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Conhecimento: uma má interpretação do corpo

CAPÍTULO I: O INDIVIDUAL E O COLETIVO NO CASO DA

6. Conhecimento: uma má interpretação do corpo

Um psicólogo conhece poucas questões tão atraentes quanto a da relação entre saúde e filosofia, e para o caso, em que ele próprio ficar doente, ele traz toda a sua curiosidade científica consigo para a sua doença. Ou seja, pressuposto que se é uma pessoa: no entanto, há uma diferença relevante. Em um são suas lacunas que filosofam, em outro suas riquezas e forças. O primeiro necessita de sua filosofia, seja como amparo, tranqüilizante, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si; neste último, ela é apenas um belo luxo, no melhor dos casos a volúpia de uma gratidão triunfante, que acaba tendo ainda de se inscrever em maiúsculas cósmicas no céu dos conceitos. No outro caso, porém, o mais habitual, quando são os estados de indigência que fazem filosofia, como em todos os pensadores doentes - e talvez preponderem os pensadores doentes na história da filosofia - : o que será do pensamento mesmo, que é posto sobre a pressão da doença?24.

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Efeitos de doença, no entender de Nietzsche, não se encontram somente no âmbito físico, mas também nas produções intelectuais e científicas. No entender do autor, nesses âmbitos de produção, também se mostra o estado de saúde de quem fala, por trás de uma determinada forma de pensar, pode estar escondida a saúde ou a doença. Em uma vertente filosófica ou científica, manifesta-se também se é alguém saudável ou doente que fala através dela. Ao ficar doente fisicamente, o indivíduo corre o risco, pela enfermidade física, de "infeccionar" a sua forma de entender a vida. A sua concepção de filosofia pode passar a ser uma teoria de autoconforto, na tentativa de enganar a si mesmo diante da "realidade" da vida, isto é da sua própria "realidade". A sua filosofia se torna prenhe de conceitos vazios.

Na investigação, para saber que tipo de saúde fala, através de uma determinada forma de filosofia, de conhecimento, Nietzsche insere o psicólogo. Esse psicólogo seria aquele que investiga que tipo de saúde se encontra atrás do véu da filosofia, qual seria a influência que a doença exerceria sobre aquele que filosofa. Esse psicólogo, assim entendido por Nietzsche25, está longe da compreensão de psicólogo que se teve até então. No seu entender, o psicólogo deve ser capaz de descobrir o que está por trás dos valores, dos sentimentos que brotam da alma humana, como se originaram esses sentimentos, que influências eles sofreram. Na filosofia, para Nietzsche, não teria existido tal psicologia, aliás. "Quem, entre os filósofos, foi antes de mim psicólogo, e não seu oposto, 'superior embusteiro', 'idealista'? Antes de mim não havia absolutamente psicologia" (Nietzsche, 2008 a, p.106).

O papel do psicólogo, é colocar em dúvida todo o conhecimento filosófico que foi tido até então como certo, verdadeiro, inquestionável. Ele precisa duvidar até mesmo da sua própria filosofia. Pois a filosofia que carrega pressupostos de verdades inquestionáveis se encontra enferma, porém não admite que está doente. Diferentemente, o filopsicólogo, sim é capaz de reconhecer a sua própria doença. Os filósofos não tiveram essa sensibilidade instintiva, não se recuperaram da sua doença. A filosofia, nessa perspectiva, tornou-se uma espécie de anestesia, uma letargia, que impede os filósofos de perceberem a sua doença. É a falta de saúde que se manifesta como filosofia. Os filósofos não

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Nas palavras de Giacoia, trate-se do viajant e - aquele que vaga pelos mais remotos paradeiros. O filo- psicólogo: aquele que transita pelos recônditos labirínticos da alma humana. (Giacoia, 2013, p.181).

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conseguem se desvencilhar da doença que os cerca, eles se encontram em um sono profundo, não têm um instinto aguçado o suficiente para libertá-los do Morfeu da filosofia, " assim,nós filósofos, suposto que ficamos doentes, nos entregamos de corpo e alma à doença - como que fechamos os olhos a nós"26. O fato de Nietzsche perceber que estava doente e, que se recuperou, que se encontra novamente com saúde, demonstra também que a sua filosofia passou por um processo de transmutação, de investigação, que se encontra mais saudável, que não é mais um doente, ou a falta de saúde que filosofa, mas a saúde, uma sã filosofia que se manifesta. No entanto, não se trata de algo pessoal: "Mas deixemos o Sr. Nietzsche: que nos importa que o Sr. Nietzsche está outra vez com saúde?..."27.

Analisando o que estaria escondido por trás dos caminhos percorridos pela filosofia, Nietzsche, de certa forma, mostra o mal-entendido que cometeu a filosofia até então. Entende o porquê da filosofia buscar o autoconforto, usar o filosofar como meio de anestesiar as nuanças da vida. Os filósofos não entendiam o que guiava os seus pensamentos, suas teorias metafísicas, criações de além mundos, a procura de um bem-estar. Nisso tudo, se escondia uma necessidade fisiológica, é o corpo quem sempre está no comando procurando sanar as suas necessidades para continuar sobrevivendo. Esse agir, é um agir de forma inconsciente. Nessas escolhas, o corpo tem seus acertos e desacertos, mas sempre procura uma forma de se manter vivo. Essas nuanças do corpo passaram despercebidas pela filosofia, por isso, os filósofos filosofavam no vazio, não entendiam a amplitude do que realmente acontecia.

Aprende-se, com essa espécie de auto-questionamento, de auto-experimentação, a olhar com um olho mais refinado para tudo o que em geral foi filosofado até agora; adivinham-se melhor que antes os involuntários descaminhos, ruas laterais, lugares de repouso, lugares de sol do pensamento, a que os pensadores que sofrem, precisamente como sofredores, são conduzidos e seduzidos, sabe-se doravante para onde, inconscientemente, o corpo doente, com suas necessidades, impele, empurra, atrai o espírito28.

Para Nietzsche, não basta ser apenas filósofo para diagnosticar a doença que se esconde em cada filosofia. Para ele, o filósofo não tem força suficiente a

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Nietzsche, Friedrich. A Gaia Ciência. In: Obras Incompletas, p. 189.

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Ibid.

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ponto de levar a suspeita levantada por ele, Nietzsche29, até as últimas

consequências. Apesar da filosofia, para Nietzsche, ser uma das muitas manifestação do corpo, ela nunca soube interpretar o corpo, "e com bastante freqüência eu me perguntei se, calculando por alto, a filosofia até agora não foi em geral somente uma interpretação do corpo e um mal-entendido sobre o corpo". (Nietzsche, 1983, p. 190). Parece até um contrasenso, já que a filosofia é uma manifestação da leitura que o corpo faz de um determinado contexto desfavorável e, na tentativa de melhorias para si, acaba se tornando a sua própria vítima. Nietzsche é aquele que teve a audácia, como psicólogo, de levantar a suspeita sobre o conhecimento filosófico, mas não define uma solução para tanto, deixa a tarefa para os curandeiros vindouros, eles poderão cuidar do problema.

Ainda estou à espera de que um médico filosófico, no sentido excepcional da palavra - um médico que tenha o problema da saúde geral do povo, tempo, raça, humanidade, para cuidar -, terá uma vez o ânimo de levar minha suspeita ao ápice e aventurar a proposição: em todo filosofar até agora nunca se tratou de "verdade", mas de algo outro, digamos saúde, futuro, crescimento, potência, vida30.

Quando Nietzsche fala do médico, essa figura se torna peça chave no que diz respeito à compreensão das necessidades do corpo. Esse entendimento não passa só por uma compreensão fisiológica de um determinado corpo na sua individualidade, mas as influências culturais e geográficas sofridas por esse corpo também são circunstâncias a serem estudadas com máxima atenção. Então, o médico tem de saber ler através do comportamento de um corpo, na sua particularidade, diagnosticar qual seria a sua necessidade. "As diferentes culturas são diferentes climas espirituais, cada um dos quais é particularmente danoso ou salutar para esse ou aquele organismo". (Nietzsche, 2008 b, P. 248). Para tanto, se torna necessário entender as culturas onde cada corpo, na sua singularidade, habita. O conhecimento sobre as particularidades culturais são de grande valia para atingir esse propósito. O que não se pode dizer do conhecimento médico científico, já que este age de forma tendenciosa, não levando em conta essas particularidades, tendendo a julgar uma necessidade particular como universal."A história em seu conjunto, enquanto saber sobre as diferentes culturas, é a farmacologia, mas não a ciência médica mesma" (Nietzsche, 2008 b, p. 249)

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Lembrando que Nietzsche se coloca como psicólogo.

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Ao acompanhar um determinado indivíduo no seu processo de restabelecimento, o médico, no entender de Nietzsche, deve analisar não só a enfermidade física, mas o que circunda uma enfermidade. Talvez, a causa possa até ser uma patologia. Por isso, um conhecimento abrangente de diversas culturas se torna de extrema importância para o exercício do ofício do médico, pois, a causa de uma doença pode estar diretamente ligada a determinado (s) valor (es) cultural (is). Na busca por melhorias de viver, de forma mais saudável, questões geográficas, os males que cada região pode fornecer ao bem-estar, ou os benefícios para atingir esse fim, são informações que devem ser obtidas e levadas em conta. Outro fator a ser observado com maior atenção, é como o corpo reage perante as escolhas feitas, pois é ele quem deve dar o aval final31. As escolhas devem ser feitas levando em conta as condições em que o corpo se encontra e, quais as condições que melhor o favorecem. Uma boa saúde, ou, alcançar uma boa saúde, passa pela aceitação que o corpo tem ou não, de um espaço geográfico e cultural. Para Nietzsche, esses são fatores a serem conhecidos, estudados, com o intuito de levar o ser humano a viver com saúde, a obter uma boa saúde.

Ao lado desse tratamento dos espíritos, a humanidade deve procurar, no tocante ao corpo, mediante uma geografia médica, descobrir quais degenerações e enfermidades cada região da Terra ocasiona e, inversamente, quais fatores curativos oferece (Nietzsche, 2008 b, p. 249).

No que tange à busca do ser humano no intuito de obter uma boa saúde para o corpo, não é possível uma receita universal que atinja esse propósito. Há que se respeitar as mazelas de cada corpo, se deve entendê-las, valorizá-las, só assim chegar-se-á a um entendimento das exigências e necessidades que determinado corpo precisa para estar em plena vitalidade. A individualidade de cada corpo, com suas nuanças, traz indícios também de como alcançar sua saúde. Em um corpo, não é possível falar apenas de uma saúde, mas de fases de saúde, pois ele se encontra em um processo, onde as suas necessidades sempre se renovam. Nem a um mesmo corpo cabe uma única prescrição. Por isso, os médicos até sua época, no entendimento de Nietzsche, nunca entenderam das necessidades humanas, dos seus corpos. Se os médicos quiserem entender,

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cuidar melhor da saúde dos seus pacientes, para isso, precisariam mudar a concepção do que é saúde.

Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças, de seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma, determinar o que deve significar saúde também para seu corpo. Assim, há inúmeras saúdes do corpo; e quanto mais deixarmos que o indivíduo particular e incomparável erga a sua cabeça, quanto mais esquecermos o dogma da "igualdade dos homens", tanto mais nossos médicos terão de abandonar o conceito de uma saúde normal, juntamente com dieta normal e curso normal de doença (Nietzsche, 2008 b, p. 134).

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CAPÍTULO II: OS MEIOS ESCOLHIDOS PELO CORPO CONTRA A MORTE

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