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A extrema pobreza ou o sem-lugar

No documento adrianaandradedesouza (páginas 198-200)

CAPÍTULO 3 A A BGESCHIEDENHEIT E O LUGAR SEM LUGAR DO SEU DIZER

3.7 A extrema pobreza ou o sem-lugar

O sermão 52 é anunciado pelas palavras de Mateus (5, 3): “Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o reino dos céus.”518 Ao caracterizar o que seja essa pobreza de espírito, Eckhart o faz a partir de uma contraposição à pobreza exterior, ainda que esta seja “boa e muito louvável no homem”,519 porque Jesus Cristo “ele mesmo a teve aqui na terra”.520 O conceito do nada marca o limite da influência albertiniana na concepção eckhartiana da pobreza espiritual ou interior: “O Bispo Albrecht diz: Um homem pobre é esse que não experimenta nenhuma satisfação em todas as coisas já criadas por Deus. E isso está bem formulado. Nós, porém, o dizemos de modo ainda melhor e tomamos a pobreza numa acepção ainda mais elevada. Um homem pobre é aquele que nada quer, nada sabe e nada tem.”521 A distinção desses três níveis de pobreza vai da pobreza das duas forças superiores da alma, a saber, a pobreza da vontade (“a mais elevada”), a pobreza do intelecto (“a mais pura”), culminando na pobreza “mais extrema”: aquela da negação da busca ela mesma.522 Nessa progressão levada ao extremo, é a negação que acaba por negar ela mesma: negar progressivamente tudo o que pode ser desejado ou sabido e, ainda ao fazê-lo, finalmente negar a negação ela também, se ela representa ainda o lugar daquilo que é buscado. Aqui, mais uma vez, desprendimento revela-se ser o mais além de um sem lugar que ultrapassa a simples negatividade negativa de uma interiorização inerte. A pobreza do nada ter consiste em não ter sequer um lugar para receber a obra de Deus, porque Deus Ele mesmo é que é o lugar para sua atuação: “Deus é o próprio lugar para suas obras, pois Deus atua em si mesmo. Nessa pobreza, o homem alcança de novo o ser eterno que ele foi e que ele é agora, e que há de permanecer sendo eternamente.”523

      

518

MESTRE ECKHART, S.52, p.287.

519

Ibidem, locus citato.

520

Ibidem, locus citato.

521

Ibidem, locus citato.

522

O objeto desse sermão, a saber, a pobreza interior, está diretamente associado à questão acerca do lugar onde o homem pode, nele mesmo, encontrar a beatitude. Aqui, essa questão é posta na forma de uma progressão que vai da pobreza do nada querer ou da vontade, passando pela pobreza do nada saber ou do conhecimento até culminar na extrema pobreza do nada ter: “Eu disse há pouco que um homem pobre é esse que não quer realizar nem <sequer> a vontade de Deus. Pobre é quem vive de tal modo que está tão vazio de seu próprio querer e da vontade de Deus como o era quando <ainda> não era. Essa pobreza consideramos como a pobreza mais elevada. Em segundo lugar, dissemos que um homem pobre é quem nada sabe da atuação de Deus nele. Se alguém se mantém assim vazio do saber e do conhecer, como Deus está vazio de todas as coisas, isso é a mais pura pobreza. A terceira pobreza, porém, da qual quero falar agora, é a pobreza mais extrema: aquela em que o homem nada tem.” Cf. MESTRE ECKHART, S.52, p.287.

523

Essa pobreza espiritual ou interior, da qual nos fala Eckhart, é mais a libertação do homem de toda posse de si mesmo que uma ascese espiritual no sentido de uma retirada em relação ao mundo e as coisas. E, nesse sentido, ela não constitui mais uma instância somada às muitas outras instâncias que compreendem a totalidade da existência do homem; pobre é, na verdade, toda a existência humana que sequer tem algo a perder ou a ganhar, algo a fazer ou a deixar de fazer, porque em si é nada. A única coisa que podemos e devemos fazer é nada fazer, ou seja, deixar ser Deus, esvaziando-nos de nós mesmos. Para isso é necessário algo mais do que todo o empenho de nosso querer, saber e ter.

Eckhart começa então por dizer o que seja a pobreza de espírito no seu primeiro nível: o nada querer, que significa a negação da própria vontade:

Se alguém me perguntasse agora, o que é, pois, um homem pobre que nada quer, eu lhe responderia assim: Enquanto o homem ainda quiser e tiver <em si> a vontade de realizar a amantíssima vontade de Deus, ele não possui a pobreza, sobre a qual queremos falar. Esse homem ainda tem uma vontade, com a qual quer satisfazer a vontade de Deus, e isso não é reta pobreza. Se o homem deve possuir verdadeiramente pobreza, deve estar tão vazio de sua vontade criada como ele era quando ainda não era. Digo-vos, pois, pela verdade eterna: À medida que tiverdes a vontade de realizar a vontade de Deus, ainda não sois pobres. Um homem pobre é somente aquele que nada quer e nada deseja.524

Não querer o próprio querer (nada querer) é tornar-se pura receptividade do querer de Deus. Até mesmo a vontade de realizar a vontade de Deus deve ser negada à medida que ainda significar uma vontade particular que quer isto ou aquilo. Um homem pobre que nada quer deve ser, assim, tão vazio de sua vontade própria como ele “era quando ainda não era”. O nada-querer é o retorno a tal “estado” onde, em Deus, Deus não é ainda “Deus”. Nesse “estado”, o homem está livre de “Deus” e de todas as criaturas, considerando que Deus torna- se “Deus” ao tornar-se evidente na sua criação. Portanto, não querer nem sequer realizar a vontade de Deus implica a liberdade com relação ao próprio “Deus”.

Mas o homem pobre, e esta é a pobreza no seu segundo nível, não deve sequer saber que vive desprendido de todo o seu querer. O homem precisa se desprender até mesmo do saber do seu nada querer.

      

524

Um homem pobre é, por outro lado, quem nada sabe. Em diversas ocasiões dissemos que o homem deveria viver de tal forma que não vivesse nem para si mesmo, nem para a verdade nem para Deus. Agora, porém, dizemos de modo diferente e continuando queremos dizer: O homem que deve ter essa pobreza, deve viver de tal forma que nem <sequer> sabe que não vive para si, nem para a verdade nem para Deus. Deve antes ser tão vazio de todo saber que não saiba, nem conheça, nem sinta que Deus nele vive; mais ainda: Ele deve ser vazio de todo conhecer que nele vive. Quando o homem ainda estava na essência eterna de Deus, nele ali vivia não um outro, mas o que ali vivia era ele próprio. Assim, pois, dizemos: O homem deve ser tão vazio de seu saber próprio, como o fez quando ele ainda não era, de maneira a deixar que Deus opere o que ele quer, e que o homem esteja vazio.525

Observa-se aqui a concepção da absoluta transcendência de Deus (no ser como quando não era ainda nem “Deus” nem a criatura), e também de sua imanência na alma vazia: o lugar onde “Deus opera o que Ele quer”. No nada querer e nada saber se dá essa unidade da transcendência e da imanência, do sujeito e do objeto: o Deus além de Deus coincide com o mais fundo da alma. No entanto, nada querer e nada saber não são mais do que um aspecto da unidade. É o nada ter que busca a mais profunda unidade no fundo dessas unidades parciais. Ou seja, a unidade antes de ter sido o intelecto e a vontade. Portanto, se essa vacuidade do nada querer e do nada saber parece, para Eckhart, ser a condição da abertura de um lugar na alma de pura receptividade do divino, ela é, porém, ainda uma atitude preliminar a uma abertura mais radical ainda: aquela da vacuidade do nada ter, na qual a alma sequer pode ter um lugar onde Deus possa atuar. Segundo Eckhart, ainda lá, na pobreza do nada querer e do nada saber, se é ainda pobre com “propriedade”. É porque, se a pobreza do nada querer e a pobreza do nada saber são definidas como o vazio em relação às representações operadas pela vontade e pelo conhecimento, permanece um sentido pelo qual esse vazio é ainda concebido objetivamente: aquele pelo qual ele é considerado como um lugar de Deus no homem:

Eu já o disse diversas vezes e grandes mestres dizem-no também: O homem deve ser tão vazio de todas as coisas e de todas as obras, tanto interiores quanto exteriores, a ponto de ser um lugar próprio onde Deus possa atuar. Agora, porém, dizemos diversamente. Se Deus ainda encontrar no homem vazio de todas as criaturas, de Deus e de si mesmo, um lugar para atuar, enquanto isso ainda acontecer, o homem ainda não é pobre na extrema pobreza. É que, para seu atuar, Deus não está atrás de que o homem tenha em si um lugar onde possa atuar. Pobreza em espírito é apenas quando o homem está tão vazio de Deus e de todas as suas obras a ponto de Deus, na medida em que queira operar na alma, ser ele mesmo o lugar onde quer atuar – e isso ele o faz certamente com prazer. Ao atuar o homem assim pobre, Deus atua sua própria obra e o homem experimenta assim em si Deus. Deus é o próprio lugar para suas obras, pois Deus atua em si mesmo.526       

525

MESTRE ECKHART, S.52, p.289.

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No documento adrianaandradedesouza (páginas 198-200)