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A alma e o “gerar Deus”

No documento adrianaandradedesouza (páginas 52-56)

Para a doutrina eckhartiana do fundo da alma, passividade e atividade estão mutuamente condicionadas, e só juntas constituem a totalidade da alma. No sentido dessa passividade, é dito que Deus gera o Filho na alma do homem que renunciou a todas as coisas e a si mesmo. A alma, assim desprendida, é conduzida à revelação das profundidades de Deus, retornando ao mais íntimo de sua interioridade, ao mesmo tempo que adentra no Deus nascido em seu interior. Ainda ao fazê-lo, a alma retorna cada vez mais profundamente a si mesma até o seu ser ou fundo mais verdadeiro – antes mesmo desse nascimento. Eckhart

      

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MESTRE ECKHART, S.10, p.93.

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Essa questão, será tratada mais detalhadamente no capítulo 3, através de uma análise do Sermão 2, no qual Eckhart traduz a figura bíblica de Marta como uma virgem que era mulher.

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concebe esse duplo retorno como a abertura através da qual a alma torna a ação divina a sua própria, ao gerar do mesmo fundo pelo qual Deus Ele mesmo gera. Nesse “gerar”, Deus não é mais aquele que se faz presente na alma, mas solidão e deserto: “Eu falei de uma força na alma. Em sua primeira irrupção, ela não apreende Deus enquanto ele é bom nem enquanto ele é a verdade. Essa força penetra até o fundo e continua a procurar, apreendendo Deus em sua unidade e sua solidão; ela apreende a Deus em seu deserto e em seu fundo próprio.”106 Tornar-se interior, assim mais radicalmente, significa, para a alma, apreender Deus em sua solidão de ser não sendo nada mais que Si mesmo. Ou seja, ganhar a medida dessa solidão que é seu próprio fundo.

Não obstante a ênfase na passividade do ato da recepção, Eckhart nos fala que essa passividade é, ao mesmo tempo, passividade e atividade, revelando todo o aspecto vivido da sua doutrina do nascimento do Filho: “[...] se tivesse saído totalmente de mim mesmo e tivesse me tornado plenamente vazio <de mim>, em verdade, então, o Pai geraria seu Filho unigênito tão limpidamente em meu espírito que o espírito o geraria de volta.”107 Nesse gerar recíproco, Eckhart descobre já “uma força na alma” que é pura atividade, quando a alma se liberta até mesmo desse seu ser recepção, enquanto este ainda significar o lugar de uma negação pura e simples. Dessa forma, segundo a sua recepção, a alma se restringe a não deixar obscurecer a Imagem de Deus nela, libertando-se de todas as imagens estranhas: “Deus é, todo o tempo, gerado no homem. Como, porém, Deus é, todo o tempo, gerado no homem? Observai isso: Quando o homem descobre e põe a nu a luz divina que nele Deus criou naturalmente, nele a imagem de Deus se torna manifesta.” Esse nascimento de Deus no homem faz parte de um movimento de constituição recíproca: o “homem é gerado todo o tempo em Deus. Observai o seguinte: pelo desnudamento da imagem no homem, o homem iguala-se a Deus, pois com a imagem o homem é igual à imagem de Deus que Deus é puramente, segundo sua essencialidade.”108 Essa polidez, essa transparência da recepção, é o intelecto, o conhecimento. Por ela, a alma é nascida Filho com o Filho, ou seja, ela (a alma) é no ser do Filho, nada sendo por si mesma. No entanto, a atividade que procede da recepção, ou do nascimento do homem em Deus, não constitui somente uma recepção a esse nascimento, mas a frutificação do dom em retorno.

       106 MESTRE ECKHART, S.10, p.95. 107 Ibidem, S.42, p.246. 108 Ibidem, S.40, p.235.

A identidade de natureza entre o Pai e o Filho é a razão que coloca a alma nesse poder gerador: “Tudo o que o Pai tem e o que ele é, a profundidade abissal do ser divino e da natureza divina, isso tudo ele gera em seu Filho unigênito.”109 Se em seu Filho ele nos dá o poder de sermos Filhos, ele também nós dá o seu poder mesmo de gerar enquanto Pai: “Quando te assume assim dentro dessa luz, o Pai te dá o poder de, com ele mesmo, gerar a ti mesmo e a todas as coisas, dando sua própria força totalmente a ti como à mesma palavra. Assim, pois, com o Pai e na força do Pai, te gerar sem cessar a ti mesmo e a todas as coisas, dando sua própria força totalmente a ti como à mesma palavra.”110 O homem se torna idêntico ao Pai, assim como são idênticos o Pai e o Filho: “Nessa luz, como eu disse, o Pai não conhece nenhuma diferença entre ele e ti, nem maior nem menor vantagem do que há entre ele e a mesma palavra. Pois o Pai e tu mesmo, e todas as coisas e a mesma palavra são um na luz”.111 E então, o homem gerado como Filho torna-se ele mesmo participante da natureza do Pai: “O Pai gera seu Filho na alma no mesmo modo como Ele o gera na eternidade e não diversamente [...] O Pai gera seu Filho sem cessar, e eu digo ainda mais: Ele gera a mim como seu filho e como o mesmo Filho. E digo ainda mais: Ele gera a mim não apenas como seu filho: Ele gera a mim como a si mesmo e gera a si mesmo como a mim, como seu ser e como sua natureza.”112

Portanto, mais do que a relação pessoal entre Deus como Pai e a alma nascida Filho de Deus no Filho, o que interessa Eckhart, no que se refere à doutrina do nascimento de Deus na alma, é o ser-uno (um ser, uma obra) de Pai e Filho. Ou seja, o ser-uno do homem com Deus na fecundidade das obras. A concepção do nascimento do Filho na alma como alguma coisa de substancial, quer dizer, como a criação de um novo ser diferente, é estranha ao pensamento de Mestre Eckhart. A filiação divina não se cumpre, para Eckhart, como um adequar-se do homem a Deus, o que ainda pressuporia a oposição entre dois sujeitos. O nascimento do Filho não supõe, pois, a unidade entre dois sujeitos, mas o tornar-se de um no outro: o homem torna a subjetividade divina a sua própria ao gerar desde onde Deus em si mesmo gera. Esse tornar- se marca o instante em que a perspectiva de dualidade de sujeito e de objeto – própria do homem em sua autonomia limitada – se desmancha em si mesma, pois o nascimento do Filho, que é identicamente nascimento do mundo e de todas as criaturas, não é um outro ser, mas tão

       109 MESTRE ECKHART, S.29, p.188. 110 Ibidem, S.49, p.274. 111

Ibidem, locus citato.

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só o transbordamento no e para o verdadeiro Ser; que o homem, por causa de seu apego, apenas deixou de reconhecer.

Pois bem, essa alma desmanchada em si mesma – e por essa fragilidade mesma de si – se torna capaz de gerar em uníssono com o gerar do próprio Deus, como vida de Deus, em Deus. Por esse gerar, a alma já é sempre unidade de passividade e atividade, de interior e exterior, de ser e operar. Só nessa unidade, em que o operar opera dentro do ser, sem fixar-se para fora, a alma é radicalmente desapegada, desmanchada. Esse operar sem operar é um apelo da alma a ser ela mesma em toda a plenitude de seu ser, que é uno e é múltiplo. Em sua plenitude, a alma opera na medida em que é e é na medida em que opera, simplesmente. Ela opera porque opera, sem nenhuma razão de ser fora desse seu operar. A distinção entre ser e operar não tem valor de uma oposição excludente; antes, ela tende a uma identidade de harmonia no mistério da Filiação divina. Ou seja, o enfoque eckhartiano no ser da alma não despreza a atuação da vida humana, mas a abre para a livre soltura do seu ser. A unidade de fundo da alma não despreza o operar, porque só quer desprezar o lugar de um poder exterior a si mesma. É a alma a se despir de toda a calcificação do pronto feito e dado, habitando a fonte da qual flui o produzir, o fazer e o dar. Essa primazia do ser sobre o operar significa que toda operação da alma é transbordamento da unidade, o que implica que a separação entre ser e operar é fruto de uma perspectiva ilusória de dualidade, na qual opera-se como um poder fora do ser. Quanto menos ilusória é a perspectiva da operação, tanto mais livre é a operação em deixar transluzir a unidade de fundo da alma. Aí o operar não é justificado pelo seu poder atuante sobre isto ou aquilo, mas pelo seu próprio brotar-se.

Disso se pode concluir que a identidade entre o fundo de Deus e o fundo da alma é uma identidade dinâmica – ela mesma não encaminha para lugar nenhum fora do próprio operar – é identidade do e no operar. Ou seja, nesse “lugar” que não é nem um nem múltiplo, por ser ele mesmo unidade que é, ao mesmo tempo, unidade e multiplicidade. Pensar a unidade entre Deus e homem como unidade no gerar é não admitir uma unidade transcendente à multiplicidade criada. No ato de receber e de gerar acontece a unidade da multiplicidade. Ou melhor: essa geração da alma em unidade com Deus é ela mesma a privação da posse de Deus na unidade da recepção. Isso acontece na medida em que a alma, gerando o Filho em unidade com Deus, faz nascer a multiplicidade para a qual ela sai e existe. Mas, a alma é também privada da posse dessa multiplicidade, na medida em que para ela permanece sempre aberta a possibilidade do retorno a Deus:

Deus investe todo o seu poder em sua geração. Isso pertence ao retorno da alma para Deus. E, em certo modo, é angustiante que a alma decaia tantas vezes daquilo em que Deus investe todo o seu poder. Mas isso é preciso pra que a alma torne a viver. Deus cria todas as criaturas em um verbo. Mas, para que a alma volte a viver, ele expressa todo o seu poder em sua geração. Num outro modo, porém é consolador que a alma seja novamente reconduzida ali para dentro [...] A todas as criaturas é próprio o gerar. Uma criatura que não conhece nenhum gerar também não seria. Por isso diz um mestre: Este é um sinal de que todas as criaturas foram produzidas pela geração divina.113

Essa possibilidade de receber e gerar expressa o fundo constitutivo da alma, em sua dinâmica de saída e retorno para Deus: o fundo onde todas as coisas se encontram na unidade de Deus é o mesmo fundo do qual provém toda diversidade. Esse fundo qualifica o dom originário cuja presença na Deidade deve ser cada vez e sempre de novo descoberta pelo homem. Todo o esforço, em Eckhart, de ultrapassar as imagens de relação em ascensão para Deus, não se abstrai para sempre de toda relação, porque só quer abstrair-se do nada que ela é, quando tomada unilateralmente segundo um interesse particular, de modo que ela possa ser praticada segundo a pura relação de Deus em seu brotar-se em si mesmo.

No documento adrianaandradedesouza (páginas 52-56)