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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

GILMAR DIAS DA CONCEIÇÃO

A CONVALESCENÇA COMO POSSIBILIDADE DE SAÚDE PARA O CORPO NOS ESCRITOS DE NIETZSCHE

MESTRADO EM FILOSOFIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gilmar Dias da Conceição

A CONVALESCENÇA COMO POSSIBILIDADE DE SAÚDE PARA O CORPO NOS ESCRITOS DE NIETZSCHE

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em filosofia, sob a orientação da Profª. Dra. Yolanda Glória Gamboa Muñoz

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GILMAR, Dias da Conceição. A Convalescença Como Possibilidade de Saúde

Para o Corpo nos Escritos de Friedrich Nietzsche. 126 p. Dissertação

(Mestrado em Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015

Banca Examinadora

___________________________________________

___________________________________________

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Aos meus pais, Inimar Dias Cardoso e Maria Edna da Conceição.

Ao meu irmão Elias

(5)

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

À Congregação dos Missionários do Verbo Divino,

À Professora Doutora Yolanda Glória Gamboa Muñoz

Ao professor Edelcio Serafim Ottaviani e a Professora Dulce Critelli, pela valiosa contribuição a este trabalho.

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GILMAR, Dias da Conceição. A Convalescença Como Possibilidade de Saúde

Para o Corpo nos Escritos de Nietzsche. 126 p. Dissertação (Mestrado em

Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015.

RESUMO

O intuito desta dissertação de mestrado é o de estudar o itinerário seguido por Nietzsche na elaboração da sua perspectiva sobre o corpo, a partir dos antecedentes que determinaram sua desvalorização. Nesta trajetória examinaremos, entre outros pontos, a perspectiva de Nietzsche sobre o processo da decadência do homem, salientando o que o referido pensador entende por fisiologia e arte da convalescença, mostrando como se configura o processo da doença no homem individual e no coletivo.

Palavras chaves: decadência do homem - fisiologia - corpo - doença -

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Gilmar, Dias da Conceição. A Convalescença Como Possibilidade de Saúde

Para o Corpo nos Escritos de Nietzsche. 126 p. Dissertação (Mestrado em

Filosofia)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015

ABSTRACT

The objective of this dissertation paper in Masters is the study of the itinerary followed by Nietzsche in elaborating his perspective on the body, starting from the antecedents that determined its devaluation. In this journey, we shall be examining, among other points, the Nietzsche perspective on the human decadency process, with emphasis on what the above mentioned thinker understands by Physiology and the art of convalescence, and showing how it configures the process of human sickness both individually and collectively.

Key words: human decadence – Physiology – Body – Sickness –

Convalescence.

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SUM ÁRIO

INTRODUÇÃO ... 09

CAPÍTULO I: O INDIVIDUAL E O COLETIVO NO CASO DA DECADÊNCIA ... 12

1. A percepção de Sócrates ... 12

2. Negação da vida: um problema de digestão ... 18

3. Os remédios contra a vida: o desespero de Sócrates ... 22

4. O corpo como uma hierarquia política ... 26

5. O corpo: uma multiplicidade de afetos ... 30

6. Conhecimento: uma má interpretação do corpo ... 31

CAPÍTULO II: OS MEIOS ESCOLHIDOS PELO CORPO CONTRA A MORTE ... ...... 37

1. A decadência em Nietzsche ... 37

2. Escolha: elevação ou declínio ... 51

3. Os adoecedores do corpo ... 67

4. Fisiologia nos escritos de Nietzsche ... 70

5. Os efeitos da linguagem e da consciência sobre o corpo ... 73

6. O corpo e o Si-mesmo ... 78

CAPÍTULO III: A CONVALESCENÇA COMO POSSIBILIDADE DE SAÚDE PARA O CORPO ... 85

1. A enfermidade como possibilidade de saúde ... 85

2. Saúde: uma questão de escolhas ... 91

3. A afirmação da vida ... 93

4. Os espíritos livres: meios para alcançar a grande saúde ... 106

5. O riso e a grande saúde ... 114

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 121

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INTRODUÇÃO

O desenvolvimento do presente trabalho criou raízes a partir de algumas interpelações, que com o passar do tempo se tornaram motivações e indagações no que tange à compreensão do corpo, de como este foi caracterizado até agora, particularmente, no âmbito religioso cristão. Entendendo que o campo religioso tem prejudicado o homem ao partilhar da mesma ideia platônica do corpo e, ao considerar tudo o que o acarreta, como afetos, desejos, como algo prejudicial ao homem, quando diz que o sensível afasta da perfeição, de um mundo perfeito. Na medida em que transformou o mundo e o homem em um ideal de perfeição a ser alcançado, criando finalidades, prometendo recompensas para quem conseguir subjugar, atrofiar os desejos do corpo em prol deste fim, negando o homem e o mundo que se faz presente, o cristianismo acabou por se tornar um mal para homem. Tendo como pano de fundo para sustentar tal ideal, um Deus castigador, que pune aqueles quem cede aos desejos do corpo, e permanecem na sua condição de ser humano que deseja, cobiça, sente inveja; o homem é submetido dessa forma a uma luta desigual, isto é, tem que gladiar contra si mesmo.

Entendendo que as perspectivas religiosas e filosóficas, na medida em que criam uma dicotomia entre corpo e alma, defendendo a ideia de que a alma é mais importante do que o corpo, que o homem deve lutar contra os apetites deste em favor de uma perfeição ou salvação de uma alma, traz grandes transtornos psicológicos ao indivíduo. Partindo dessas interpelações, buscando ferramentas para refletir e entender de onde viriam tais perspectivas, que entendem o corpo como cárcere, que o despreza e marginaliza, colocando-o como um calabouço para o homem, estudamos os escritos de Nietzsche, procurando informações que permitam aprofundar essas questões.

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Para orientar este percurso de reflexão a respeito do corpo, o horizonte que nos guiou foram as próprias experiências de dor, cansaço, sofrimento, convalescença e, além de tudo, as constantes superações vividas e relatadas pelo próprio autor, de modo mais enfático na sua autobiografia, intitulada de Ecce Homo. Não pensamos, porém, que esta temática tenha sido abordada somente nessa obra. A partir dos relatos do filósofo, nos quais se faz presente o corpo como figura central, este que também é o fio condutor do nosso trabalho, Nietzsche traz à baila uma nova perspectiva para se pensar o corpo, isto é, este passa a ser o ponto de partida para o seu filosofar, uma filosofia que se constitui a partir dele, de suas interpelações.

É necessário ressaltar que esta perspectiva de pensar uma filosofia a partir do corpo nos escritos de Nietzsche, não se enquadra nos padrões que o reduzem a comportamentos fisiológicos. O filósofo procura transvalorar, libertá-lo das correntes conceituais que o enquadram em formas dicotômicas. Para isso, o autor transvaloriza não só a perspectiva filosófica, religiosa, mas também a científica. A partir das novas perspectivas lançadas por Nietzsche, o presente trabalho tenta desenvolver uma dinâmica de reflexão e uma primeira na tentativa de abranger a compreensão daquilo que se chama corpo.

Para tanto, no decorrer do trabalho, são feitos alguns contrapontos entre aquilo que o autor entende como momentos da história humana, onde o corpo era visto de perspectivas diferentes, como por exemplo, quando este era louvado através da tragédia grega ou na figura do deus Dionísio, mas em contrapartida , teve seus apetites e instintos suprimidos pela "absurda racionalidade" Socrática. Como ocorreu o processo de um "corpo" saudável (louvado na tragédia grega, por Dionísio) ceder espaço a um "corpo" doente (defendido por Sócrates)? e, Como esta perspectiva foi capaz de influenciar toda a cidade de Atenas da época? por fim, analisando o contexto em que se encontrava Nietzsche lança sua perspectiva do que venha a ser um corpo saudável, o que fazer para que este possa alcançar a grande saúde, que seja capaz de se convalescer constantemente, isto é, se superar conquistando a grande saúde.

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tem como um dos objetivos, tentar traçar uma rota que seja capaz de ilustrar o processo de decadência do corpo, seus altos e baixos, a presença constante, da decadência e da ascensão, demos a este tema o seguinte título: A convalescença como possibilidade de saúde para o corpo em Nietzsche. Para apresentar esta temática, o trabalho será dividido em três capítulos com o seguinte conteúdo:

1 - No primeiro capítulo, será apresentada a figura de Sócrates, segundo a perspectiva de Nietzsche, que é usada pelo autor como um signo que lhe permite diagnosticar o que acontecia no contexto da cidade de Atenas. Junto a isso, além de procurar discorrer sobre o corpo, entendido a partir de um complexo hierárquico, também procuraremos desenvolver uma reflexão sobre os meios utilizados por um corpo doente que tende a negar a vida, e o fluxo da existência.

2 - No segundo, faremos uma abordagem da decadência, tendo como parâmetro a experiência do próprio Nietzsche, isto é, elucidar os meios escolhidos pelo filósofo para conviver com estas circunstâncias, que se faziam presentes em sua vida. No decorrer do capítulo, também faremos uma análise dos meios prejudiciais ao corpo, que segundo Nietzsche, eram utilizados pelos doentes que não tinham força para sustentar as adversidades da vida. Ao mesmo tempo, discorreremos sobre o papel da linguagem e da consciência sobre o corpo e, qual o conceito atribuído a este pelo filósofo; traremos à baila, ainda, uma perspectiva da compreensão de fisiologia dentro dos escritos do autor.

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CAPÍTULO I: O INDIVIDUAL E O COLETIVO NO CASO DA DECADÊNCIA

1. A PERCEPÇÃO DE SÓCRATES

A doença fisiológica, segundo Nietzsche, nada mais é do que uma décadence1 dos instintos. Esta queda dos instintos, na perspectiva de Nietzsche, deve ser entendida como uma falta de ordem entre os instintos, falta de hierarquia. Entre os instintos deve haver uma hierarquia, uma ordem. Quando não há mais essa ordem, aí se mostra uma fraqueza fisiológica. Deve haver uma ordem, aqueles instintos que devem obedecer e aquele que deve mandar, todos devem trabalhar em harmonia para o bem-estar do corpo. Os instintos não podem trabalhar de forma anárquica.

O processo da décadence dos instintos do homem não é algo específico de uma determinada época, é um processo que se arrasta ao longo da história, mas sem ser percebido. Os instintos estavam em guerra entre si, fora de controle. Com os instintos em desarmonia, o indivíduo não consegue conviver bem com os seus desejos, não consegue orientar suas ações, caminhando, assim, para a sua própria destruição. Coube esse papel a Sócrates, segundo a leitura de Nietzsche, como um tipo de decadente, no qual os instintos se manifestavam de uma forma anárquica mais forte; percebendo o que acontecia ao seu redor, onde, não só ele, mas todos os habitantes de Atenas padeciam do mesmo mal; os instintos estavam travando um combate entre eles que levaria os indivíduos à destruição. Sócrates teve a astúcia de tentar encontrar uma cura para o mal do qual padecia a população de Atenas. Então, foi feita a opção pela "absurda racionalidade", embora, segundo Nietzsche, não houvesse outra alternativa. "Entoces se adivinó que la racionalidad era salvadora, ni Sócrates ni sus << enfermos>> eram libres de ser racionales, - era de rigueur [de rigor], era su último remedio" (Nietzsche,

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2013, p. 59)2. Na percepção de Nietzsche, a tentativa de Sócrates foi algo

desesperador que o levou a depositar toda confiança na absurda racionalidade como o único meio de dominar os instintos.

Confiar na razão como o único meio de sair da décadence, tentar, por meio dela, colocar freios aos instintos, tentando domá-los, inibi-los, é no entender de Nietzsche, apenas uma outra faceta da décadence. No seu entender, os instintos não são algo que se possa controlar, ou que permitam se deixar organizar de forma racional, estão para além do domínio racional. Na tentativa de controlar os instintos, é explicitado um princípio de décadence, sendo a razão o meio usado para esse fim, logo, se tem um efeito da décadence (extrema racionalidade), tentando combater a decadência (desordem) dos instintos.

Sair dela está fora de suas forças: o que elegem como meio, como salvação, é apenas mais uma expressão de décadence - eles mudam sua expressão, mas não a eliminam. Sócrates foi um mal-entendido: toda a moral do aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido... A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos, foi ela mesma apenas uma doença, uma outra doença - e de modo algum um caminho de volta à "virtude", à "saúde", à "felicidade... Ter de combater os instintos - eis a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto.(Nietzsche, 2006, p.22).

Embora veja em Sócrates um "homem sábio", Nietzsche não caracteriza sua fraqueza, sua décadence. Talvez, justamente na sabedoria de Sócrates, que é fruto de valores racionais, seria onde estaria acentuado mais forte o seu declínio. A partir do momento em que Sócrates ganha cada vez mais espaço na sociedade Grega, aumenta também a décadence, já que os valores defendidos por este são tidos como guia por esta sociedade. Com ele, Sócrates, a razão tem cada vez mais espaço. A racionalidade que é parte de um todo, passa a julgar o todo, a vida entra em critérios valorativos. Em Sócrates e Platão, que são descritos por Nietzsche no caso Sócrates, em Crepúsculo dos Ídolos (aforismo 2), como os mais sábios dos homens, são diagnosticados sintomas de fraqueza perante a vida; são eles os responsáveis pelo olhar negativo perante a vida. Na perspectiva do autor, a vida não se permite subjugações de valores, ela não pende para lugar algum. A leitura que se faz dela é apenas um meio limitado encontrado pelo homem para amenizar o seu desespero diante da existência. Ao colocá-la sobre critérios de valores, já não é mais ela que está se manifestando,

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mas perspectivas de valores que trazem consigo interesses, sejam eles individuais ou coletivos. Na ótica do autor, a vida não tem um valor em si mesma, se tivesse, deixaria de ser o que é, movimento. Talvez, colocar juízos de valor diante da vida tenha sido o grande erro, o maior sinal de decadência daqueles que eram tidos como sábios (Sócrates e Platão), essa seria a suspeita levantada por Nietzsche.

Ese consensus sapientium ( consenso de los saios) - esto he ido comprendiéndolo cada vez melor- lo que coincidían: prueba, antes bien, que ellos mismos, esos sapientísimos, coincidían fisiológicamente en algo, para adoptar - para tener que adoptar- una misma actitud negativa frente a la vida. Los juicios, los juicios da valor sobre la vida, en favor o en contra, no pueden, en definitiva, ser verdaderos nunca: únicamente tienen valor como síntomas, únicamente importa como síntomas, - en si tales juicios son estupideces. Hay que alargar del todo los dedos hacia ella y hacer el intento de agarrar esta sorprendente finesse (finura), que el valor de la vida no puede ser tasado. No por un vivente, porque éste es parte, es más, incluso objeto de litigio, e no juez; no por un muerto, por una razón distinta (Nietzsche, 2013, p.54-55).

O que Nietzsche quer mostrar ao retratar a singularidade de Sócrates, é o evento da desvalorização da vida. Na figura de Sócrates, é permitido ao autor, ampliar o seu diagnóstico de um processo histórico que sempre descaracterizou a vida. O que o filósofo explicita, é a leitura que se fez da vida, até então, isto é, o que se esconde nas bases da construção do que venha ser o entendimento de vida. Levando em conta que as avaliações que predominaram a respeito da vida foram aquelas de pessoas tidas como sabias; Nietzsche parece querer colocar em questionamento, justamente o juízo que os considerados sábios construíram no que tange ao entendimento da vida. "Em todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada" (Nietzsche, 2006, p.17).

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ele ganhasse destaque. "Não é apenas nos modernos que o filósofo deve poder constatar os fenômenos psicológicos, e por fim o fisiológicos, de um declínio. A própria filosofia já está, desde Sócrates, na via da perversão" (Müller-Lauter, Cadernos Nietzsche, n° 6, 1999, p. 18).

O que Nietzsche traz à baila para refletir, é uma questão que está para além de Sócrates, algo que se arrastava por gerações inteiras. O que ocorreu foi, que em Sócrates, isso ganhou uma dimensão mais extrema. Nietzsche está falando de uma doença que se apoderou do homem, o cansaço diante vida, o homem se encontra em declínio. Ao entediar da vida, o indivíduo se volta contra ela. A falta de vontade para viver toma conta do homem por inteiro, o que ele produz ratifica esse cansaço. O ímpeto pela vida, cai, o que se manifesta a partir de então, traz em si esse desânimo diante da vida. Na concepção de Nietzsche, a produção dos chamados sábios é um efeito desse desânimo de viver, sendo Sócrates um deles. Só que em Sócrates, essa sabedoria é elevada3, não é

qualquer sabedoria, Nietzsche a coloca como uma "sabedoria travessa" (Nietzsche, 2008 b, p. 210).

Sócrates é colocado por Nietzsche como "o mais sábio dos tagarelas"4. Parece existir, por parte do autor também uma "admiração" sarcástica pela figura de Sócrates. Esse admirar, passa pelo poder de persuasão que Sócrates exercia sobre os jovens de Atenas. Ao dizer que Sócrates tagarelava pelas ruas de Atenas, Nietzsche deixa transparecer que as palavras, usadas por este, eram vazias de sentido diante da vida. Através das palavras de Sócrates, o que se transmite é o tédio pela vida. Sócrates não conseguiu manter sua máscara até o final, nos instantes finais de sua vida, ele externou o que pensava sobre a vida, "algo lhe soltou a língua naquele instante e ele disse: 'Ó Críton, devo um galo a Asclépio'. Essa ridícula e terrível 'última palavra' significa, para aquele que tem ouvidos: 'Ó Críton, a vida é uma doença! "5.

Ao mencionar o nome de Asclépio, Sócrates estaria atribuindo causas exteriores à vida para a própria vida, a ocorrência de certos eventos, que não sejam a própria dinâmica da vida que os conduza. Ele admite outra instância superior, que não seja a própria vida. Nesse jogo de palavras, nas quais Sócrates

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"Sócrates aparece no Crepúsculo dos ídolos como o representante do cansaço vital dos mais sábios de todos os tempo" (Müller-Lauter, Cadernos Nietzsche, n° 6, 1999, p. 19).

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Nietzsche, Friedrich. A Gaia Ciência In: Obras Incompletas, P. 208.

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se manifesta de uma forma, digamos, diferente, Nietzsche nota algo estranho, suspeito no seu comportamento. " Será possível! Um homem como ele, que viveu sereno e diante de todos os olhos como soldado - era pessimista !"6.

Sócrates, tido por Nietzsche, ironicamente, como o maior dos sábios, teria maquiado de forma convincente o que ele realmente pensava da vida. Não deixava transparecer sua objeção diante dela. Nietzsche suspeita do comportamento de Sócrates, o vê como algo belicoso para a vida, que no último instante dela, resolveu descaracterizá-la. O autor dá entender que Sócrates foi uma farsa bem sucedida, que soube esconder, até o fim da vida, sua concepção a respeito desta. Talvez, seja por isso, que Nietzsche o considera o mais sábio entre aqueles que são tidos como sábios. "Ele havia, justamente, apenas feito uma cara boa para a vida e escondido a vida inteira seu juízo último, seu sentimento mais íntimo! Sócrates, Sócrates sofreu com a vida!"7.

Sócrates se diferencia por criar artimanhas diferentes. A astúcia deste fez com que ele ganhasse destaque no meio de tantos doentes que dividiam o mesmo espaço "histórico". Os homens se encontravam doentes, não conseguiam administrar seus instintos, estavam em declínio constante, caminhando para o autoaniquilamento. Então, ao perceber tal situação, Sócrates desenvolve artimanhas por vias racionais, que são capazes de extirpar a força dos instintos. Ele aguça o poder da razão, ela se torna o meio pelo qual os instintos vão sendo definhados cada vez mais. A luta entre eles, e o comando que os eleva, tende a cessar. "A razão que se expande anômala luta contra os instintos e os enfraquece" (Müller-Lauter, cadernos Nietzsche, n°6, 1999, p. 19).

Os instintos, em Sócrates, exercem um tipo diferente de criação. Eles não criam meios que valorizam a vida, que a afirmam, mas fazem o processo inverso. Os instintos, no caso de Sócrates, procuram enfraquecer a vida. Torna-se interessante o pressentimento de Sócrates diante dos "fatos" que ocorriam em Atenas. Os instintos que predominavam nele, eram instintos que se voltavam contra os instintos mais fortes, isto é, contra aqueles que afirmam a vida. Talvez, nem se possa dizer que há uma mutação dos instintos em Sócrates, mas sim, que uma nova ordem instintiva se instalou no indivíduo Sócrates, no qual os instintos de décadence dominavam. Embora esse fenômeno abrangesse toda a

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Ibid.

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"sociedade" em que Sócrates habitava, nele foi diferente, nele foi um adivinhar que agiu, Sócrates, segundo Nietzsche, é o diferencial na história do declínio do homem. "Mas Sócrates adivinhou mais ainda"8.

No entender do filósofo, Sócrates parece ter sido aquele que mais entendeu o que se passava com a Atenas da época. Para que o homem não fosse destruído pela desordem instintiva em que se encontrava, ele teria que se submeter ao julgo da razão. Esta foi uma percepção e, ao mesmo tempo, a artimanha criada por Sócrates, que ganhou espaço em meio a Atenas que se encontrava doente; foi a melhor solução encontrada e, o socratismo , uma suposta solução para a décadence. Sócrates faz com que o homem veja em si, ou melhor, nos instintos que fazem parte de sua constituição, a causa da sua doença. Então, estes terão de ser submetidos a outras instâncias, caso o homem queira se preservar, nesse caso, esse se submeter a outras instâncias, seria se deixar regular pela da razão. "Razão= virtude= felicidade significa tão-só: é preciso imitar Sócrates e instaurar permanentemente, contra os desejos obscuros, uma luzdiurna - a luz diurna da razão"(Nietzsche, 2006, p. 22).

Em meio as nuances da vida, nas quais o acaso dá as cartas, Sócrates cria mecanismos racionais que exerçam supremacia diante do acaso, para controlar os impulsos instintivos e, submetê-los ao controle da absurda racionalidade, isso parece exercer um encantamento muito forte sobre o homem que se vê jogado às mazelas da existência. Parece-nos ser o que Nietzsche dá a entender, quando manifesta sua suspeita em relação aos meios criados por Sócrates. Esses meios seriam bem mais atraentes do que outros, já que dão poder absoluto à razão. Na ótica de Nietzsche, se for levar em conta certas necessidades, os meios socráticos seriam mais úteis do que certas normas, por exemplo. "Se tudo ocorrer bem, virá o tempo em que as pessoas, para se desenvolver moral e intelectualmente, preferirão ter os memorabilia de Sócrates do que a Bíblia" (Nietzsche, 2008 b, p. 209).

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2. Negação da vida: um problema de digestão

Nietzsche traz para a sua reflexão filosófica uma abordagem renovadora, colocando o indivíduo, e suas necessidades, como centro da sua reflexão filosófica, isto fica mais forte quando algumas questões são levantadas: por que um determinado indivíduo tem certas preferências? essas preferências são só uma questão de escolha?. Ao refletir sobre a vida, tendo presente suas várias facetas, o autor observa as escolhas do indivíduo, e o que está presente em cada escolha feita. Segundo o autor, ao optar por uma coisa em vez de outra, o homem demonstra sua fraqueza ou sua força. Isso fica mais evidente diante dos momentos desfavoráveis da vida, onde o homem se encontra sem respostas diante dos acontecimentos, em especial, diante do sofrimento. "O que, com efeito, caracteriza a força é o fato de que o sofrimento não seja considerado como um problema ou, mais precisamente, que não seja condenado em razão de seu caráter problemático" (Wotling, 2013, p.178). No sofrimento, que é a situação de extremos na vida, o homem deixa transparecer o que realmente rege as suas opções, se é a fraqueza ou a força.

No indivíduo fraco, não só em situações extremas suas escolhas são guiadas pela fraqueza, mas também nas opções simples, do dia a dia. Em situações, onde as opções feitas por um determinado indivíduo demonstram sua fraqueza diante da vida, fica claro sua dificuldade em assimilar as vivências da experiência existencial. Nietzsche usa a metáfora do estômago, para explicitar essa dificuldade que o homem tem em aceitar a vida como ela "é", com todas as suas contrariedades. Segundo o autor, há dificuldades para alguns indivíduos em digerir os acontecimentos do acaso da vida. Para descrever os dois lados, tanto daqueles que sabem digerir os acontecimentos da sua existência, quanto dos que têm um estômago doente, que não sabem fazer uma boa digestão, Nietzsche usa como analogia a concepção de vida dos estoicos e dos epicuristas.

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O saber digerir os percalços da vida, na perspectiva do autor, evidencia a força, a boa saúde de um corpo. Para descrever esta concepção, e como já dissemos, Nietzsche usa como metáfora, o papel desempenhado pelo estômago, localiza onde ocorre a seletividade, a retirada dos nutrientes contidos nos alimentos, necessários para o bom desempenho das atividades do corpo. Nisso consiste a saúde de um organismo saudável. A boa saúde de um corpo consiste na sua boa assimilação, aceitação, aprovação da vida como ela se mostra, sabendo retirar da experiência vivida, mesmo nas adversidades, e os nutrientes precisos para a vida, sem negá-las.

Se o forte dá conta de suas experiências e chega a assimilá-las para aumentar sua potência, pelo contrário, o idealismo, enquanto recusa da realidade e produção de entidades imaginárias ( a verdade, o "mundo verdadeiro"), é o sinal de uma disfunção do corpo, sobretudo, de um enfraquecimento de sua capacidade de digestão da aparência (Wotling, 2013, P. 139).

Nietzsche vê, na figura do indivíduo que tem uma repulsa à vida, fadiga em viver, rejeição perante as adversidades da existência, no desânimo diante daquilo que é oferecido pela vida, sintomas de uma doença, uma disfunção estomacal, uma má digestão dos "fatos", isto é, trata-se do indivíduo que não tem um estômago que consiga fazer uma digestão produtiva, que seja capaz de extrair das condições impostas pelo acaso, um prazer que valorize a vida. Segundo o filósofo, todas as experiências vividas, independente do que elas proporcionam ao vivente, seja uma experiência de dor ou prazer, devem ser avaliadas, filtradas, direcionadas e afirmadas. "A vida é um nascente de prazer: mas em quem fala o estômago estragado, o pai da atribulação, para este todas as fontes estão envenenadas"9.

Embora um estômago saudável seja capaz de digerir qualquer tipo de alimento, Nietzsche prega cautela para se ter uma boa alimentação. O escolher uma boa alimentação demonstra seletividade e a preferência por determinados alimentos é sinal de sabedoria. Ao preferir um tipo de comida, um estômago está dizendo não a um outro tipo, isso é prudência com a sua alimentação. "Conhecer: este é o prazer daquele que tem vontade de leão! Mas quem se cansou, esse é apenas 'querido', com ele jogam todas as ondas"10. O dizer "não

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Nietzsche, Friedrich. Assim Falou Zarat ustra. In: Obras Incompletas, p. 251.

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a determinados alimentos", também evidencia a boa desenvoltura digestiva de um estômago. Embora ele não negue a importância de certos alimentos, ele escolhe não consumi-los. "Porque eles [os cansados do mundo... e os pregadores da morte] aprenderam mal, e não o melhor, e tudo cedo demais e tudo depressa demais: porque eles comeram mal, por isso veio-lhes esse estômago estragado"11.

Ao colocar a má digestão dos eventos da vida pelo estômago como uma doença, Nietzsche interliga esse procedimento à doença do espírito no que tange à má digestão do processo cultural por este mesmo espírito12. Ambos estão de

mãos dadas, estômago e espírito, há uma comunicação entre espírito e estômago. As interpretações dos eventos da existência passam pelo viés do espírito. Um espírito que não consegue se libertar do mal hábito de assimilar o novo ao velho, também demonstra uma dificuldade em digerir com eficácia, o acúmulo de legados deixados pela cultura. O autor parece não querer diferenciar o trabalho digestivo do espírito e o do estômago. O espírito é uma retenção de experiências culturais, que atinge o parâmetro individual e coletivo. Um estômago particular consulta o espírito, que é singular, mas também plural, para digerir um evento privado. Se o espírito se encontra doente, consequentemente, o estômago padece da mesma mazela, "um estômago estragado, sim, é seu espírito: é ele que aconselha a morte! Pois em verdade, meus irmãos, o espírito é um estômago"13.

A digestão, a boa digestão, que na ótica de Nietzsche, é sinônimo da boa saúde, passa pelo viés da aceitação da vida como ela vem ao nosso encontro, afirmando a existência. Na concepção do filósofo, digerir bem a existência, não se resume somente ao desenvolvimento de capacidades que deixem o indivíduo apto a conviver com o novo, ou com as obras do acaso que a vida traz no seu fluxo de novidades. Além de saber digerir o novo, o imprevisível, o indesejável, Nietzsche discorre sobre outro tipo de digestão, que exige do homem um rompimento com o passado, com o presente, e talvez, até consigo mesmo.

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Ibid.

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O conceito de espírito não remet e à razão tal como pensa o dualismo met afísico. M uito mais que por oposição aos sentidos, é por oposição à est upidez, à ausência de fineza, à obstinação cega que ele se define (...). A análise do espírito remet e, assim, ao processo de busca pela dominação que constitui toda a história da cultura ( Wotling, 2013, p.253).

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Trata-se da capacidade de saber digerir o aglomerado de valores que a consciência acumulou ao longo da história humana, ou seja, saber esquecer o que atrapalha o homem para viver a sua existência, viver sem se sentir pressionado a escolher o que não lhe faz bem. Isto é sinal de saúde, de escolha. "Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido" (Nietzsche, 1987, p. 57).

Um sinal da falta de saúde, para Nietzsche, se encontra na incapacidade de esquecer, pois o esquecer, também se faz necessário ao indivíduo que deseja ser saudável. A memória, pelo fato de ficar retida ao passado, tende a filtrar o presente através deste. Nesse aspecto, a memória, na concepção do autor, é sinônimo de falta de saúde. A memória neutraliza a ação no presente. Além disso, o processo de construção da memória, na ótica do autor, foi algo totalmente desumano, pois, para atingir o propósito que se queria, de domesticação do homem, fazer com que o animal homem desenvolva a capacidade de criar memória, era fundamental. "Gravar-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória - eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra" (Nietzsche, 1987, p.61). A capacidade de retenção desenvolvida pelo homem, traz em si, o caráter de um animal que foi domesticado para obedecer, para ser escravo. Ter memória é julgar, descaracterizar a vida. O fato de saber esquecer, é sinal de quem sabe digerir o passado, exercer o esquecimento sobre a consciência, que foi condicionada a se condenar através de valores que aprisionam o homem, que servem de jaula para aprisioná-lo14.

Quando fala do desenvolvimento da memória como doença, Nietzsche parece falar de uma doença psicológica. Psicologicamente, o homem parece ter adquirido doenças profundas, ele se encontra profundamente enfermo. Ele deixa de ser um animal saudável, abandonando o seu estado "bruto", para se tornar um animal dócil, conduzido a fazer algo que não faz parte do seu estado de natureza, ele adquire memória, se torna refém dela, aprende a fazer promessas. Com isso, ele trai a si mesmo, impõe limitações a sua natureza, à sua liberdade.

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Por isso, a atuação do esquecimento sobre a consciência, se torna fundamental para o restabelecimento do estado de inocência do homem. O desenvolvimento da capacidade de esquecer, faria com que o indivíduo voltasse a ser livre. Isso mostraria que a sua sanidade psicológica foi restaurada. Na capacidade de esquecer consiste uma boa digestão psicológica, fazendo com que o homem retorne ao seu estado "natural", não sendo mais condicionado por uma consciência que infrinja o seu estado de natureza, "eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica" (Nietzsche, 1987, p. 58). O mais alto que o homem atinge é sua capacidade de fazer promessas.

3. OS REMÉDIOS CONTRA A VIDA: O DESESPERO DE SÓCRATES

Ao falar do contexto vivido em Atenas, Nietzsche traz à tona o que se passava com os atenienses, que se viam em um cenário de total desordem, no qual o indivíduo estava em guerra consigo mesmo, pois não estava conseguindo conviver com seus instintos. Em um espaço onde o indivíduo não consegue direcionar sua força instintiva, o caos será ordem vigente. A desordem entre os instintos parece ter ficado mais aflorada entre os atenienses, já que esse fenômeno era uma decorrência que se arrastava há muito tempo. Essa desordem entre os instintos estava ficando cada vez mais visível, era um fenômeno que já se encontrava presente em Atenas, mas não tinha se manifestado de forma tão forte, quanto no habitante tido como o mais sábio dos tagarelas, como diz Nietzsche, no aforismo 340, de A Gaia Ciência15, que no caso, é Sócrates.

Por ser o mais atingido por essa doença, Sócrates não viu outra saída a não ser criar métodos que pudessem curar os atenienses, em particular, a sua situação, que era a mais agravante, pois, "seu caso era, no fundo, apenas o caso extremo" (Nietzsche, 2006, p. 21). Sendo um caso extremo, no qual todos os apetites se encontravam desorientados, Sócrates percebe que tinha de agir para não sucumbir. Já que ele não conseguia conviver com seus instintos, preferiu extirpá-los. No ato de renegá-los, Sócrates procurava encontrar culpados pela sua

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doença. Esta foi a solução encontrada por Sócrates, "Hay que ser inteligentes, claros, lúcidos a cualquer precio: toda conceción a los instintos, a lo inconsciente, conduce haciaabajo" (Nietzsche, 2013, p. 60).

O remédio encontrado por Sócrates, para atingir os seus fins, foi a crença na razão. Usar a razão para suprimir os instintos; depositando todas as fichas na razão, Sócrates se torna escravo da razão, em vez de encontrar uma solução que o curasse, Sócrates se tornou mais doente, assim, Nietzsche caracteriza a alternativa buscada por Sócrates. No entender do filósofo, foi uma busca desesperada, que agravou ainda mais a situação. " La luz diurna más deslumbrante, la racionalidade a cualquier precio, la vida lúcida, fría, previsora, consciente, sin instinto, opuesta a los instintos, todo esto era sólo una enfermedad distinta - y en modo alguno un camino de regreso a la << virtud>>, a la <<salud>>, a la felicidad" (Nietzsche, 2013, p. 60).

O que Nietzsche percebe em Sócrates é um agravamento da doença. Sócrates se põe contra a vida, usa a razão como meio para negar a vida, para desvalorizá-la. Na luta contra a vida, Sócrates procura neutralizar aquilo que gera vida, vigor, isto é, a força instintiva. A falta de vontade de viver, o medo, a apatia para com a vida, o cansaço, falou mais forte em Sócrates. Nietzsche coloca o comportamento de Sócrates, diante da vida, como métodos de décadence. " Ter de combater os instintos - eis a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto" (Nietzsche, 2006, p. 22).

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entender com o que Sócrates fascinava: ele parecia ser um médico, um salvador"16.

No entender de Nietzsche, o médico Sócrates, criou anestésicos ludibriadores, que não eram capazes de neutralizar o curso natural da vida. A dinamização da vida segue seu curso normal, mesmo com os doentes a colocando como culpada pela fraqueza que abate seus corpos cansados de lutar, isso ocorre pela falta de saúde para afirmar os instintos que lutam no interior do corpo. Na tentativa de neutralizar a força, Sócrates apenas camuflou o processo de uma doença que se espalhava por todo corpo. Ao suprimir a força dos instintos, mostra ainda mais a fraqueza, a degeneração do homem, este, fica cada vez mais doente. "Sócrates é um médico, que só cura em aparência. Seus meios apenas protelam a decadência" (Müller-Lauter, Cadernos Nietzsche, n°. 6, 1999, p. 19).

No desdobrar dos artifícios criados por Sócrates, Nietzsche destaca a forma sorrateira com que age a razão no processo criado pelo primeiro. A razão procura criar meios que convençam os instintos, que eles precisam do auxílio salvador dela. Aqui, há um debruçar-se da razão sobre a própria razão, em que esta procura se autoconvencer e, no mesmo instante, convencer os instintos, que eles são uma probabilidade de autodestruição para o homem e, tendo como único jeito de evitar tal potencialidade, deixarem ser guiados por ela. Ao que parece, Sócrates usa a razão para criar armadilhas que prendam os instintos, isto é, que os neutralizem. Tal tentativa, aparentemente17, parece ter curado a doença de

Sócrates e, dos que o circundavam, segundo Nietzsche, só aparentemente.

Para que, perguntou a si mesmo, abandonar por isso os instintos? É preciso lhes fazer justiça, a eles e também à razão - é preciso acompanhar os instintos, mas convencer a razão a ajudá-los com bons motivos. Tal foi a genuína falsidade desse grande irônico rico em mistérios (Nietzsche, 1992, p. 191)

O propósito de Sócrates, usando do auxílio da razão para atingi-lo, era criar um sentido, ou uma explicação racional, para aquilo que o homem não tem sob o seu controle, os instintos, as vidas que brotam dentro de si, sem pedir licença, agindo com plena autonomia, provocando desespero, desestabilizando os fracos que não aprenderam a conviver consigo mesmos, por inteiro, "a

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Nietzsche, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. In: Obras Incompletas, p. 330.

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superestimação da razão é, portanto, ainda um narcótico, estendendo o sofrimento graças a uma explicação, enquanto falta a força que permitiria interpretá-lo diretamente" (Wotling, 2013, p. 191).

Viver, para Sócrates, se tornou sinônimo de sofrimento. Percebendo que não era o único a padecer desse tipo de doença, ele encontrou adeptos que comungavam da sua concepção do que representava viver. Não aceitando a vida, as condições intrínsecas da existência, Sócrates entendeu o que deveria fazer para se vingar. Ele inverte o curso da vida, o erro não se encontra naquele que não aceita a vida como ela se apresenta, mas está na vida que não se apresenta como o indivíduo desejava que ela se apresentasse. A vida passa a ser culpada pelo sofrimento que o próprio indivíduo originou. Sofrimento este, que brota da falta de afirmação do homem em prol da própria vida e, das facetas que esta manifesta no seu devir. "Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche se dedica ao problema da razão mostrando que a racionalidade resulta de uma negação socrática da vida "(Mosé, 2011, p. 140).

A questão da negatividade diante da vida, Nietzsche a destaca como herança de um processo, mas tendo Sócrates como figura símbolo, pois, este, por ser o caso mais grave, entendia bem o que estava ocorrendo e, "entendeu que todo o mundo necessitava dele"18. O que se esconde por trás dessa doença

histórica; pois no entender do filósofo, negar a vida é uma doença, passa por um viés sutil, que já é o efeito de uma doença interna, que ocorre no indivíduo, esta é a suspeita levantada por Nietzsche, que vê no ato de maldizer a vida, o efeito de uma desordem instintiva do indivíduo. Nietzsche fala de um problema fisiológico, no qual os instintos se encontram doentes, em constante declínio. Em Sócrates, a desordem, que já é a manifestação de uma queda fisiológica, era mais visível. Essa situação de Sócrates, é retratada por Nietzsche, em Crepúsculo dos Ídolos, no aforismo 919.

Sobre a gravidade da doença de Sócrates, Nietzsche esboça a seriedade do caso, ao relatar o diagnóstico feito por um fisionomista, quando este, encontra com Sócrates. "Quando aquele fisionomista revelara a Sócrates quem ele era, um antro de maus apetites, o grande ironista deixou escapar uma palavra que dá para entendê-lo. Isso é verdade, disse ele, mas eu me tornei senhor sobre todos

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Nietzsche, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. In: Obras Incompletas, p. 330.

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eles"20. Nesse relato, fica manifesto a desordem que estava instalada em

Sócrates, em que os instintos, desejos, não tinham direção, um comando. Os processos fisiológicos em Sócrates, não funcionavam, havia uma falta de hierarquia entre os instintos, o reflexo da falta de ordem transpareceram no desprezo que este tinha pela vida. "Trata-se de uma forma particular dos 'desencadeamentos de forças' fisiológicas. As vontades de potência, antes mantidas em unidade, aspiram a separar-se. Nietzsche descreve essa aspiração a separar-se como desagregação dos instintos" (Müller-Lauter, 2009, p. 126-127). Sócrates não tinha forças para direcionar seus apetites, por isso, se agarrou a razão como meio de segurança. A falta de ordenação dos instintos que habitavam em Sócrates, mostra sua fraqueza diante da vida. Esses aspectos de desordem, Nietzsche os entende como uma desagregação dos instintos que, em um indivíduo saudável, se mantém em ordem, trabalham em conjunto. Como se percebe, este não era o caso de Sócrates. Por isso, o filósofo o coloca como um decadente, que nega seus instintos, por não ter forças para afirmá-los. "A violência, conseqüência da incapacidade para resistir a uma solicitação é, pois, o sintoma mais evidente da fraqueza. O diagnóstico de Nietzsche para o caso de Sócrates é típico dessa situação. A supervalorização da razão é tão somente o indício de uma vontade fraca " (Wotling, 2013, p. 173).

4. O corpo como uma hierarquia política

Nietzsche entende o bom funcionamento do corpo como um jogo político, onde há instintos mais fortes e instintos mais fracos, uma aristocracia, na qual há instintos que mandam e instintos que obedecem. Para o bom funcionamento do corpo, essa hierarquia, na concepção do autor, se faz necessária."Não apenas a anarquia e o desregramento confesso dos instintos para a décadence em Sócrates" ( Nietzsche, 2006, p. 19). Segundo o autor, esses fatores seriam os sinais da doença de Sócrates, que ele considera como aquele que percebe por primeiro a doença que atingia a população de Atenas. "Mas Sócrates instituiu algo mais. Ele enxergou por trás de seus nobres atenienses; entendeu que seu próprio caso, sua idiossincrasia de caso já não era exceção" (Nietzsche, 2006, p. 21).

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Nietzsche usa o exemplo de Sócrates, para enfatizar à importância de uma hierarquização no que diz respeito aos instintos, para o bom desempenho do corpo, mas também para explicitar quem primeiro percebeu a doença que atingia o homem. O homem sofria da anarquia dos instintos, não havia quem mandava nem quem obedecia. Assim, o indivíduo estava sendo levado ao suicídio, por falta de acordo entre os instintos. "Em toda parte os instintos estavam em anarquia; em toda parte se estava a poucos passos do excesso: o monstrum in animo era o perigo geral". (Nietzsche, 2006, p. 21).

Na desorganização dos instintos, se demonstra a fraqueza de um corpo, sua debilidade, sua doença, que precisa urgentemente de um comando forte que possa dominar e instruir os instintos que estão em anarquia, para assim, restabelecer a boa saúde do corpo. Quando o indivíduo não tem força para controlar os seus instintos mais potentes21, ele cria algo externo que possa

exercer essa função, pois ele necessita de algo que mande, ele precisa obedecer, pois do contrário, ele não resistirá à força instintiva que pode levá-lo ao "suicídio". Por isso, a relação aristocrática entre os instintos deve ser instalada rapidamente. O fato de não saber conviver com os seus instintos, na ótica de Nietzsche, manifesta a fraqueza do indivíduo, este é o indício de que ele está doente. "Incapacidade para dominar e disciplinar, a fraqueza se traduz pela escravidão a respeito dos instintos mais potentes, sendo o desequilíbrio interno o traço específico do corpo doente" (Wotling, 2013, p. 172).

Recorrendo aos conceitos políticos, aristocracia e anarquia como metáforas para descrever o que se passa com um corpo doente (anarquia) e, um corpo saudável (aristocracia), Nietzsche consegue externar o que ocorre no interior do corpo, onde as batalhas instintivas por domínio acontecem. No comportamento do individuo, em suas escolhas, na forma como ele encara a vida, irá dizer qual conceito é predominante no corpo. A saúde ou a doença, a fraqueza ou a abundância de força instintiva. A anarquia dos instintos demonstra a doença, a fraqueza, o desequilíbrio dos instintos, já a aristocracia, demonstra o autocontrole dos instintos, uma boa relação entre eles, a saúde do corpo, sua força."se se pensa o corpo a partir do modelo de uma aristocracia, descreve-se

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um corpo doente graças ao da anarquia, da dissolução de qualquer estrutura hierárquica" (Wotling, 2013, p. 170).

Entendendo o corpo como uma estrutura social, onde há hierarquias, que se encontram, indivíduos que mandam e aqueles que obedecem, pelo menos assim deve ser, para o bom andamento dela. Assim, Nietzsche entende o corpo, deve haver instintos que mandam, e outros que obedeçam. Os instintos mais fracos devem ser subservientes aos mais fortes, se sacrificarem para bom funcionamento do corpo, "pois nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas - a sua sensação de prazer como aquele que ordena. L'effet c'est moi [O efeito sou eu]: ocorre aqui o mesmo que em toda comunidade bem construída e feliz, a classe regente se identifica com êxitos da comunidade" ( Nietzsche, 1992, p.25).

Entendendo o corpo de forma múltipla, onde há uma infinidade de afetos22, cada um lutando contra os outros, Nietzsche entende que precisa de um

instinto mais forte que mande, para que assim, o corpo tenha uma harmonia. Esse consenso harmonioso entre aos instintos é concebido pelo autor, de forma aristocrata, isto é, onde há quem mande e quem obedeça. No entanto, esta harmonia é sempre provisória, pois o corpo se vê sempre em batalha instintiva. Esse parece ser o jogo, no qual a anarquia e a aristocracia caminham juntas. Os instintos perecem tender para a anarquia, mas para um corpo saudável, se faz necessário que domine a aristocracia. "O conceito de aristocracia insiste bastante sobre a caracterização do corpo como pluralidade" (Wotling, 2013, p. 136).

Faz-se necessário ressaltar que a hierarquia entre os afetos em Nietzsche confirma a saúde de um corpo, sua força, seu vigor instintivo. A hierarquia é estabelecida sempre depois de lutas entre instintos opostos, nas quais o vencido se torna subalterno do vencedor, que se torna senhor. Mas é importante frisar que um afeto que se torna senhor de outros afetos, considerados mais fracos, não tem a sua condição de supremo dominador como algo fixo, como um governador permanente. Se assim o fosse, essa perspectiva descaracterizaria o sentido de dinâmica entre os afetos que Nietzsche coloca na sua filosofia.

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Se a filosofia de Nietzsche é marcada pelo seu jogo de antagonismos23, o

seu entendimento no que tange ao jogo entre os instintos que dinamizam a vida do corpo, não poderia ser compreendido de maneira diferente. Dentro desse dinamismo antagônico entre os instintos, pode haver uma inversão de papéis, onde o fraco pode se tornar comandante, e o que comanda pode vir a ser comandado. Isto é essencial para manter a multiplicidade de vidas que há no corpo sempre em movimento. Na hierarquia, como Nietzsche a entende, embora ela deva sempre existir, não pode haver um senhor hierárquico permanente, por que se não, cessaria a vida, que consiste, justamente no seu movimento.

No pensamento de Nietzsche, quando se fala de combate, não se deve entendê-lo como sinal de morte, destruição. Pelo contrário, o filósofo entende que, um forte que aniquila um fraco, demonstra sua fraqueza, seu medo, pois ele não dá oportunidade do fraco para se tornar forte e desafiá-lo novamente para um combate. Assim, ele está aniquilando a vida, que sempre quer luta. Isso fica bem evidente quando o autor fala da batalha desempenhada pelos afetos. Um afeto mais fraco, sempre irá ter a oportunidade de lutar com quem o venceu, não há, entre eles, uma destruição, mas um acordo entre vencido e vencedor, onde o vencido entende que deve ser mandado pelo vencedor. O corpo precisa desses opostos instintivos, desse jogo permanente de hierarquias que se revezam no poder, dessa maneira, ele se mantém saudável, pleno de novas vidas.

vitória das vontades mais fortes não leva à destruição, mas a submissão das mais fracas. Produz-se uma hierarquia em que ambas se referem mutuamente, em que ambas são indispensáveis uma à outra. Vitória e hierarquia, contudo, jamais são definitivas; a luta prossegue sem cessar. Numa inversão das relações de potência, a vontade subjugada pode tornar-se vontade dominante; a vontade até agora dominante, subjugada (Muller-Lauter, 2009, p. 135).

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5. O corpo: uma multiplicidade de afetos

Quando se fala em corpo, nos escritos de Nietzsche, sempre há um risco ao abordar tal assunto. O filósofo toma cuidado para não resumi-lo como um mero conceito. Esse deveria ser o mesmo cuidado que o leitor de Nietzsche necessita ter. Tomando precauções para não definir o corpo, como por exemplo, em um conceito estático. O filósofo não o entende como algo definível, o nome corpo, não consegue abarcar o que ele seria. Ele traz consigo, uma carga de movimentos, que não se prendem a definições. Na verdade, não há linguagem que possa dizer o que é o corpo. Melhor dizendo, ele não é, ele está sempre sendo. Nietzsche fala do corpo de forma simbólica, usa de uma linguagem figurada." O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor" (Nietzsche, 2011, p.35).

Nietzsche denomina o corpo como uma unidade em meio a uma multiplicidade. Nele se encontram vivências de inúmeras "almas", em que muitas precisam morrer para dar espaço às outras. As "almas" que morrem são experiências, ou vivências, que não atendem mais às necessidades de vida do corpo. Por isso, o corpo, para Nietzsche, é um aglomerado de "almas", em que se faz necessário fazer a digestão daquilo que não é mais útil para a vida e, assim é possível dar origem a novas almas. O corpo é uma soma de multiplicidades de vidas, ele é uno enquanto um espaço que carrega uma cadeia de relações de uma vida individual, sendo ao mesmo tempo, plural. O corpo é uma organização de muitas vidas vividas, "pois nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas" (Nietzsche, 1992, p. 25).

Ao entender o corpo de forma abrangente, em que se abrigam muitas almas, caracterizando-o de forma múltipla, mas ao mesmo tempo com um contorno unitário, Nietzsche procura se afastar da dicotomia que prevalece na visão metafísica do corpo, na qual ele é composto de uma alma, e os dois são entendidos de forma dicotômica. Onde o corpo mortal é a prisão da alma imortal. Na filosofia do autor, não se encontra uma divisão entre corpo e alma, o corpo é um processo de vivência de muitas almas, "isso é o corpo". " Para Nietzsche, não há separação entre corpo e alma, espírito e matéria" (Moura, 1985, p. 85).

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separatista, que divide o corpo em várias facetas, não encontra espaço no pensar filosófico do autor. Em vez de separar o corpo, Nietzsche o une. Coloca-o como um campo de batalhas, esse campo de batalhas chama-se de "corpo". O "corpo" dentro da filosofia de Nietzsche, é uma linguagem simbólica, que se refere a uma pluralidade denominada corpo, " e "corpo", no sentido nietzschiano, supõe a ultrapassagem da distinção metafísica entre "corpo" e "alma". "corpo' é, aqui, apenas um nome que recobre, de fato, uma multiplicidade: afetos, pulsões" ( Ferraz, 2009, p.77).

Nietzsche pensa o corpo como um edifício, constituído por várias experiências e, essas experiências formam o edifício corpo. O corpo é um edifício que está em processo de construção. O filósofo compreende o corpo como algo dinâmico, flexível, sempre em mudança. Embora condicionado a mudanças, ele já traz consigo, muitas marcas, estas o constituem. Este constituir deve ser compreendido de forma perene, que já tem um acúmulo em si, que por um momento pode ser entendido, mas tão logo que isso ocorre, este entendimento já não vale mais. O entendimento que se pode alcançar de um determinado corpo, é fugaz devido ao fluxo de mudança, que o constitui. Nietzsche entende não ser possível abarcar, racionalmente, uma tal multiplicidade de vidas, de vivências. "Subjaz à consciência habitualmente pensada como única' a variedade incontável de vivências das 'múltiplas consciências', como Nietzsche expõe em vista da 'imensa unificação de seres vivos' que constitui o corpo humano"(Muller-Lauter, 2009, p. 60).

6. Conhecimento: uma má interpretação do corpo

Um psicólogo conhece poucas questões tão atraentes quanto a da relação entre saúde e filosofia, e para o caso, em que ele próprio ficar doente, ele traz toda a sua curiosidade científica consigo para a sua doença. Ou seja, pressuposto que se é uma pessoa: no entanto, há uma diferença relevante. Em um são suas lacunas que filosofam, em outro suas riquezas e forças. O primeiro necessita de sua filosofia, seja como amparo, tranqüilizante, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si; neste último, ela é apenas um belo luxo, no melhor dos casos a volúpia de uma gratidão triunfante, que acaba tendo ainda de se inscrever em maiúsculas cósmicas no céu dos conceitos. No outro caso, porém, o mais habitual, quando são os estados de indigência que fazem filosofia, como em todos os pensadores doentes - e talvez preponderem os pensadores doentes na história da filosofia - : o que será do pensamento mesmo, que é posto sobre a pressão da doença?24.

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Efeitos de doença, no entender de Nietzsche, não se encontram somente no âmbito físico, mas também nas produções intelectuais e científicas. No entender do autor, nesses âmbitos de produção, também se mostra o estado de saúde de quem fala, por trás de uma determinada forma de pensar, pode estar escondida a saúde ou a doença. Em uma vertente filosófica ou científica, manifesta-se também se é alguém saudável ou doente que fala através dela. Ao ficar doente fisicamente, o indivíduo corre o risco, pela enfermidade física, de "infeccionar" a sua forma de entender a vida. A sua concepção de filosofia pode passar a ser uma teoria de autoconforto, na tentativa de enganar a si mesmo diante da "realidade" da vida, isto é da sua própria "realidade". A sua filosofia se torna prenhe de conceitos vazios.

Na investigação, para saber que tipo de saúde fala, através de uma determinada forma de filosofia, de conhecimento, Nietzsche insere o psicólogo. Esse psicólogo seria aquele que investiga que tipo de saúde se encontra atrás do véu da filosofia, qual seria a influência que a doença exerceria sobre aquele que filosofa. Esse psicólogo, assim entendido por Nietzsche25, está longe da compreensão de psicólogo que se teve até então. No seu entender, o psicólogo deve ser capaz de descobrir o que está por trás dos valores, dos sentimentos que brotam da alma humana, como se originaram esses sentimentos, que influências eles sofreram. Na filosofia, para Nietzsche, não teria existido tal psicologia, aliás. "Quem, entre os filósofos, foi antes de mim psicólogo, e não seu oposto, 'superior embusteiro', 'idealista'? Antes de mim não havia absolutamente psicologia" (Nietzsche, 2008 a, p.106).

O papel do psicólogo, é colocar em dúvida todo o conhecimento filosófico que foi tido até então como certo, verdadeiro, inquestionável. Ele precisa duvidar até mesmo da sua própria filosofia. Pois a filosofia que carrega pressupostos de verdades inquestionáveis se encontra enferma, porém não admite que está doente. Diferentemente, o filopsicólogo, sim é capaz de reconhecer a sua própria doença. Os filósofos não tiveram essa sensibilidade instintiva, não se recuperaram da sua doença. A filosofia, nessa perspectiva, tornou-se uma espécie de anestesia, uma letargia, que impede os filósofos de perceberem a sua doença. É a falta de saúde que se manifesta como filosofia. Os filósofos não

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conseguem se desvencilhar da doença que os cerca, eles se encontram em um sono profundo, não têm um instinto aguçado o suficiente para libertá-los do Morfeu da filosofia, " assim,nós filósofos, suposto que ficamos doentes, nos entregamos de corpo e alma à doença - como que fechamos os olhos a nós"26. O fato de Nietzsche perceber que estava doente e, que se recuperou, que se encontra novamente com saúde, demonstra também que a sua filosofia passou por um processo de transmutação, de investigação, que se encontra mais saudável, que não é mais um doente, ou a falta de saúde que filosofa, mas a saúde, uma sã filosofia que se manifesta. No entanto, não se trata de algo pessoal: "Mas deixemos o Sr. Nietzsche: que nos importa que o Sr. Nietzsche está outra vez com saúde?..."27.

Analisando o que estaria escondido por trás dos caminhos percorridos pela filosofia, Nietzsche, de certa forma, mostra o mal-entendido que cometeu a filosofia até então. Entende o porquê da filosofia buscar o autoconforto, usar o filosofar como meio de anestesiar as nuanças da vida. Os filósofos não entendiam o que guiava os seus pensamentos, suas teorias metafísicas, criações de além mundos, a procura de um bem-estar. Nisso tudo, se escondia uma necessidade fisiológica, é o corpo quem sempre está no comando procurando sanar as suas necessidades para continuar sobrevivendo. Esse agir, é um agir de forma inconsciente. Nessas escolhas, o corpo tem seus acertos e desacertos, mas sempre procura uma forma de se manter vivo. Essas nuanças do corpo passaram despercebidas pela filosofia, por isso, os filósofos filosofavam no vazio, não entendiam a amplitude do que realmente acontecia.

Aprende-se, com essa espécie de auto-questionamento, de auto-experimentação, a olhar com um olho mais refinado para tudo o que em geral foi filosofado até agora; adivinham-se melhor que antes os involuntários descaminhos, ruas laterais, lugares de repouso, lugares de sol do pensamento, a que os pensadores que sofrem, precisamente como sofredores, são conduzidos e seduzidos, sabe-se doravante para onde, inconscientemente, o corpo doente, com suas necessidades, impele, empurra, atrai o espírito28.

Para Nietzsche, não basta ser apenas filósofo para diagnosticar a doença que se esconde em cada filosofia. Para ele, o filósofo não tem força suficiente a

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Nietzsche, Friedrich. A Gaia Ciência. In: Obras Incompletas, p. 189.

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Ibid.

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ponto de levar a suspeita levantada por ele, Nietzsche29, até as últimas

consequências. Apesar da filosofia, para Nietzsche, ser uma das muitas manifestação do corpo, ela nunca soube interpretar o corpo, "e com bastante freqüência eu me perguntei se, calculando por alto, a filosofia até agora não foi em geral somente uma interpretação do corpo e um mal-entendido sobre o corpo". (Nietzsche, 1983, p. 190). Parece até um contrasenso, já que a filosofia é uma manifestação da leitura que o corpo faz de um determinado contexto desfavorável e, na tentativa de melhorias para si, acaba se tornando a sua própria vítima. Nietzsche é aquele que teve a audácia, como psicólogo, de levantar a suspeita sobre o conhecimento filosófico, mas não define uma solução para tanto, deixa a tarefa para os curandeiros vindouros, eles poderão cuidar do problema.

Ainda estou à espera de que um médico filosófico, no sentido excepcional da palavra - um médico que tenha o problema da saúde geral do povo, tempo, raça, humanidade, para cuidar -, terá uma vez o ânimo de levar minha suspeita ao ápice e aventurar a proposição: em todo filosofar até agora nunca se tratou de "verdade", mas de algo outro, digamos saúde, futuro, crescimento, potência, vida30.

Quando Nietzsche fala do médico, essa figura se torna peça chave no que diz respeito à compreensão das necessidades do corpo. Esse entendimento não passa só por uma compreensão fisiológica de um determinado corpo na sua individualidade, mas as influências culturais e geográficas sofridas por esse corpo também são circunstâncias a serem estudadas com máxima atenção. Então, o médico tem de saber ler através do comportamento de um corpo, na sua particularidade, diagnosticar qual seria a sua necessidade. "As diferentes culturas são diferentes climas espirituais, cada um dos quais é particularmente danoso ou salutar para esse ou aquele organismo". (Nietzsche, 2008 b, P. 248). Para tanto, se torna necessário entender as culturas onde cada corpo, na sua singularidade, habita. O conhecimento sobre as particularidades culturais são de grande valia para atingir esse propósito. O que não se pode dizer do conhecimento médico científico, já que este age de forma tendenciosa, não levando em conta essas particularidades, tendendo a julgar uma necessidade particular como universal."A história em seu conjunto, enquanto saber sobre as diferentes culturas, é a farmacologia, mas não a ciência médica mesma" (Nietzsche, 2008 b, p. 249)

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Lembrando que Nietzsche se coloca como psicólogo.

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Ao acompanhar um determinado indivíduo no seu processo de restabelecimento, o médico, no entender de Nietzsche, deve analisar não só a enfermidade física, mas o que circunda uma enfermidade. Talvez, a causa possa até ser uma patologia. Por isso, um conhecimento abrangente de diversas culturas se torna de extrema importância para o exercício do ofício do médico, pois, a causa de uma doença pode estar diretamente ligada a determinado (s) valor (es) cultural (is). Na busca por melhorias de viver, de forma mais saudável, questões geográficas, os males que cada região pode fornecer ao bem-estar, ou os benefícios para atingir esse fim, são informações que devem ser obtidas e levadas em conta. Outro fator a ser observado com maior atenção, é como o corpo reage perante as escolhas feitas, pois é ele quem deve dar o aval final31. As escolhas devem ser feitas levando em conta as condições em que o corpo se encontra e, quais as condições que melhor o favorecem. Uma boa saúde, ou, alcançar uma boa saúde, passa pela aceitação que o corpo tem ou não, de um espaço geográfico e cultural. Para Nietzsche, esses são fatores a serem conhecidos, estudados, com o intuito de levar o ser humano a viver com saúde, a obter uma boa saúde.

Ao lado desse tratamento dos espíritos, a humanidade deve procurar, no tocante ao corpo, mediante uma geografia médica, descobrir quais degenerações e enfermidades cada região da Terra ocasiona e, inversamente, quais fatores curativos oferece (Nietzsche, 2008 b, p. 249).

No que tange à busca do ser humano no intuito de obter uma boa saúde para o corpo, não é possível uma receita universal que atinja esse propósito. Há que se respeitar as mazelas de cada corpo, se deve entendê-las, valorizá-las, só assim chegar-se-á a um entendimento das exigências e necessidades que determinado corpo precisa para estar em plena vitalidade. A individualidade de cada corpo, com suas nuanças, traz indícios também de como alcançar sua saúde. Em um corpo, não é possível falar apenas de uma saúde, mas de fases de saúde, pois ele se encontra em um processo, onde as suas necessidades sempre se renovam. Nem a um mesmo corpo cabe uma única prescrição. Por isso, os médicos até sua época, no entendimento de Nietzsche, nunca entenderam das necessidades humanas, dos seus corpos. Se os médicos quiserem entender,

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cuidar melhor da saúde dos seus pacientes, para isso, precisariam mudar a concepção do que é saúde.

Referências

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