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O exterior mais íntimo que o mais interior: a excelência de Marta sobre Maria

No documento adrianaandradedesouza (páginas 154-168)

CAPÍTULO 3 A A BGESCHIEDENHEIT E O LUGAR SEM LUGAR DO SEU DIZER

3.2 O exterior mais íntimo que o mais interior: a excelência de Marta sobre Maria

O sermão de Eckhart de número 86 também se inscreve sobre a mesma passagem de Lucas em que Jesus, estando em viagem, é recebido na casa das irmãs Marta e Maria:

Estando em viagem, Jesus entrou num povoado, e certa mulher, chamada Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã Maria, ficou sentada aos pés do senhor, escutando-lhe a palavra. Marta estava ocupada pelo muito serviço. Parando, por fim, disse: “Senhor, a ti não importa que minha irmã me deixe assim sozinha a fazer todo o serviço? Diz-lhe, pois, que me ajude. O senhor, porém, respondeu: “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas; no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada.(Lc 10, 38-40)388

      

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MESTRE ECKHART, S.2, p.48.

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Parece inegável que a postura contemplativa de Maria é mais digna que a postura prática de Marta. Maria permanece postada junto de Jesus, aprendendo seus ensinamentos, enquanto Marta mantém-se afastada pela ocupação com os muitos afazeres. A interpretação comum atribui uma inferioridade da atitude de Marta em relação à atitude de sua irmã Maria. Parece mesmo não haver dúvidas de que “Maria escolheu a melhor parte.” Eckhart ele mesmo admite uma tal inferioridade ao comparar as duas irmãs ao homem exterior e ao homem interior:

A quinta razão é, que o interior é infinitamente mais agradável do que o homem exterior. Como o filósofo diz, delícias Intelectuais são livres de inconvenientes, mas cada prazer mortal tem seu outro lado. Santo Agostinho diz que enquanto Marta estava perturbada, Maria estava em companhia de seu homem interior. Daqui o comentário de um professor, “Maria era adversa a Marta antes da eterna Palavra de Jesus Cristo.” Porque Maria não respondeu? Ela não ouviu, porque ela não estava em casa sozinha. Onde estava ela então? Ela estava com seu homem interior na Palavra, cuja palavra ela estava atendendo. Na alma é onde ela ama mais do que onde ela está concebendo vida natural.389

Mas é no seu sermão 86 que Eckhart surpreende, com uma original e desconcertante interpretação. O autor faz da figura de Maria o símbolo do homem interior que ainda se detém no consolo e na delícia da vida espiritual ou contemplativa: “São três as coisas que fizeram com que Maria se sentasse aos pés do Cristo. A primeira era que sua alma estava tomada pela bondade de Deus. A segunda era um desejo indizível: ela ansiava e não sabia por que, queria e não sabia o quê. O terceiro era um doce consolo e um contentamento que ela hauria das palavras eternas que ali escorreriam da boca de Jesus.”390 Marta, por sua vez, simboliza o exercitar-se dessa interioridade na qual Maria permanece inerte. Marta é aquela que, ultrapassando esse prazer elevado à ordem do espiritual, põe seu fundo em ação, no caminho de volta para dentro da vida vivida.

Também Marta estava movida por três coisas que a faziam andar de um lado para o outro, servindo o Cristo amado. A primeira era uma idade magnífica sazonada e um assentar-se bem exercitado no que é o mais próximo. Por isso parecia-lhe que ninguém seria capaz de realizar tão bem a obra quanto ela. A segunda era uma sábia ponderação, que sabia coordenar retamente a obra exterior para dentro do

      

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ECKHART, Maître. Meister Eckhart. Translation C. de B. Evans. London: Watkins, 1947, p. 255s.

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mais próximo que o amor ordenasse. A terceira era a suma dignidade do hóspede querido.391

Eckhart tem tanto apreço pelo retorno à vida vivida que ele chega a contradizer a escritura ela mesma, ao afirmar a excelência da atitude ativa de Marta sobre a atitude contemplativa de Maria. A excelência de Marta resulta de uma característica cara a Mestre Eckhart: “um assentar-se bem exercitado no que é mais próximo”, ou seja, um fundo bem exercitado.392 A maturidade de Marta lhe confere um certo modo de ser que Maria ainda está aprendendo. Este modo consiste numa “sábia ponderação” por meio da qual Marta, exercitando seu fundo, mantém nessa sua obra exterior uma identidade entre o interior e o exterior. Identidade que assim se mantém quando essa obra exterior é por ela mesma sua própria razão de ser, sem nenhum porquê exterior a ela mesma. O modo de ser dessa obra, que é sem ser nada para fora de si mesma, reflete a própria obra de Deus em seu brotar-se em si mesmo. E, portanto, “assentar-se bem exercitado no que é mais próximo” é realizar na existência a própria obra divina.

Essa ideia de um fundo bem exercitado expressa uma plenitude de ser que, enquanto a concreção da plenitude do Ser de Deus Ele mesmo, une o homem interior ao homem exterior, o ser ao operar, o eterno ao temporal. Essa plenitude, para Eckhart, se torna evidente no momento em que Jesus, respondendo às solicitações de Marta, pedindo que sua irmã Maria lhe ajude, a chama duas vezes pelo nome: “Marta, Marta, tu te preocupas e afliges por muita coisa! Uma coisa basta!” Segundo o autor, ao chamar Marta duas vezes pelo nome, Jesus quis expressar toda a plenitude do seu ser, indicando que ela “possuía plenamente tudo que é bem temporal e eterno [...]”393 É porque Jesus, depois de ter dito a Marta que ela se preocupava e afligia por muitas coisas, acrescenta: “uma coisa basta”. Essa multiplicidade na unidade expressa a plenitude de Deus na dinâmica de seu nascimento. Esse nascimento – que Marta concretiza enquanto virgem e mulher – concerne sempre muitas coisas, mas essa multiplicidade total, que é gerada com o Filho, é nele una, e nele permanece antes de se exteriorizar como isto ou aquilo. Enquanto a concreção dessa plenitude divina, é dito que Marta estava no mundo, em meio à multiplicidade das coisas: “tu te preocupas e afliges por muitas coisas!” Mas o mundo não estava nela. Esse mesmo mundo ela não o tinha como

      

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MESTRE ECKHART, S.86, p.126.

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HAAS, Alois Maria. Maestro Eckhart: figura normativa para la vida espiritual. Barcelona: Herder, 2002, p. 108.

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próprio: “Tu estás junto às coisas e as coisas não estão em ti.”394 O cuidado de Marta com as obras temporais não impedia que ela estivesse, ao mesmo tempo, na eternidade. Para Eckhart, esse seu modo de ser entre as coisas exteriores fazia com que Marta não possuísse “menos do que se estivesse lá em cima, no ‘círculo da eternidade’.”395 Esse modo radical de ser no mundo é o mesmo que estar mais além do mundo, e é isso que significa a resposta do Cristo: “Uma coisa basta.” Basta ser uno consigo mesmo em tudo que é seu, inclusive o múltiplo.

Marta estava junto das coisas, ou seja, na lida cotidiana e descuidada com as coisas. Mas o que é essa lida cotidiana? É o arrumar e limpar, o arranjo com as coisas, o ir e vir do dia a dia. Neste estar junto das coisas está-se sempre desatento, sem se perguntar por um lugar desde onde vigora o arrumar e o limpar. Todavia, esse não saber de um lugar de origem, desde onde se faz possível todo ir e vir do dia a dia, deve-se ao fato de essa mesma origem lhe ser toda junto – tão junto que nem sequer é mais possível uma perspectiva de dualidade que conceba um lugar de origem separado da própria existência entre as coisas. O cotidiano é onde estamos abandonados ao vazio de Deus, sem sequer tematizar ou perguntar sobre o que são as coisas, é onde é desfeita a distância que separa o significado das coisas, desfeita a dualidade, a oposição. Por isso, segundo o Mestre, Jesus, respondendo às suas solicitações, quer dizer à Marta: “Tu estás junto às coisas, mas as coisas não estão em ti.”396 O fato de as coisas estarem em nós nos fala do próprio campo da consciência, no qual o sujeito se vê separado das coisas e com elas sempre se relaciona por meio de conceitos e representações, campo no qual o mundo e todas as coisas ganham consistência como isto ou aquilo. Marta, porém, está junto ao mundo, mas este mundo ela não o tem como seu. Nessa identidade com o mundo – na perda mesma da consistência do mundo enquanto mundo –, viver não se estrutura desde um isto ou aquilo, mas desde uma ação, ou seja, como um arranjo, uma arrumação, quando o mundo não é visto mais a partir do mundo (de um conceito ou representação), mas desde a dinâmica mesma que o constitui. Marta está com os seus afazeres cotidianos: na arrumação e na lida de todos os dias. Não há ainda separação, reflexão. Mas de repente, num instante, se é lançado para fora, num pôr-se à distância. Desde este fazer-se à distância dá-se a atenção, a reflexão, o pôr-se dentro dos cuidados, das coisas. A reflexão faz nascer o mundo com suas separações. Eis, então, que agora se sabe, separa-se da arrumação, da correria: separa-se do viço da vida. Faz-se um contemplador extático, separado pela aquisição dos

      

394

MESTRE ECKHART, S.86, p.128.

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Ibidem, locus citato.

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prazos397 em relação à existência. Era o estado em que se encontrava Maria: Maria está afastada da arrumação, dos afazeres. É por isso que o Mestre nos diz: “Maria era antes Marta, antes de ela tornar-se Maria, pois enquanto estava sentada aos pés de Nosso Senhor, não era Maria; na verdade, era Maria no nome, mas ainda não no ser; pois estava assentada pelo prazer e pela doçura e havia recém-ingressado na escola e aprendia a viver.”398

Nessa atitude contemplativa de Maria, e em muitos outros lugares, Eckhart coloca o problema de uma experiência mística autocomplacente.399 Em suas Conversações Espirituais, fala desse prazer e dessa doçura como uma “operação do amor”, que ainda não constitui “o melhor”:

Mas existe também uma segunda propriedade: é a manifestação e a operação do amor. Ela se faz visível como interioridade, devoção e exuberância da alegria; mas isto não é de modo nenhum o melhor. Tais manifestações frequentemente não provêm do amor, mas, às vezes, da natureza, mostrando-se como um bem-estar ou um doce sentimento; pode ser influência da atmosfera ou pode ser induzido pelos sentidos; e aqueles que experimentam tais coisas, nem sempre são os melhores. Pode ser que venham realmente de Deus, porque Nosso Senhor dá-o a tais pessoas para atraí-las a si ou estimulá-las e também para desapegá-las de outras pessoas. E quando estas pessoas crescem em amor, então não têm mais tantos sentimentos e emoções; evidencia-se então que elas possuem o amor: sem tais escoras, guardam total e firme fidelidade a Deus.

Suponhamos que se trate de perfeito e firme amor, ainda assim não é o melhor. Isso se vê pelo seguinte: é preciso às vezes renunciar, por amor, a estes transportes afetivos em razão de uma coisa melhor e, às vezes, para praticar uma obra de amor que se faz necessária, seja espiritual ou corporal. Como já disse uma vez: se alguém estiver em êxtase, como esteve São Paulo, e souber que um enfermo necessita de uma sopinha, deixe seu êxtase de amor e sirva o necessitado com grande amor. Eu julgo tal gesto muito melhor.400

Eckhart reconhece primacialmente as obras, mas só quando fluem de uma apreensão espiritual. Ou seja, o doce sentimento que Eckhart identifica à atitude contemplativa de Maria

      

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“De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos estou de range rede. E me inventei neste gosto de especular idéias. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso.” Cf. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974, p. 11.

398

MESTRE ECKHART, S.86, p.133.

399

Cf. HAAS, Alois Maria. Maestro Eckhart: figura normativa para la vida espiritual. Barcelona: Herder, 2002, p. 105.

400

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier et al. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 113.

não constitui, em absoluto, a última palavra do desprendimento que Deus concede ao homem. Essa dimensão espiritual, essa não-ação, é constitutiva do caminho do desprendimento para o qual Deus conduz o homem, como a pedra de toque para a plenitude como forma de ação gratuita. Portanto, não se trata de desvalorizar a contemplação, mas de redimensioná-la, enquanto alguma coisa que, embora necessária, constitui ainda uma motivação ou um preparo, por ter ainda o caráter de uma aquisição espiritual. Por isso, Maria só se torna a verdadeira Maria quando ela estende a necessidade da liberdade na contemplação à liberdade em relação às obras: “Eu digo então que o homem que é na vida contemplativa pode bem, e deve se liberar das obras exteriores tanto quanto ele é na contemplação, mas em seguida ele deve exercer as obras exteriores, porque ninguém não pode todo o tempo e constantemente se exercer na vida contemplativa, e a vida ativa está contida na vida contemplativa.”401 Para Eckhart, a excelência de Marta não representa maior dignidade de Marta sobre Maria, mas o fato de Marta ser, ela mesma, o princípio do qual parte a atitude contemplativa de Maria (“Maria era antes Marta”), e, diremos ainda, o fim para o qual essa busca retorna, pois o ser verdadeiro de Maria é ser Marta, ou seja, é conhecer sendo: conhecer e ao mesmo tempo aprender a viver. Assim, só quando Maria se afasta de Jesus, da sua atitude contemplativa, é que ela começa a servir a Deus:

‘Maria estava sentada aos pés de Nosso Senhor ouvindo suas palavras’ e aprendendo, pois acabara de ingressar na escola e aprendia a viver. Mais tarde, porém, quando aprendera e quando o Cristo já havia subido ao céu e ela recebera o Espírito Santo, só então começou a servir e atravessou o oceano e pregou e ensinou e tornou-se uma serva e lavadeira dos discípulos.402

Nesse sentido, segundo o Mestre, Jesus, ao responder às solicitações de Marta, dizendo-lhe que Maria escolheu a melhor parte, não a reprime, pois esta parte que Maria escolheu, Marta já a possui com a maturidade que lhe é própria; mas sim a consola, dizendo que “Maria ainda se tornaria como ela desejava.”403 E o que desejava Marta? Que Maria unisse a sua liberdade interior à fecundidade das obras exteriores: “Ela percebeu que Maria estava tomada de prazer por toda sua satisfação de alma. Marta conhecia Maria melhor do que Maria conhecia Marta, pois vivera mais e vivera bem; e a vida concebe o mais nobre

      

401

ZUM BRUNN, Emilie. Voici Maître Eckhart à qui Dieu jamais rien ne cela. In: Voici Maître Eckhart. Grenoble: Jérôme Million, 1994, p. 61.

402

MESTRE ECKHART, S.86, p.134.

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conhecimento.”404 É assim que Marta e Maria não simbolizam duas atitudes que se opõem, mas representam dois aspectos de uma mesma vida405 – a vida que Marta já possui em sua plenitude, quando é chamada de uma virgem que era mulher. A plenitude de Marta se expressa no sentido de uma não oposição entre contemplação e ação, entre interior e exterior. Eckhart encontra em Marta essa plenitude de ser ela mesma as duas irmãs ao mesmo tempo. Marta é a plenitude de uma contemplação em ação. Porque ação humana sem contemplação é ação de apreensão exterior; por outro lado, contemplação sem ação é experiência estéril, extática.

É refletindo sobre essa contemplação extática, caracterizada pela figura de Maria, que Eckhart nos fala dos caminhos da contemplação:

O primeiro é: procurar a Deus em todas as criaturas [...] Era o que tinha em mente o Rei Salomão quando afirmou: “Em todas as coisas procurei o repouso” (Ecl 24, 11) [...] O segundo caminho é caminho sem caminho [...] elevado e arrebatado acima de si mesmo e de todas as coisas, sem vontade e sem imagens [...] Foi a que se referiu Cristo quando disse: “Bem-aventurado és tu, Pedro! A carne e o sangue não te iluminaram”, mas, sim, um “ser elevado-para-dentro-do-intelecto”, no qual me chamaste “Deus”: “foi o meu Pai celeste que to revelou” (Mt 16,17) [...] O terceiro caminho se chama “caminho” e é, no entanto, lar, isto é, contemplar a Deus, sem mediações no-que-é-seu-próprio. E o Cristo amado diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” (Jo 14,6)406

Para Eckhart, há três caminhos para Deus: primeiro, aquele que procura nas criaturas; a seguir, aquele que se eleva acima de todas as imagens; por último, o caminho de um “em si” no qual Deus é contemplado “sem intermediações no que é seu próprio. O caminho da contemplação não deve querer se conservar, se ele se quer pleno; ou então será força nula, coisa nenhuma. Eckhart vê na solicitação de Marta a sua preocupação com a contemplação extática de Maria: “Marta temia que sua irmã ficasse presa no prazer e na doçura; e desejava que Maria se tornasse como ela mesma.”407

      

404

MESTRE ECKHART, S.86, p.127.

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É o que nos parece também querer dizer Santa Teresa em seu Caminho de perfeição: “Esta é uma graça do Senhor, porque quem a recebe tem vida ativa e vida contemplativa ao mesmo tempo. Os que ficam neste estado de todo servem ao Senhor, no que quer que façam. Porque a vontade faz o seu serviço, sem saber como age, e fica em sua contemplação; as outras duas faculdades fazem o trabalho de Marta. Assim, Marta e Maria andam juntas.” DE JESUS, Santa Teresa. Caminho de Perfeição. In: Obras Completas. São Paulo: Loyola, 1995, p. 391.

406

Cf. nota 404: Opus citatum, S.86, p.129-130.

407

A contemplação, não se separando da ação, redimensiona toda obra humana. A lida e ocupação de Marta se abrem desde uma interioridade a partir da qual todas as coisas são experimentadas em Deus. Assim, quando Deus não é mais reconhecido como um objeto da apreensão humana, o que resta é a lida e a ocupação com as coisas da vida. O que permanece no fim das contas é o agir aqui e agora no cotidiano.408 Diremos que essa era exatamente a situação na qual se encontrava a cara Marta, ela que operou o fundo de sua alma. Marta encontrou a ação constitutiva pela qual o exterior é tornado mais interior que o mais íntimo: aquela do desprendimento, do “sem-porquê”, do “deixar ser”. Uma ação no sentido da qual as experiências baseadas na distinção entre interior e exterior, contemplação e ação, teoria e prática, ser e operar, alma e corpo tornam-se inúteis. Numa tal ação, as obras dos homens são todas igualmente vivas: “Vai assim até o teu próprio fundo e lá opera. As obras, porém, que lá operas, são elas todas vivas.”409 Portanto, enquanto Maria permanece detida na procura dos caminhos mais altos para Deus, Marta exerce um desprendimento constante que induz a um nada onde só se tem em conta a vivência cotidiana. Para Eckhart, não há nada para além desse nada. Não há nada para além da existência entre as coisas da vida. Não há outro lugar para existir senão o lugar sem lugar de nossa existência de corpo e alma, de ação e contemplação. Marta não se separa desse nada constitutivo – que é a existência incompleta, imperfeita, mas tem dentro dele a sua determinação essencial, ou seja, sua plenitude, sua excelência. É o nada do fundo onde não há mais nenhuma distância entre o operar do homem e a fonte desse operar. Um tal desprendimento não está à procura de um caminho especial para Deus, mas é ele mesmo um caminho para descobrirmos que Deus não é da ordem de um caminho. Enquanto Maria se mantém detida na busca de um caminho para Deus, ela ainda mantém dualidade de interior e exterior, de ação e contemplação, por isso ela ainda não é a verdadeira Maria.

Pensando nessa dualidade entre interior e exterior na qual ainda permanece o ser de Maria, Eckhart se remete, no seu sermão 55, à imagem do túmulo vazio: “‘Maria Madalena

      

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Essa noção eckhartiana pode ser aproximada a um texto budista: “Um dia, um velho monge veio sobre um barco comercial para comprar cogumelos. Ele era cozinheiro num monastério zen. O jovem Dôgen lhe pede para permanecer sobre o barco durante algum tempo para conversar com ele sobre o zen. Mas este velho monge lhe responde: ‘Eu não posso, é preciso que eu me ocupe da refeição de amanhã.’ – ‘Neste vosso monastério, diz Dôgen, não teria ninguém que se ocupasse da cozinha durante vossa ausência.’ – ‘A cozinha é meu estudo, retorquiu o monge, por que eu deveria abandoná-la a outro? No entanto, Dôgen não havia compreendido bem

No documento adrianaandradedesouza (páginas 154-168)