• Nenhum resultado encontrado

Da receptividade de Deus na alma

No documento adrianaandradedesouza (páginas 47-52)

A receptividade traduz o “lugar” na alma onde Deus se revela como a unidade de tudo que é. Esse “lugar” é o fundo onde Deus gera seu Filho e a nós mesmos enquanto este mesmo Filho. Nascimento do Filho, e identicamente nascimento da alma. Não cabe aqui o sentido lógico-representativo segundo o qual o homem seria cronologicamente nascido depois. Num único e mesmo movimento, Deus gera a alma no seu Filho e o seu Filho no fundo da alma, por todo seu Ser: “Decerto deveis ser distintos segundo o nascimento corporal. No nascimento eterno, porém, deveis ser um, pois em Deus não há senão uma origem natural. Por isso, ali só há uma processão natural do Filho, uma, não duas. Assim, se deveis ser um Filho com Cristo,

      

89

MESTRE ECKHART, S.22, p.155.

90

Ibidem, locus citato.

91

Cf. RUTH, Kurt. Initiation à Maître Eckhart – Théologien, prédicateur, mystique. Paris: Éditions du Cerf, 1997, p. 212s.

deveis ser uma única processão com a Palavra eterna.”92 Essa processão do Filho, e da alma nele, se revela como o ato pelo qual Deus se faz outro de si mesmo, sem que essa alteridade rompa com a relação que a vincula ao interior de uma unidade que é, por todo seu diferenciar- se, ela mesma. Ou seja, na geração do Filho e da alma, só há Deus que, nessa geração, gera tudo Nele mesmo. Nessa unidade de Deus, que o faz ser consigo mesmo em toda sua geração, se enraíza o ser do homem que é, ao mesmo tempo, aquele do Filho: “Se é para eu ser Filho, devo ser Filho no mesmo ser em que ele é Filho e em nenhum outro.”93 Portanto, se na geração do Filho, que é também geração do homem no e como Filho, só há Deus, que nesse gerar, gera por tudo Ele mesmo, tudo que é outro que Deus é acréscimo, sobra, nada. Por isso, quanto menos nos prendermos fora, tanto mais recebemos e somos o Filho: “O Pai apenas tem um Filho único, e quanto menos dirigimos nossa busca e nossa atenção a algo diferente do que a Deus e quanto menos espreitarmos para fora, tanto mais seremos transformados no Filho, e nessa medida o Filho é gerado em nós e nós somos gerados no Filho e nos tornamos um Filho.”94

A alma torna-se receptiva no silêncio de todas as suas operações exteriores, que é onde Deus encontra um lugar para sua geração. Ou seja, sendo só Ele mesmo, por todo seu ser, Deus encontra sua correspondência naquilo que, na alma, não é da alma – no silêncio: É o que dizem as palavras da Sabedoria, com as quais Eckhart inaugura seu sermão 101: “Quando todas as coisas estavam no meio de um silêncio, então do trono real desceu uma palavra secreta em mim”. Palavra secreta é Palavra de mistério, ou seja, Palavra ainda não pronunciada racionalmente. Isso significa que Deus é inexprimível até mesmo quando se faz Palavra: “Deus é enunciado e é inefável.”95 Essa Palavra acontece “no meio de um silêncio”. Mas o que é uma Palavra dentro do silêncio? O que é isso, o meio que silencia? A Palavra dentro do silêncio é o acontecimento de Deus pelo nascimento do Filho: acontecimento de Deus em Deus Ele mesmo.

Para Eckhart, o silêncio se correlaciona diretamente com o fundo da alma. Algo que nos permeia em tudo que temos ou não temos, em tudo que fazemos ou deixamos de fazer; algo que nos é assim tão próximo que nos tem, nos contém e que, portanto, é o que já sempre somos, é o que se compreende por silêncio. Silêncio, no seu sentido próprio, não é, porém,

       92 MESTRE ECKHART, S.46, p.261. 93 Ibidem, S.30, p.191. 94 Ibidem, S.41, p.241. 95 Ibidem, S.53, p.293.

algo circunscrito a uma linguagem enquanto criação ou condição humana. Isso implica dizer: silêncio não se confunde com o ato de calar ou falar, pois se pronuncia justamente onde todas as operações humanas se calam. Silêncio não é, assim, algo que nos pertence, como um fazer calar, ficar quieto. Somos nós que pertencemos ao silêncio, de tal maneira que nós mesmos o somos. Todavia, isto que nós mesmos somos, o que é nosso, raramente o pressentimos.96 Ou seja: esse silêncio é tão próximo que ofusca, obnubila. É proximidade resguardada, tida e contida em si mesma; é tão próximo que não reconhecemos. Como no prólogo de São João: “Ele estava no mundo, mas o mundo não o reconheceu.” O silêncio é o que em todo dizer (em toda expressão circunscrita a uma língua) permanece não dito, o que se preserva em toda entrega. Silêncio é, pois, o que nos envolve (a nós e a todas as coisas) em todas as nossas relações; e a isso que nos envolve chamamos o meio. Silêncio é meio, o meio da alma, instância de acontecimento de Deus:

Agora tomemos a primeira palavra que ele diz: “no meio do silêncio foi-me dita uma palavra secreta”. Ó, Senhor, onde está o silêncio e onde está este lugar onde a palavra foi dita? [...] Está no mais límpido que a alma pode efetuar, no mais nobre, no fundo, sim, no ser da alma, isto é, no mais abscôndito da alma. Ali, é o “meio silêncio”, pois ali nenhuma criatura pode entrar, nenhuma imagem; ali, a própria alma não possui atuação nem compreensão, não sabe de nenhuma imagem ou de qualquer criatura.97

A essa instância de acontecimento de Deus, que é, igualmente e num só movimento, acontecimento do homem, Eckhart nomeia “o lugar da alma” que é ele mesmo “sem nome”. O autor afirma que esse “lugar sem nome” é um “lugar para todas as coisas.”98 Isso significa que o silêncio do fundo da alma é, antes de tudo, também uma palavra sobre o mundo. Acontecimento de Deus, acontecimento do homem, acontecimento do mundo: ao gerar o Filho, Deus traz não só a humanidade à existência, mas a criação inteira. O nascimento de Deus é, num mesmo instante, o nascimento de tudo que é: “Deus sempre diz apenas um. Sua fala é só uma. Nessa fala única ele co-expressa seu Filho e Espírito Santo e todas as

      

96

Referência à passagem de Grande Sertão: Veredas: “O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!” Cf. ROSA, João Guimarães.

Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974, p. 79. 97

MESTRE ECKHART, S.101, p.191.

98

criaturas.”99 Essa fala na qual Deus se expressa ao gerar o Filho na alma – e com o Filho, o homem e o mundo, permanece em Deus, idêntica a Deus Ele mesmo.

Ora, o “ser” que nos é dado nessa fala é o ser do Filho, que, no fundo da alma, se revela como pura manifestação de Deus. Nosso “ser” já é sempre o ser do outro, é desde sempre condicionado pelo outro. Ou melhor, nosso “ser” é esse outro de nós em nós mesmos – esse estranho que somos antes de começarmos a ser. Mas, esse estranho que nós mesmos o somos, raramente o pressentimos. Em nosso cotidiano vivemos como se possuíssemos o “ser” por nós mesmos, como se esse “ser” nos fosse familiar. Essa familiaridade, que é o que primeiro caracteriza o ser criado em sua forma própria de dualidade, nos impede de reconhecer a plenitude de Deus em nós. Esse não reconhecimento de Deus se explica pela própria dinâmica de retração na qual Deus se mantém ao se exteriorizar no mundo e como mundo. A dinâmica através da qual Deus, saindo de si mesmo, ao gerar o Filho e, junto dele, toda a criação, identifica-se com essa exteriorização que nele permanece antes de fixar-se sobre si mesma. A permanência da exteriorização de Deus em Deus, ou a retração de Deus na sua exteriorização no mundo, é, para nós “ser” já sempre no outro e desde o outro, de modo que toda tentativa de tornarmos próprio esse “ser” é não reconhecer sua plenitude de ser de si mesmo em si mesmo. Ou melhor, essa plenitude divina já nos é sempre oculta, se por esse jazer oculto entendemos que Deus cria o mundo e todas as criaturas sem porquê – na pura retração de si mesmo. Assim, cada vez que nos mantivermos presos a essa exteriorização de Deus, dela nos apropriando, permaneceremos reduzidos a uma autonomia ilusória, que é nada. E porque isso que Deus põe para fora Dele permanece dentro Dele mesmo no Mistério da Filiação divina, essa autonomia ilusória ou a exteriorização de Deus fixa sobre ela mesma tende a se abrir em retorno ao silêncio do qual ela procede e que, enquanto abertura, permanece seu fim. Essa abertura é a marca da unidade originária no seu outro, marca que não é senão a gratuidade de Deus, que só pode doar-se a si mesmo e em si mesmo, ou seja, só pode doar-se “no modo de um nascimento.”100 Por causa do seu nascimento eterno no fundo, por causa desse silêncio que a constitui no seu fundo como pura receptividade, a alma aspira à abertura em retorno ao que, nela, é mais nobre do que a criatura enquanto tal. Segundo Eckhart, esse retorno se cumpre pelo repouso da alma em relação a tudo que é ela mesma enquanto criada – retorno através do qual a alma se descobre como pura receptividade de

      

99

MESTRE ECKHART, S.30, p.191.

100

Deus. Ou seja, o repouso alcançado no retorno não exclui a atividade, mas é ele mesmo a condição da ação de Deus, que não é outra senão dar nascimento ao Filho.

É assim que o tema eckhartiano do nascimento de Deus na alma está articulado pela similaridade de dois objetos: saída e retorno. É dentro dessa dinâmica de saída e retorno que o “homem é gerado todo o tempo em Deus.”101 É assim que, para ele (para o homem), a saída não encerra de uma vez por todas uma ruptura, porque a esse sair responde um permanecer que faz com que a própria saída seja ela mesma a condição de uma abertura em retorno:

Quando Deus fala na alma, então são ela e ele Um; tão logo, porém, esse Um decaia <para fora ou, do íntimo da alma para dentro das forças da alma e dali, através dos sentidos, para fora, nas criaturas>, torna-se dividido. Quanto mais ascendemos com nosso conhecimento, tanto mais somos Um nele <no Filho>. Por isso o Pai enuncia o Filho todo o tempo na unidade e derrama nele todas as criaturas. Todas elas fazem um apelo para retornar para <lá> dentro, de onde efluíram. Toda sua vida e seu ser, tudo isso é um apelo e um apressar-se para lá de onde partiram.102

Observa-se aqui a afirmação da transcendência de Deus, e também da sua imanência no fundo da alma. Esse fundo é a abertura na qual Deus se mantém ao se exteriorizar no “outro” e como “outro” – a abertura por meio da qual a alma pode retornar ao lugar onde ela é pura receptividade de Deus. E se essa receptividade aparece como a condição para que a ação divina tenha lugar na alma, ela não é a ultima palavra do ensinamento eckhartiano. Vimos que é na pura receptividade da alma que tudo deixou que se cumpre a identidade entre ela e Deus no nascimento do Filho. Por sua vez, essa identidade no retorno não quer dizer excluir a exterioridade, mas desprendê-la de toda sua pretensão de autonomia, de modo que ela se abra segundo a gratuidade de Deus. Só então essa identidade originária se cumpre por se cumprir – sem porquê. O retorno não é inteiramente sem porquê: a busca por algo para além da existência exterior requer ainda a afirmação de um lugar exterior a Deus Ele mesmo. Em contrapartida, a ação sem porquê é inteiramente gratuidade. A última palavra do retorno é o cumprir-se gratuito da identidade de origem entre Deus e alma no fundo. É nesse sentido que Eckhart afirma que não só o Filho é por Deus gerado na alma, mas a alma, num mesmo instante, gera o Filho em Deus: “Aí o Pai gera seu Filho unigênito num instante presente e a

      

101

MESTRE ECKHART, S.40, p.235.

102

alma renasce em Deus. Tantas vezes que ocorrer esse nascimento, tantas vezes a alma gera o Filho unigênito.”103

Pois bem, a doutrina da receptividade da alma expressa o ato pelo qual Deus, em sua transcendência absoluta, se faz presente (imanente) na alma vazia, enquanto que esta se descobre como o lugar onde o divino pode se manifestar. Tão logo a alma se descobre como pura receptividade de Deus, surge ainda nela o caráter determinado de um lugar para Deus. Mas, se esta vacuidade é ela mesma a condição da ação de Deus na alma, pode-se dizer que o pensamento eckhartiano evolui sobre esse ponto. Acabou-se de se considerar a receptividade da alma como uma atitude prévia a uma experiência mais radical ainda: a fecundidade da alma em Deus.104 Essa fecundidade constitui o que nós chamamos aqui a terceira reflexão essencial do fundo da alma, e se coloca lá onde começa a vida divina trina. A pura receptividade é insuficiente porque nela não há ainda sincronia com Deus, que em toda sua fecundidade – seja ao gerar o Filho ou ao criar o mundo – permanece Ele mesmo. Só na fecundidade a alma torna-se semelhante a essa pureza na qual Deus, em si mesmo, é. Ou seja, por essa fecundidade, a alma deixa de ser em si mesma para ser na vida de Deus: “Assim, na alma, Deus é conhecido com Deus; então a alma conhece a si mesma e todas as coisas com essa sabedoria, e esta mesma sabedoria a conhece como Ele próprio; e com a mesma sabedoria, a alma conhece a soberania paterna, na <sua> fecunda força de gerar e esti-dade (istikeit) essencial, em unidade simples, sem qualquer diferenciação.”105

No documento adrianaandradedesouza (páginas 47-52)