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CAPÍTULO II: OS MEIOS ESCOLHIDOS PELO CORPO CONTRA A

6. O corpo e o Si-mesmo

Uma das grandes questões na filosofia de Nietzsche, que perpassam seus escritos, sem dúvida alguma, é a sua abordagem acerca da importância do corpo, colocado pelo autor como centro do "pensar". Este, é compreendido pelo filósofo, como aquele que tem a primazia do comando, ele é a grande razão. Ações humanas são comunicações das ações internas do corpo, que são transmitidas através dos gestos e ações . Mas no que tange à compreensão do que é o corpo, dentro dos escritos do autor, o leitor não deve reduzi-la à concepção da linguagem científica. A compreensão de corpo, no pensamento do autor, é um poço sem fundo, que abrange todo o ser do humano, toda a sua fisiologia. Essa abrangência não cabe na reduzida linguagem conceitual, não há linguagem suficiente para abarcá-lo. "Além disso, é imprescindível lembrar que, rigorosamente, não conhecemos o corpo. Ao explicar por quais razões é preciso fazer do corpo o fio condutor da reflexão filosófica, Nietzsche destaca o fato de que não possuímos sua "significação última" (Wotling, 2013, p. 121-122).

Diante deste grande dilema que cerca a filosofia de Nietzsche, em relação a sua noção do que venha a ser o corpo, talvez ele esteja evidenciando a sua tentativa de fugir do reducionismo científico que este sofreu até então. Uma diferença significativa do conceito de corpo como é entendido por Nietzsche e como é sua compreensão da ciência, é que o filósofo o vê de forma singular. E nesse corpo singular se encontra o corpo plural. Nietzsche inverte a compreensão de corpo, o singular não atende às necessidades do corpo plural e, vice-versa. A ciência parece cometer um erro lógico, ao entender que uma mesma receita que atende um corpo singular pode atender a demanda de todos os corpos."Nietzsche se opõe, portanto, radicalmente a qualquer posição ingenuamente cientificista" (Wotling, 2013, p.124).

O reducionismo a que o corpo é submetido por parte da ciência, parece demonstrar a própria limitação da linguagem científica quando esta tenta

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comunicar o seu entendimento acerca deste. Ela fala do corpo no plural, não no singular, igualando todos, como se houvesse uma corporeidade universal. Este suposto entendimento que se obteve do corpo até então, diz apenas coisas superficiais, gerais, acidentes que compõem qualquer corpo, ficando assim, preso a um simples fisiologismo, não "aprofundando" no seu todo, no seu estado individual, mais profundo, mesmo porque, para Nietzsche, isto não é possível.

O corpo é um conceito que, em Nietzsche, só tem sentido em referência à teoria dos afetos. Não se trata, pois, de uma entidade material, um substrato físico autônomo,uma res

extensa, mas sim, de um termo que serve para designar, em sua multiplicidade irredutível"

(Wotling, 2013, p. 124).

Percebe-se, que o corpo, para Nietzsche, não é algo nominável, embora se teorize sobre ele. Ele mesmo, na sua profundidade, não é perscrutável, o que se tem dele é apenas o ilusório. O muito que se consegue dizer sobre ele, é algo por demais comum, coletivo, banal, uma carga conceitual que fica na superfície do que ele é. Esse emaranhado de conceitos é composto por uma cadeia de signos, na verdade, os conceitos são signos criados por uma consciência social, que tem como fonte para tal tarefa, a razão. O que Nietzsche assinala, é que a razão, deu um passo maior do que podia, em vez de cumprir o seu papel como auxiliar do corpo, ela pretendeu ser maior do que ele. "Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de 'espírito', meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão"(Nietzsche, 2011, p.35).

Um dos pressupostos do que Nietzsche entende por corpo, se encontra em Para além de Bem e mal, onde o autor esboça uma das muitas e abrangentes reflexões sobre a temática. "Pois nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas" (Nietzsche, 1992, p. 25). Ao falar do corpo, o filósofo deixa claro que este é composto por uma multiplicidade, que está em constante mutação. Nietzsche fala do corpo sem defini-lo, ele amplia o horizonte da compreensão de corpo que se tinha até então. O corpo é uma questão em aberto na filosofia do autor.

Desmembrar os mistérios do corpo, à luz da filosofia de Nietzsche, se torna um desafio ainda maior, já que para ele, o corpo é impenetrável, totalmente desconhecido e, impossível esboçar qualquer definição, embora isto tenha sido tentado. Esta, talvez, seja a maior crítica feita por Nietzsche à audaciosa tentativa por parte de algumas áreas do conhecimento, em determinar o que é o corpo,

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como por exemplo, aquelas que depositam no poder racional essa possibilidade. O próprio Nietzsche não ousa definir o que seria o corpo, ele apenas usa conceitos que lhe permitam jogar com a linguagem adotada pela ciência. O corpo mesmo, como foi entendido até então, não é aceito por Nietzsche. Até porque, Nietzsche usa do conhecimento que se teve do corpo até então, para tentar esboçar um ponto de partida bem diferente. "Além disso, o ponto de partida da análise de Nietzsche é a vontade de potência, hipótese de interpretação, e não fundamento gnosiológico absoluto" (Wotling, 2013, p. 123).

A concepção que Nietzsche tem do corpo, como algo totalmente indefinido, composto por um aglomerado de vidas internas, que a todo momento brigam por domínio, por mais vida, não se enquadra no padrão definido pelo "senso comum" do que é o corpo. Na visão do autor, definir algo que carrega no seu bojo, exércitos de afetos que sempreestão guerreando sem cessar entre si, seria uma afronta a esse desconhecido que chamam de corpo. Ao expressar o conceito corpo, normalmente, não é levado em conta o que abriga este corpo. Ele, o corpo, não se resume ao comportamento externo, ou às suas necessidades fisiológicas. O que faz com que ele se comporte de tal ou tal maneira, as necessidades que cada corpo sente, por trás de tudo isso, há uma série de eventos, que não são percebidos, ou melhor, que são descaracterizados quando se discorre sobre o corpo. "Sede originária e superfície de inscrição das pulsões é o corpo que elas animam e, em certo sentido, constituem, na medida em que o próprio corpo é unidade complexa" (Moura, 1995, p. 85).

Pensar o corpo, na filosofia de Nietzsche, apenas pelo lado físico, ou a partir de uma fisiologia abordada pela ciência, é limitar o que o filósofo quer dizer a esse respeito. Nietzsche vai além da limitada conjectura que se fez do corpo até então. O caminho trilhado para se livrar dessa limitada leitura, em primeiro lugar, passa pela astúcia de enxergar através dos comportamentos de um corpo, das individualidades de cada um, e depois, do rompimento com conceitos que tendiam a fixar, ou entender o corpo apenas pelo seu comportamento exterior. Ver além daquilo que foi construído, do que aparece aos olhos, do que é ouvido e dito sobre o corpo, essa, talvez, tenha sido a grande descoberta de Nietzsche: " O corpo é um texto, mas um texto que engendra, por sua vez, outros textos" (Wotling, 2013, p. 145).

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Os outros textos que compõem um corpo, fogem da materialização, tanto fisicamente, quanto de uma materialização verbal, que consiga dizer o que venham a ser esses textos que estão escondidos em um pequeno texto visível. Parece que estes textos não percebidos que agem no corpo, tendo o corpo como espaço de atuação, constituem aquilo que predomina sobre ele. O corpo age, mas age depois de ações que já ocorreram em si mesmo. O texto maior permite que se leia apenas uma pequena faceta de si, aquela que é interpretada, enquadrada e materializada através de estruturas verbais. Zaratustra assinala bem o que seriam esses textos que agem por conta própria. " O que o sentido sente, o que o espírito conhece, jamais tem fim em si mesmo. Mas sentido e espírito querem te convencer de que são o fim de todas as coisas: tão vaidosos são eles" (Nietzsche, 2011, p. 35).

Como já dissemos, o que é entendido por corpo na perspectiva filosófica de Nietzsche, está consideravelmente distante de uma perspectiva reducionista, na qual ele, o corpo é praticamente preso nas redes fixas dos conceitos. O corpo, entendido como estrutura física, faz parte de conjecturas, mas não que ele se adeque a elas. O adequar o corpo a estruturas é uma tentativa frustrante de entendê-lo, pois o que ocorre com o corpo,não se submete a estruturas estáticas. Ele está longe de se limitar a construções lógicas, ou a parâmetros que busquem objetivos últimos, significados derradeiros que o definam. Na sua flexibilidade, mutabilidade, o corpo se constitui sem se constituir. Dessa forma, talvez, ele devesse ser compreendido. "A grande razão, o corpo não é um dado, uma entidade permanente; o corpo se põe como estrutura realizada, não como substancialidade invariante" ( Moura, 1995, p. 85).

O mal-entendido a respeito do corpo parte, em princípio, do próprio indivíduo em relação ao seu próprio corpo. O primeiro equívoco ocorre quando o homem acha que escolhe sentir ou não sentir algo. O segundo, estaria em pensar que tem o controle das sensações, sentimentos e pensamentos que compõem um corpo. A inocência, ou a ignorância do homem, segundo Nietzsche, está em achar que controla algo tão complexo como o corpo. No entender do autor, há algo muito maior que conduz todo o complexo fluxo que ocorre no interior do corpo. O próprio pensar a respeito já é reflexo dessa dinâmica. O que Nietzsche dá a entender, que há um inexprimível agir, o que é dito, é o resultado da ação desse indizível.

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Para entender o que Nietzsche compreende como inominável, agindo sobre o corpo, primeiro, deve descaracterizar qualquer possibilidade de essência dentro da sua filosofia, ou querer conotá-lo com ares de uma entidade que rege as ações do corpo, como se houvesse uma causa que conduzisse suas atuações. O que guia o corpo, ou melhor, o que dinamiza as ações em um corpo, está para além da linguagem. O que Nietzsche critica, seria o fato de querer colocar uma pluralidade de eventos que ocorrem de modo dinâmico no devir do corpo, como se fosse uma coisa só. É como se dissesse que tudo isso é apenas corpo, nada mais. Uma coisa é a ação realizada por um indivíduo, outra coisa, é o que está agindo junto com essa ação, que impulsiona esta ação.

Um homem que quer - comanda algo dentro de si que obedece, ou que ele acredita que obedece. Mas agora observem o que é mais estranho na vontade - nessa coisa tão múltipla, para a qual o povo tem uma só palavra: na medida em que, no caso presente, somos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece, e como parte que obedece conhecemos as sensações de coação, sujeição, pressão, resistência, movimento, que normalmente têm início logo após o ato da vontade; na medida em que temos o hábito de ignorar e nos enganar quanto a essa dualidade, através do sintético conceito do "eu" (Nietzsche, 1992, p.24).

O que age no interior do homem, aquilo que faz com que ele se pergunte porque agiu de tal forma em vez de outra, porque sente um determinado desejo que foge do seu controle, ou até mesmo em situações em que o individuo acredite ser o dono de certos desejos, pensamentos, que tem tudo sob controle; todas essas sensações brotam do mesmo espaço, do corpo. Corpo entendido como o autor o percebe, um espaço que abriga uma multiplicidade de vidas que brigam por espaço e domínio. O que Nietzsche parece sublinhar, é que o homem procura acreditar, ou melhor, prefere se autoenganar, achando que exerce domínio sobre sensações e comportamentos que passam pelo corpo. Acredita ele, que, através de articulações racionais, possa se firmar como senhor do seu corpo."Teu Si- mesmo ri de teu Eu e de seus saltos orgulhosos. 'Que são para mim esses saltos e voos do pensamento?', diz para si. 'Um rodeio até minha meta. Eu sou a andadeira do Eu e o soprador dos seus conceitos" (Nietzsche, 2011, p. 35).

No entender do filósofo, sensações, desejos brotam de um abismo inimaginável, de um poço sem fundo, onde pensamento nenhum consegue penetrar. Tudo que compõe o corpo são ferramentas que o servem, estão à disposição para satisfazê-lo, para melhor servi-lo, inclusive a razão, que pensa

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ser autônoma. O corpo usa de vários meios para conseguir satisfazer suas necessidades, até mesmo deixar a razão ter uma certa liberdade em relação a outros mecanismos que ele dispõe sob seu comando. "Instrumentos e brinquedos são sentidos e espírito: por trás deles está o Si-mesmo. O Si-mesmo também procura com os olhos do sentido, também escuta com ouvidos do espírito" (Nietzsche, 2011, p.35).

Nesse jogo de ludibriasão entre o Si-mesmo e o seus subordinados, Nietzsche evidencia que a transformação é uma das características desse Si- mesmo que comanda o corpo, ele é o causador da transformação e é a transformação. O Si-mesmo é o impulsionador da multiplicidade de vidas que está sempre surgindo no corpo, ele é essa vida. O Si-mesmo é o próprio constituir dinâmico do corpo, que é um constituir que se constitui sem um propósito a ser atingido. Com isso, Nietzsche procura esclarecer, como o homem entende do corpo; é apenas uma ilusão criada por vias racionais, são construções rasas, por demais superficiais. No momento que se constrói um determinado entendimento sobre o corpo, ele já deixou de ser o que foi entendido. O que fica, é apenas o que foi congelado pela razão, mas este congelar já é um conceito vazio, sem nexo com o que está sendo constituído pelo Si-mesmo. "O Si-mesmo sempre escuta e procura: compara, submete, conquista, destrói. Domina e é também o dominador do Eu" (Nietzsche, 2011, p. 35).

Nietzsche ao mostrar, que o corpo é um universo desconhecido, que ele é o protagonista da "vida", e tudo o mais que o compõe, é ele, mas não se aproxima do que ele"é". Aquilo que se debruça sobre ele e, tenta defini-lo, como por exemplo, os próprios pensamentos que tentam entendê-lo, é apenas uma ínfima manifestação do próprio corpo. Como o próprio Nietzsche, pela boca de Zaratustra, diz é que o corpo é um sábio desconhecido e, o máximo que se pode dizer dele, é não nominá-lo, por isso Zaratustra o conota como Si-mesmo, ele é o Si-mesmo, ele faz o Si-mesmo. "Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido - ele se chama Si- mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele" (Nietzsche, 2011, p. 35).

Ao colocar o Si-mesmo como aquilo que não se pode nominar e, por trás do que denominamos corpo, age esse Si-mesmo, e esse Si-mesmo é o próprio corpo. Seria esse Si-mesmo um sinônimo do que o autor entende por vontade de potência?. qual é a relação com a vontade descrita no aforismo 19 de Para Além

84 de Bem e Mal, já que a palavra vontade é utilizada pelo filósofo para se referir a um complexo de multiplicidade de instintos e afetos e pensamentos que contém um corpo, já que estes, também são geradores de novidades, de mais vida e fogem de conotações75? Acontece com o Si-mesmo nomeado por Zaratustra? Tanto o Si-mesmo, quanto a vontade de potência parecem ser aquilo que Nietzsche coloca como o inominável; é tudo aquilo que compõe o corpo e que é o próprio corpo, no seu dinamismo criador de vidas.

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Instintos e afetos aparecem, pois, como ficções, mais precisament e como interpretações forjadas pelo intelecto (Wotling, 2013, p. 119, 2013).

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CAPÍTULO III: A CONVALESCENÇA COMO POSSIBILIDADE DE SAÚDE

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