge nos escritos do autor.

Este último sim à vida, o mais alegre, o mais efusivamente arrogante, não é somente a visão mais alta, é também a mais profunda, a mais rigorosamente confirmada e sustentada pela verdade e pela ciência. Nada do que é deve ser excluído, nada é dispensável86.

84 Ibid. 85 Ibid. 86 Ibid.

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A verdade que sustenta o sim à vida, na perspectiva nietzscheana, parece ser a aceitação e o entendimento desta, como ela se apresenta, sem máscaras, esta aceitação, que dá sustentabilidade ao sim perante ela. Conhecer e compartilhar dessa "realidade" da existência, na qual se apresenta o constante surgir que constitui a vida, se torna inspiração, vontade de mais viver, para aqueles que têm como combustível diante deste mais viver, a dinâmica da própria existência. Do lado inverso daquele que tem essa força para afirmar a vida, tendo esta como alimento, inspiração para o mais viver, se encontra aquele que a teme, pelo menos algumas de suas facetas, aquelas que envolvem dor, sofrimento e morte, por exemplo. A vida mesma, como se apresenta, para este tipo de homem, é causa de desmotivação de viver, ele precisa criar motivação exterior à aquela que lhe é apresentada. A novidade, que implica em surgimento de novas vidas, que, consequentemente provoca estranhamento e, gera conhecimento, não é vivida pelo indivíduo que tenta disfarçar a vida através de máscaras autoconfortantes.

Mas, é preciso notar, que aquele que busca outros sentidos para vida, recusando a vida da forma que se apresenta, recusa a perspectiva de vida entendida por Nietzsche, que envolve o afirmar da existência em todos os aspectos. Já a outra perspectiva, que envolve pessimismo, que na visão do autor é uma fraqueza que fala através dela, é uma concepção que não afirma a vida enquanto tal; a sua busca é pela autopreservação. Percebe-se que a compreensão do que seja a vida, na perspectiva de Nietzsche, ultrapassa a ideia de conservação, o prolongamento da existência de uma determinada espécie, que procura tirar, por meios que arrebatam o foco da existência, a efetividade da vida.

O conhecimento, o dizer-sim à realidade, é para o fortes uma necessidade, tal como para os fracos, sob a inspiração da fraqueza, a covardia e a fuga da realidade - o "ideal" ... Eles não têm a liberdade de conhecer: os décadents precisam da mentira - ela é uma de suas condições de conservação87.

O afirmar a vida tal como Nietzsche a entende, talvez, tenha se manifestado, de alguma forma, nos cultos pagãos da cultura grega, nos quais se valorizava o indivíduo no seu todo, chegando ao ponto, de festejar os apetites mais fortes que fazem parte do homem. Tudo aquilo que o constitui, era louvado,

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visto como divino. O humano, no seu todo, era celebrado. Nisso, mostra a força dos gregos, pois aprenderam a conviver com todos os antagonismos que constituem o homem. Souberam direcionar as forças que brotavam do interior deste, que tinham como propósito, de uma forma mais rústica, afirmar e gerar vida. No celebrar os apetites humanos, direcionar os impulsos mais fortes, mostra força, boa saúde, isto fazia parte dos gregos, "os gregos davam a todas as paixões e maus pendores naturais, de tempo em tempo, como que festas e até mesmo instituíram uma espécie de ordenamento de celebrações de seu demasiado-humano: é isto o propriamente pagão de seu mundo"88.

O saber afirmar o jogo da vida, sem impor regras, não deve envolver "sabedoria" ou alguma concepção do que é justo ou injusto, mas sim, a efetividade da vida, a força instintiva é quem deve conduzir as escolhas a serem feitas. O que Nietzsche ressalta, é o saber se guiar em meio às paixões, para não ser engolido por elas. Isso os gregos souberam fazer com eficiência. Em relação a isso, Nietzsche vê no ato dos gregos de cultuar as paixões, uma herança de Homero e dos poetas, que na sua concepção, foram aqueles que melhor entenderam e afirmaram as paixões humanas.

De onde tiram os gregos essa liberdade, esse sentido de efetivo? Talvez de Homero e dos poetas anteriores a ele; pois precisamente os poetas, cuja natureza não costuma ser a mais justa e mais sábia, possuem em compensação esse gosto pelo efetivo, pelo eficiente

de toda espécie, e não querem negar totalmente nem mesmo o mal : basta-lhes que ele se

modere e não fira mortalmente ou envenene interiormente tudo89.

Nietzsche vê na tragédia grega, o horizonte onde a vida era afirmada. Na cultura helênica, isso se mostrava de forma mais intensa, os helenos a afirmavam por si mesma, sem a construção de artifícios que a maquiasse. Coube a Dionísio, na visão de Nietzsche, resgatar a força instintiva dos helênicos; através da figura de Dionísio, o filósofo entende que a vida é afirmada. Em Dionísio, ela ganha ares de sagrada, em todas as suas nuances. Isto é, a pureza, a afirmação do devir da vida se encontra presente em Dionísio; o criar e recriar da vida é afirmado. "Pois somente os mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco, expressa-se o fato fundamental do instinto helênico - sua "vontade de vida" (Nietzsche, 2006, p. 105).

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Nietzsche, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. In: Obras Incompletas, p. 136.

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Nietzsche entende, que a vida é "constituída" pela sua dinâmica do vir a ser, esse processo implica dor e sofrimento ao homem. Usando a metáfora da mulher em processo de parto, para explicitar o que envolve a novidade trazida pela vida, em que, assim como as dores, angústias, sofrimentos, que estão presente no processo de geração de uma nova vida, trazida no interior do corpo de uma mulher, as novidades trazidas pela vida, provocam no homem, as "mesmas sensações de dor, angústia, sofrimento". As novidades contidas no bojo da vida, que sempre estão em trabalho de parto, implicam dor, sofrimento, estranheza, então, não é qualquer indivíduo que a afirme. Já que a vida implica dor e sofrimento, o fraco tende a negá-la, ele não tem forças para afirmá-la na sua concretude. Coisa que não acontece em Dionísio, que para Nietzsche, representa a força da vida, a sua afirmação em todos os aspectos, inclusive na dor e no sofrimento. "Para que aja eterno prazer da criação, para que a vontade de vida afirme eternamente a si própria, tem de haver também eternamente a 'dor da mulher que pare'... A palavra 'Dionísio' significa tudo isso" (Nietzsche, 2006, p. 106).

Entendendo que a vida "é" uma mulher que sempre está em trabalho de parto e, junto a isso tudo que acompanha esse processo, como a dor, que é uma condição inerente ao homem, mediante a qual surge uma nova vida, Nietzsche atribui à criatividade de Sócrates, uma tentativa de fugir dessa dor. Sócrates muda a configuração do cenário grego, isto é, aquilo que servia de motivação, incentivo, de autosuperação para os gregos do período trágico, no caso a dor, é descaracterizada por Sócrates. A efetividade da existência não é suportada por Sócrates, ele não tinha a "sabedoria" nem a força dos trágicos. No entender do filósofo, a adesão ao meio socrático de interpretar vida, pelos gregos, é uma tentativa de fuga do efetivo da vida, que gera o pessimismo diante da dor para aquele que é fraco, que não consegue suportá-la." Nietzsche relaciona genealogicamente a passagem do trágico para o socratismo a uma modificação fundamental da relação com a dor" (Wotling, 2013, p. 366).

Nietzsche vê Sócrates como aquele que inverte os valores gregos. A sociedade grega é corrompida por ele. Ao ganhar força entre os gregos, a "doutrina" de Sócrates tira o foco da existência. A vida trágica cede espaço à racionalidade socrática. Na tragédia, a vida é assegurada, aceita como ela surge, sem julgamentos. A partir da perspectiva socrática, ela é guiada pela razão, que

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passa a valorá-la, direcionar valores a algo que não tem "valor". Ao colocar valor sobre a vida, esta é destituída do seu processo natural, não é ela que fala ao homem, há uma barreira que impede a comunicação. A razão se torna um obstáculo, em que o efetivo da existência é camuflado e transformado em superficialidade. Nietzsche se coloca como aquele que percebe em Sócrates um doente, "Sócrates pela primeira vez reconhecido como instrumento da dissolução grega, como décadent. 'Racionalidade' contra instinto. A 'racionalidade' a todo preço como força perigosa, solapadora da vida!" (Nietzsche, 2008, p. 60)

Nietzsche coloca Sócrates como um marco que divide a cultura grega90.

O autor entende, que Sócrates inverte todos os "valores" gregos que afirmavam a vida. Para Nietzsche, o caso Sócrates é algo que causa certo desconforto, pois é difícil compreender tal sabedoria. Para Nietzsche, Sócrates não é qualquer um, ele foi aquele que colocou em questionamento, toda uma cultura elevada, a cultura trágica dos gregos. Uma cultura que tinha nos seus pilares, os nomes mais elevados da Grécia. As artimanhas usadas por Sócrates para inverter os valores gregos, na visão de Nietzsche, exerceram grande influência sobre espíritos elevados, que não seriam convencidos se fosse algo muito sedutor. Esse é o jogo de Sócrates, a sedução, que causa um efeito ludibriante aos espíritos, já em Nietzsche, causa espanto.

Quem é esse que pode ousar, sozinho, negar a essência grega, essa essência que, em Homero, Píndaro e Ésquilo, em Fídias, em Péricles, em Pítia e Dionísio, como o mais profundo dos abismos e a mais alta das alturas, está segura de nossa admiração assombrosa? Que força demoníaca é essa, que pode atrever-se a despejar essa poção mágica no pó?91.

Nos escritos de Nietzsche, Sócrates se torna uma figura enigmática. Ao mesmo tempo que representa a dissolução dos "valores", que eram afirmados na cultura trágica, ele não tinha outra alternativa a não ser fazer o que fez, isto é, o que o próprio Nietzsche vai dizer no aforismo 10 do Crepúsculo dos Ídolos. Seguindo a abordagem feita pelo filósofo sobre o caso Sócrates, este parece ter sido apenas uma ponte de acesso, que levou até a cultura grega, aquilo que já estava a caminho. Os valores que dissuadiriam a cultura grega, já estava batendo

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Sócrates permanece um marco capital na história da cult ura grega, mas a reflexão axiológica conduz a reavaliar sua significação e a desvalorizar o procedimento socrático ( e, nessa esteira, todo o plat onismo) em prol da cultura da grande época da tragédia (Wotling, 2013, p.365).

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à porta. O que Nietzsche tenta mostrar é, que para saber o que se escondia por trás do caso Sócrates, não bastava apenas ler informações a respeito dos "fatos", precisava de algo mais, precisava saber "adivinhar", da arte do adivinhar o que se escondia por trás dos acontecimentos ratificados na figura de Sócrates. Como o próprio Sócrates soube adivinhar aquilo que não aparecia de forma límpida na cultura grega, porque estava oculto. Aqui se encontra uma característica interessante, tanto em Sócrates, quanto em Nietzsche. O "adivinhar" está presente nos dois. Enquanto Sócrates "adivinha" o que estava a caminho da cultura grega, Nietzsche "adivinha" o que se esconde por trás dos relatos sobre Sócrates, do comportamento de Sócrates.

Quem adivinhou apenas um sopro daquela divina ingenuidade e segurança da orientação socrática de vida, nos escritos platônicos, sentiu também como a descomunal roda propulsora do socratismo lógico está em movimento como que por trás de Sócrates, e como isso tem de ser intuído por Sócrates como através de uma sombra92.

Segundo Nietzsche, a diferença maior entre a cultura trágica e os valores socráticos, estaria no sim que estas duas perspectivas dão à vida. O sim do trágico representa a força que desafia a própria vida, afirmando-a de forma ativa, diferente do sim socrático, que diz sim, um sim de negação, que sabe que a vida "é"como "é", mas não a aceita como ela se apresenta. Este sim, é um sim de não consentimento que a vida seja como ela se mostra. Na perspectiva de Sócrates, é sabido que a vida "é" como tal, mas não aceitando que ela seja como tal. Na vida ser como tal se apresenta, quer dizer que ela não tem um sentido, que tudo que acarreta a existência, não tem um significado além, um fim. Diferente da cultura trágica, que aceitava este predicado da existência, Sócrates não aceitava que a vida não tivesse um sentido, então, se viu na necessidade de atribuir um sentido para o que não tem, a vida.

Enquanto a cultura trágica dizia sim à vida e buscava o sofrimento para superá-lo ao desdobrar sua força, a super-valorização socrática da razão é o sinal de uma vontade de potência enfraquecida, que procura um sentido a esse sofrimento, porque não pode assimilá-lo espontaneamente: a interpretação moral da realidade fornece esse sentido (Wotling, 2013, p. 366).

A figura de Dionísio faz Nietzsche estabelecer uma ponte até os poetas gregos, anteriores a Homero, onde o efetivo da vida era tido por eles, como

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prazeroso, isto é, eles afirmavam a vida. Eles sabiam conviver com as adversidades do existir, as direcionavam. Esse diferencial que caracteriza os poetas da antiguidade grega, Nietzsche aborda no aforismo 220 de Humano, Demasiado Humano93. Segundo ele, em Dionísio se caracteriza a figura do poeta trágico. Tanto é, que ele ratifica essa temática no Crepúsculo dos Ídolos, quando diz: "O dizer Sim à Vida, mesmo nos seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos - a isso chamei de dionisíaco, nisso vislumbrei a ponte para a psicologia do poeta trágico" (Nietzsche, 2006, p. 106). Nietzsche não fala da afirmação de qualquer sim e nem da afirmação de qualquer vida, mas um sim ao todo da existência, sem descaracterizar nada do vivido, mas ao contrário, o sim à vida nietzscheano envolve a afirmação até das partes mais ásperas oferecidas por esta. De nada fugir, ou negar, mas afirmar o que normalmente os fracos tendem a negar.

O aceitar as condições humanas, em vez de desprezá-las, cultuá-las; nessa ação dos gregos, Nietzsche vê uma suposta herança de Homero e dos poetas. Os gregos souberam criar um espaço na sociedade, onde os apetites humanos pudessem ser festejados, divinizados como parte constituinte do homem, assim, valorizando o homem no seu todo. Ao trazer à baila, resgatar através dos seus textos, essa características dos gregos, Nietzsche parece querer exaltar a tragédia grega, na qual se vivia de forma intensa a efetividade da vida. Nesse cenário, as condições da natureza humana eram compreendidas, aceitas, exaltadas, eram sinal de saúde.

Eles tomavam esse demasiado-humano como inevitável e preferiam, em vez de insultá-lo, dar-lhe uma espécie de direito de segunda classe, ordenando-o dentro dos usos da sociedade e do culto: aliás, tudo o que tem potência no homem eles denominavam divino, e o inscreviam nas paredes de seu céu94.

Os apetites humanos que eram cultuados pelos gregos, com o passar do tempo, tiveram o seu declínio, deixam de ser divinizados, as partes da sua aspereza ganham conotações de impurezas, sendo renegadas, entendidas como maléficas ao homem. Cria-se um paradoxo na condição do próprio homem, ele tem que passar a negar a sua própria condição. O culto pagão dos gregos, onde a

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Nietzsche, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. In: Obras Incompletas, p. 136.

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condição humana era divinizada, passa a ser blasfemada. Na perspectiva de Nietzsche, isso ocorre de forma mais forte a partir do cristianismo,95 em que as

forças que complementam o corpo humano passam a ser sinal de doença, "a partir do cristianismo, não é nunca compreendido, não pode nunca ser compreendido e é sempre combatido e desprezado do modo mais duro"96.

Enquanto o cristianismo não soube lidar com aqueles apetites que poderiam levar o homem ao "suicídio", não tinha forças para direcioná-los, os gregos se destacavam por saber conduzir essa vertente da natureza humana. Reprimi-los não é o meio certo de conviver com eles, mas organizá-los e direcioná-los, contribuindo para a saúde do todo do corpo e, assim os mantendo organizados. Esta parece ser a ideia passada por Nietzsche, ao trazer presente a forma como os gregos lidavam com os apetites humanos, os que eram tidos como apetites desorganizados, que precisavam, de alguma forma, sair para fora do corpo. Nietzsche destaca a capacidade grega de saber conviver com as condições humanas que fazem parte da constituição do homem. "Não negam o impulso natural que se exprime nas propriedades ruins, mas as ordenam e o limitam a cultos e dias determinados, depois de terem inventado suficiente medidas preventivas para poderem dar àquelas águas selvagens a vazão mais inócua possível"97.

Em contrapartida, aos gregos da época trágica, que afirmavam a vida, Nietzsche coloca no caso Sócrates, aforismo 2 de Crepúsculo dos Ídolos, Platão e Sócrates como "pseudogregos, antigregos" (Nietzsche, 2006, p. 18). Estes são responsáveis não só pela afloração da décadence grega, mas também por sua proliferação na cultura ocidental. Com eles, se inicia a vingança contra a tragédia grega, isto é, contra a afirmação da vida. Eles fazem uma inversão dos valores, isto é, eles tentam fixar valores à vida. A inversão feita por estes, consiste no seguinte: o mundo é mutável, então criam um que não muda; os valores não se sustentam como verdadeiros, então constroem valores eternos; o homem é

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