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O homem nobre ou a via itinerante

No documento adrianaandradedesouza (páginas 185-191)

CAPÍTULO 3 A A BGESCHIEDENHEIT E O LUGAR SEM LUGAR DO SEU DIZER

3.5 O homem nobre ou a via itinerante

No seu tratado do homem nobre, Eckhart lança mão de uma passagem do Evangelho de Lucas que diz o seguinte: “Um homem nobre partiu para uma terra distante, a fim de tomar posse de um reino, e regressou.”485 A nobreza,486 atributo de Deus e do homem – do homem na medida em que é em Deus, é praticamente outro nome para a doutrina da Abgeschiedenheit. Neste tratado, o autor começa por abordar a questão segundo a qual o homem é constituído de duas naturezas, alma e corpo, o que equivale ao que a Escritura chamou homem interior (ou o homem nobre) e homem exterior:

      

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MESTRE ECKHART, S.22, p.155.

485

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier et al. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 90.

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O conceito de nobreza, ao qual Eckhart dedicou todo um tratado, será analisado aqui a partir também do estudo de outros sermões – sobretudo o sermão 15 – que acenam na direção daquele que pode ser chamado um homem nobre.

Ao homem exterior pertence tudo aquilo que se prende à alma, e, contudo está revestido de carne e misturado com ela e (por isso) opera juntamente com e em cada órgão corporal, com o olho, por exemplo, ou com o ouvido, a língua, a mão, etc. A isso tudo a Escritura chama de homem velho, homem terreno, homem exterior, homem inimigo, homem servil.

O outro homem que há em nós é o homem interior; e este, a Escritura lhe chama homem novo, homem celeste, homem jovem, amigo, e homem nobre. E é deste que fala Nosso Senhor ao dizer que <<um homem nobre partiu para uma terra distante e tomou posse de um reino e voltou.>>487

O homem exterior só se opõe ao homem interior quando é tomado de uma maneira unilateral, designando, assim, um poder ilusório. Exterior seria, então, para o homem, o olhar unilateral que o separa de sua relação interior. Essa separação, existente somente de um lado, é estranha ao destino do homem interior que “partiu para uma terra distante e tomou posse de um reino e voltou”. Em toda a sua nobreza, o interior quer dizer ao mesmo tempo interiorização insondável, ou seja, a “partida” em relação a toda exterioridade fixa sobre ela mesma, e a exteriorização exata de si em si mesmo, o que significa o momento em que essa mesma interiorização se oferece inteira de volta à exterioridade que ela mantém unida no seu ser. O tema principal que move todo o sermão é a descrição do destino do homem tornado essa unidade: “[...] no uno se encontra a Deus, e quem quer encontrar a Deus deve tornar-se uno. <<Um homem>>, diz Nosso Senhor. <<partiu>>. Na distinção não se encontra nem o uno, nem o ser, nem a Deus, nem repouso, nem bem-aventurança, nem satisfação. Sê uno para que possas encontrar a Deus.”488 É, pois, uma só coisa desprender-se de todas as imagens dispersas no mundo exterior, e partir para uma terra distante: “E é isto que nosso Senhor quer dizer com as palavras: <<Um homem nobre partiu>>, pois o homem deve apartar-se de todas as imagens e de si mesmo, e distanciar-se e desassemelhar-se de tudo isso [...]”489 Para Eckhart, quando se diz: “Um homem nobre partiu para uma terra distante, a fim de tomar posse de um reino, e regressou”, isto significa o modo de ser que brota da união com Deus e ao mesmo tempo regressa para as coisas da vida. A interiorização ascendente ao Um e o

      

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ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier et al. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 90. Cf. também MESTRE ECKHART, S.10, p.92: “A alma tem dois olhos, um interior e outro exterior. O olho interior da alma é aquele que olha o ser e recebe seu ser imediatamente de Deus: É a obra que lhe é própria. O olho exterior da alma é aquele que está voltado para todas as criaturas, apreendendo-as no modo de imagem e no modo de atuação de uma força.”

488

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier et al. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 94s.

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retorno ao mundo exterior, torna-se um e o mesmo: o homem que parte é o mesmo que retorna. A vida que tira do interior tudo que ela é, transforma-se em nobre vida exterior.

Diz-se: “Um homem nobre partiu para uma terra distante, a fim de tomar posse de um reino e regressou [...]” Viver no aberto dessa distância dada pela partida é tornar-se estranho para si mesmo, quando toda a familiaridade se descobre na mais profunda estranheza. Esta estranheza de si e para si mesmo é o que se alcança com a posse do reino, estranheza que não permanece, se considerarmos que dela o homem sempre retorna. E então nos parece poder dizer que o reino para o qual se parte e do qual se retorna, está “entre” o não mais estar preso somente ao que é familiar, e o nunca estar totalmente livre para o estranho – está entre a partida e o retorno. Esse “entre”, que é a posse do reino, é o acontecer de um sem-lugar que não acontece num tempo e nem tampouco num lugar. Esse sem-lugar está “entre” o estranhamento frente à familiaridade dada pela ilusão da propriedade exterior e a impossibilidade de se apropriar inteiramente desse estranhamento; isso traduz, para nós, a compreensão de uma interioridade que é, ao mesmo tempo, interior e exterior.

A partida do exterior para o interior e o retorno do interior para o exterior significa, para o homem, a tensão constante de ter-se a si mesmo como dentro e como fora. Essa tensão é aquela do fundo que, no homem, revela a própria dinâmica de Deus em seu ser consigo mesmo por toda a sua exteriorização. Essa mesmidade não vê o exterior de modo unilateral, enquanto um poder separado. O exterior é ao mesmo tempo interior porque não se fixa em si mesmo. Esse paradoxo, recorrente em Mestre Eckhart, se encontra claramente ilustrado no seu sermão de número 15, no qual o autor faz uma análise dessa mesma passagem de Lucas:

Um tal homem “volta para casa mais rico” do que quando “saiu”. Quem assim tivesse “saído” de si mesmo seria devolvido a si mesmo no sentido mais próprio. E tudo que ele deixou na multiplicidade, ser-lhe-á restituído integralmente na simplicidade, pois encontra a si mesmo e todas as coisas no instante presente da unidade. E quem assim tivesse “saído” retornaria à casa muito mais nobre do que quando “saiu”. Um tal homem vive numa liberdade solta e pura nudez, pois não precisa envolver-se com nenhuma coisa, nem assumi-la, nem pouco nem muito; pois tudo que é o próprio de Deus é o seu próprio.490

Na instância dessa “saída”, que significa repouso na simplicidade, esse repousar deve ter o modo de uma ação, de um retorno radical. O movimento de volta só é, nesse sentido, na perspectiva do movimento de saída, e, então, saída e retorno não são dois movimentos

      

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distintos, mas dimensões de um mesmo repouso que, longe de significar inatividade, é o sustento mesmo de toda ação. E, então, a nobreza da qual nos fala Eckhart não prevê só uma “saída” em relação à exterioridade criada, porque nessa permanência extática não há sincronia com Deus, já que em Deus, a sua exteriorização (seja na Trindade, seja em sua criação) permanece idêntica à sua própria unidade interior.491 Enquanto o homem interior é o homem nobre por excelência, que conjuga interioridade e exterioridade, “saída” e “retorno”, o homem exterior que se fixa sobre si é cada vez mais distante de si mesmo. Portanto, assim como seria ilusório uma exterioridade fixa nela mesma, seria também insuficiente uma interioridade insondável em relação ao exterior. Nesse sentido, o Mestre cita Ezequiel: “uma águia poderosa, de grandes asas, de longas penas rêmiges, coberta de plumas, de plumagem multicor, veio ao Líbano e colheu a copa de um cedro, arrancou a ponta dos seus ramos e a trouxe para baixo.”492

Se o destino último do homem nobre é a chegada a essa interioridade que é ao mesmo tempo interioridade e exterioridade, Eckhart propõe seis etapas para caracterizar o curso desse movimento: começa pela ação exterior de seguir “o exemplo de pessoas boas e santas”, passa pelo despojamento de toda obra exterior, até encontrar o repouso em Deus, e termina “no despojar-se da imagem (humana) e no revestir a imagem da eternidade divina.”493 Mais propriamente, isso significa “despojar-se” da exterioridade por ela mesma e revestir uma interioridade que é também exterioridade. Em seu “regresso”, quer dizer, em sua exteriorização interior, o homem nobre experimenta uma tal união com Deus que não é menor, mas muito pelo contrário, é maior do que a união com o divino numa interiorização insondável. Porque: “Quanto mais todas as criaturas dotadas de intelecto saem de si mesmas em suas obras, tanto mais entram em si mesmas. Nas criaturas corpóreas não é assim: Quanto mais elas atuam, tanto mais saem de si mesmas.”494 Portanto, o homem que parte para uma terra distante e regressa, deixa a exterioridade pura e descobre uma interioridade que sai do mundo para o mundo. Essa interioridade que é ao mesmo tempo interioridade e exterioridade é a única via pela qual a alma pode se identificar com Deus.

Pois bem, Eckhart concebe o repouso no interior quando o homem só pode ser concebido a caminho: vivendo, amando, sofrendo, regozijando. Repousando em si, esse si

      

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HAAS, Alois Maria. Maestro Eckhart: figura normativa para la vida espiritual. Barcelona: Herder, 2002, p. 103.

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ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier et al. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 98.

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mesmo deve permanecer imóvel face à exterioridade para a qual já sempre se referiu. Por isso, o homem nobre ou interior não nega o mundo – e não há mesmo como negá-lo – porque só quer negar qualquer pretensão exterior de autonomia: “Como, porém, o homem nesta vida não poderá ficar sem atividade, já que esta pertence à essência humana, pois existe toda sorte de atividade, por isso deve aprender a possuir Deus em todas as coisas e a permanecer sem obstáculo em todas as obras e em qualquer circunstância.”495 Não significa que não haja mais atividade, ou que não haja mais a referência à multiplicidade; significa, antes, que a atividade é por todo o seu ser ela mesma, que não há medida que possa medi-la fora de seu próprio agir.

Por isso, o homem nobre “volta para casa mais rico”: um tal homem conquista a riqueza de ser no próprio de Deus, não tendo mais o seu próprio. Não ter próprio para ser no próprio de Deus não significa evadir-se do mundo, mas percorrê-lo ao revés, pelo avesso, ou seja, ver a multiplicidade na qual já sempre somos lançados desde a dinâmica mesma que a constitui: “Na verdade, se fosses devidamente uno, também permanecerias uno no distinto, e o distinto tornar-se-ia uno para ti e de modo algum lograria impedir-te. O uno permanece uniformemente uno em mil vezes mil pedras como em quatro pedras, e mil vezes mil é tão certamente um número simples como (o) quatro é um número.”496 Esse permanecer uno no distinto é a estranheza de não ser si mesmo, em si mesmo. Essa vida sem si mesmo é a marca da vida que se estranha sem poder apropriar-se inteiramente desse estranho, aquela do homem nobre que parte e que retorna.

Esse permanecer uno no distinto reflete a realidade mais radical do fundo da alma, na medida em que este representa a possibilidade da unidade do homem com o divino ao mesmo tempo que sua separação: “[...] Essa luz é de tal natureza que possui um ímpeto combativo, sendo chamada de synteresis, que significa um unir e um afastar.”497 Ao pensar a unidade entre o homem e Deus, Eckhart pensa em termos de uma unidade múltipla que é também o começo da separação entre ambos. Esse constante afastamento é ele mesmo a condição para que aconteça a cada vez e sempre de novo unidade. O homem nobre, que partiu e regressou, só pode ganhar esse combate, essa tensão, só pode ganhar ele mesmo, só pode ganhar a radicalidade de si mesmo. Não há outro lugar a não ser o lugar sem lugar da nossa existência de corpo e alma – exterior e interior. Por isso “ele voltou mais rico”: a riqueza consiste na

      

494

MESTRE ECKHART, S.53, p.293.

495

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier et al. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 110.

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Ibidem, p. 95.

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atenção ao fato de que todo apropriar-se, ou seja, toda tentativa de explicar essa identidade com Deus (que se revela na imagem da posse do reino), precisa apegar-se ao criado, ou seja, toda essa tentativa já se dá a partir de uma perspectiva de dualidade, que só pode conhecer Deus a partir do exterior: “Pois o homem deve ser um em si mesmo e deve procurá-lo (isto é, o ser-um) em si e no Uno e recebê-lo no Uno, isto é: somente contemplar a Deus; e <regressar>, isto é: saber e conhecer que conhece e sabe a Deus.”498 A riqueza é ela mesma a percepção de que ao homem só resta celebrar esse combate, essa tensão de ser unidade, na distinção e na dualidade. Essa tensão é, então, esse contínuo expropriar como condição para se receber sempre de novo a pura gratidão para com a dádiva:

Assim, o homem deve deixar fluir para o exterior e comunicar todos os dons que recebeu de Deus. São Paulo escreve: “O que há que não tenhamos recebido dele?” (1 Cor 4,7). Se o homem possui qualquer coisa que não deseje também a um outro, ele não é bom. O homem que inveja um outro por coisas espirituais e por qualquer outra coisa que faça parte de sua felicidade e ventura, ele jamais foi espiritual. O homem não deve receber nem somente possuir para si mesmo, mas deve comunicar-se e derramar-se para o exterior em tudo o que possui em corpo e alma, o tanto que puder e seja o que for que se peça a ele.499

Reforçando nossa questão, entendida como uma interiorização da e na ação sem porquê, diremos que essa tensão entre o “sair” e o “retornar”, enquanto um contínuo apropriar-se e expropriar-se, é a existência feita obra de solidão: “<<Eu conduzirei a alma nobre à solidão>>, diz Nosso Senhor no profeta Oseias, <<e ali falarei ao seu coração>> (Os 2,14). Um com o Uno, Um do Uno, Um no Uno, e no Uno Um para sempre. Amém.”500 A existência se faz obra de solidão, ao deixar ser o que nela é próprio de Deus, o que significa só ser o que ela já é. Ser a pura exteriorização do Uno em seu brotar-se em si mesmo: ser Um com o Uno, Um do Uno, Um no Uno, e no Uno Um para sempre. A existência se faz obra de solidão quando realiza em si mesma essa perspectiva do Uno, entendida como um permanecer “em si”, no próprio da ação sem porquê. Desde essa perspectiva do “sem-porquê”, ser só tem um sentido todo próprio de só ser: ser por tudo ele mesmo. No âmbito dessa plenitude, a “saída” é ao mesmo tempo “retorno”, e o “retorno” é ao mesmo tempo “saída”, para além de

      

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ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier et al. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 98.

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MESTRE ECKHART, S.81, p.110.

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toda oposição. Essa dinâmica de “saída” e “retorno” traduz o sentido mesmo da existência que, por não ter a si mesma, precisa sempre buscar-se, reconquistar-se.

Como abertura a esse nada, que é a própria existência em seu ser já sempre no Outro e desde o Outro, ela (a existência) se faz obra de solidão. O sentido dessa obra como acolhida do nada, da finitude, aparece, em Eckhart, na compreensão de que o homem opera eterna e inseparavelmente com o fundo, ou seja, que ele se constitui em suas operações elas mesmas. Tal obra se realiza na existência humana cada vez que ela existe simplesmente, ou seja, quando ela se descobre fecunda em seu próprio fundo. Essa fecundidade no fundo significa que a chegada ao fundo é, antes de mais nada, um dimensionamento do sentido da própria existência, que desde o fundo, opera em unidade com Deus. Essa unidade de fundo se chama, para Eckhart, deserto. Deserto, em cuja marca, é possível contemplar ao mesmo tempo serenidade e tentação,501 solidão e provação.502

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