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CAPÍTULO II: OS MEIOS ESCOLHIDOS PELO CORPO CONTRA A

3. Os adoecedores do corpo

Ao examinar as causas da doença do corpo, que Nietzsche entende como efeito de uma queda fisiológica, o filósofo procura fazer uma análise do processo degenerativo que leva o corpo a uma queda fisiológica. O autor observa que não é tão fácil obter a saúde, onde há forças que lutam por um efeito contrário, que em vez de valorizar os meios que a favorecem, optam por métodos que beneficiam a doença. Nesse jogo de opostos, o qual saúde e doença se encontram entrecruzadas, há quem opte por métodos que o leve a ficar mais distante daquilo que pode levá-lo à doença. Entretanto, outros tantos, preferem caminhos que geram o definhamento62.

Ao diagnosticar os meios que são usados para obter a cura fisiológica de um individuo, Nietzsche observa que há diferenças, interesses opostos entre um fisiólogo e o sacerdote. Enquanto um, o fisiólogo, busca meios que possam sanar o declínio fisiológico, que leva o homem a doença, o outro, o sacerdote, cria métodos que favorecem esse declínio. Nietzsche percebe que há um jogo de domínio por trás dos métodos adotados pelo sacerdote, ele não quer a cura do individuo, mas o seu declínio, pois dessa forma, este se torna uma presa frágil, fácil de ser dominada.

O sacerdote usa meios, os quais têm como objetivo o enfraquecimento fisiológico do homem. Cria artimanhas que faz com que este comece a perder o gosto pela vida, pela sua existência. Os seus instintos, que fazem parte da sua constituição, começam a se tornar motivo de culpa, passam a ser sinônimo de vergonha63. O corpo, que abriga uma multiplicidade de desejos, necessidades

básicas de vida, começa a ser renegado, rejeitado, culpado por ser como é. Quando estes tipos de sensações ocorrem, já são efeitos sérios, de uma doença que deriva da queda fisiológica. O homem se encontra doente, seriamente

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Aforismo 2, de Ecce Homo (Por que sou tão sábio), 2008, p. 23.

63 Autoconhecimento moral, cont udo, não é mera contemplação. Nele, o homem se volta não apenas para

si, ele se volta cont ra si mesmo. A genealogia da consciência moral busca esclarecer esse t ema. Quando, por fim, os "semianimais adaptados de maneira feliz à vida selvagem, à guerra, ao erro, à avent ura" do primeiro período da história humana foram atraídos ' em definitivo ao encanto da sociedade de paz', seus instintos perderam o campo de ação natural. Não podiam mais, como outrora, descarregar-se para fora com vigor desinibido e sadio. A pressão de uma sociedade já const it uída de seres enfraquecidos desviou os impulsos dos originalmente fortes. O prazer de perseguir e destruir reprimidos voltou-se para dentro, contra os portadores desses instintos. Dessa " interiorização doentia do homem" brot ou a "má consciência" (M üller-Lauter, 2011, p. 112).

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doente. Aquele que fornece os meios para esse agravante, diz ter também os meios para a cura, que, na verdade, não passam de um círculo vicioso, que tornará o doente cada vez mais doente.

O fisiólogo exige a extirpação da parte degenerada, ele nega qualquer solidariedade ao degenerado, está o mais longe possível da compaixão por ele. Mas o sacerdote quer exatamente a degeneração do todo, da humanidade: por isso conserva o que degenera - a este preço ele a domina... Que sentido têm aqueles conceitos mentirosos, os conceitos auxiliares de moral, "alma", "espírito", "livre-arbítrio", "Deus", senão o de arruinar fisiologicamente a humanidade?... Quando se retira a seriedade da autoconservação, da fortificação do corpo, ou seja, da vida, quando se faz da anemia um ideal, do desprezo ao corpo a "salvação da alma", que é isto, senão uma receita de décadence? (Nietzsche, 2008 a, p. 77).

Mas é interessante perceber que mesmo os meios ascéticos que desprezam a vida, segundo Nietzsche, são apenas perspectivas diferentes que estão a favor dela. Na ótica do autor, o sacerdote ascético, por exemplo, está a favor da vida, mesmo optando por meios, que aparentemente, dão a entender, ter só a função de negação desta. Por trás dos meios ascéticos, está a vontade de mais vida, de preservação desta, ou seja, a luta contra a morte. Mesmo usando de artifícios perniciosos, o asceta luta a favor da vida, embora negue algumas situações que fazem parte desta, como dor por exemplo, a dor, sofrimento, ou melhor, cria situações na tentativa de fugir destas circunstâncias. Por isso, Nietzsche vai dizer: " Já me entendem: este sacerdote ascético, este aparente inimigo da vida, este negador - ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e afirmadores da vida"(Nietzsche, 1992, p. 135).

No âmbito religioso, de modo particular no cristianismo, além do domínio, que é o objetivo do sacerdote, representante da moral cristã, há também, nesse mesmo bojo, um desprezo pela vida, uma recusa pelo corpo. Dentre os métodos criados, que desvalorizam a vida, se encontra a inversão de mundo, em que a "realidade"é negada e, partir dela se cria um mundo ideal, considerado perfeito, isto é, o verdadeiro se torna falso, e o falso, passa a ser verdadeiro. No que diz respeito à tentativa de colocar o corpo em segundo plano, criou -se uma "alma" separada do corpo, que é o cárcere dessa alma. Com isso o corpo acabou ficando em segundo plano, não tendo a devida importância. Na concepção do autor, a criação de um mundo metafísico, de valores ideais, serve apenas para desviar o foco daquilo que de mais importante a filosofia deixou de lado, o corpo.

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"A noção de 'alma', 'espírito', por fim, 'alma imortal', inventada para desprezar o corpo, torná-lo doente" (Nietzsche, 2008 a, p.109).

Quem cria realidades ilusórias, fora mundo, demonstra seu descontentamento com o mundo. A não reciprocidade entre mundo e homem, refletindo para fora do mundo existente, evidencia o desequilíbrio do homem em meio à vida, ele não é capaz de se orientar dentro do mundo que tem. Ao negar o mundo, nega também a si mesmo, pois ele é uma parte que compõe o mundo. A forma de negar a si mesmo, devido a sua insatisfação com vida, é reprimir o corpo, tido como sinônimo de aprisionamento. Nietzsche chama a atenção, em Zaratustra, quando fala Dos trasmundanos que ao projetar um mundo idealmente perfeito, um corpo que não necessite das mazelas que o corpo existente precisa, necessariamente, o ponto de referência, ou melhor, o ponto de partida para imaginar tais situações, é o mundo e o corpo do qual ele tem conhecimento.

Nietzsche poderia insinuar, através de Zaratustra que, embora os doentes, os insatisfeitos com o mundo, com o corpo, rejeitem essas realidades, com o intuito de criarem outro mundo, outro corpo fora do âmbito existente, que possa atingir seus ideais de perfeição, é por meio deles, desses ideais fictícios de mundo perfeito, corpo imortal, que eles valorizam o que negam64. Parece que a

doença que aflige os descontentes da existência, seria o medo da finitude. Os moribundos e doentes, citados por Zaratustra, parecem viver num antagonismo existencial, no qual negam o seu mundo, o seu corpo, mas querendo ambos em outro mundo.

Foram os doentes e moribundos que desprezaram corpo e terra e inventaram as coisas celestiais e as gotas de sangue redentoras: mas também esses doces, sombrios venenos tiraram eles do corpo e da terra!

Imaginaram-se então arrebatados a seu corpo e a essa terra, os ingratos! Mas a quem deviam o espasmo e a volúpia desse arrebatamento? A seu corpo e a essa terra. (Nietzsche, 2011, p. 33).

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pois todos os antagonismos são imanentes à vida. Na verdade, não assumimos nenhuma "posição fora da vida", a partir da qual poderíamos nos contrapor a ela (M üller-Laut er, 2009, p. 138).

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