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Criação e eternidade: a temporalidade do instante

No documento adrianaandradedesouza (páginas 110-114)

CAPÍTULO 2 C RIAÇÃO E NEGATIVIDADE : QUANDO O FIM ESTÁ DENTRO DO COMEÇO

2.6 Criação e eternidade: a temporalidade do instante

Deus cria no começo, ou seja, in principio, o que quer dizer que tudo que vem de Deus permanece em Deus Ele mesmo: “fora de Deus, quer dizer, fora do ser não há nada. Então, ou bem ele não criou ou bem ele criou todas as coisas nele, o princípio.”266 Na geração do Filho e de todas as coisas nele, ou seja, na criação no princípio é Deus Ele mesmo que a si se gera, sem que haja nada para fora Dele: “É, no entanto, simultaneamente e de um só golpe que Deus é, que ele gera seu Filho que lhe é em todos os pontos co-eterno e co-igual e que ele também criou o mundo, segundo Job: <<Deus fala de uma vez por todas>> E ele fala gerando o Filho, porque o Filho é o Verbo. E ele fala criando as criaturas.”267 O fruto dessa obra divina não é outro senão Deus Ele mesmo, isto é, um obrar divino que é seu Ser Ele mesmo: “Ali <em Deus> não há devir, apenas um instante, um devir sem devir, um ser-novo sem renovação, e esse devir é seu ser. Em Deus é tão sutil e ali não pode entrar renovação.”268 Esse devir em Deus, o que quer dizer a revelação de Deus no Filho, teria o sentido de uma concretização que manteria o Ser de Deus por todo Ele mesmo, para além de toda oposição.

Nessa identidade primeira entre ser e devir mora a estranheza de uma temporalidade – a que Eckhart nomeia um instante, ou devir sem devir – em que o começo começa antes do mero começar: “Deus gera as suas obras em si mesmo e a partir de si mesmo num mesmo instante.”269 Esse instante, ou devir sem devir, ao contrário de um simples começo fixado num tempo atrás, é o que está sempre começando a ser. É o que insistentemente sempre começa, o que insistentemente precisa começar. Não cessa de começar, porque é Deus Ele mesmo que sempre começa em todo começo: começo sempre antigo e sempre novo, por começar sempre em Deus Ele mesmo. Se é nesse começo que Deus é e cria o mundo, sendo por toda sua criação Ele mesmo, pode-se dizer que esse mesmo começo é sempre dinâmico, não pontual, sem antes e depois, sempre no agora – a que Eckhart chamou o agora da eternidade. O instante expresso como esse “agora” traduz o tempo do começo de Deus, que é começo de todas as criaturas Nele. É o tempo dessa plenitude insondável que não é nem antes, nem depois, pois sendo ela mesma o Ser, é tudo que foi, é e será.

      

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ECKHART, Maître. L’oeuvre latine de Maître Eckhart. Le commentaire de la Genèse précédé des prologues. Traduction Fernand Brunner. Paris: Éditions du Cerf, 2007, p. 67.

267

Ibidem, p. 251.

268

MESTRE ECKHART, S.50, p.280s.

269

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier et al. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 185.

Pois bem, se Deus é na medida exata em que gera seu Filho e todas as criaturas, tem- se que Deus não pode ser antes e nem depois: “a geração é instantânea, não sucessiva, e ela não é por um movimento, mas o termo de um movimento.”270 O que o Filho revela não é um Deus antes escondido, mas o dinamismo mesmo de Deus em seu ser por tudo Ele mesmo. Ao criar tudo a partir de si mesmo e em si mesmo num mesmo instante, Deus cria no passado, no presente e no futuro. Deus é todo inteiro naquilo que foi é e será. É todo inteiro no tempo, de maneira tal que Ele é todo inteiro fora do tempo. Esse ser por tudo Ele mesmo reflete a eternidade divina não oposta à temporalidade que ela mantém no seu ser. Por isso, porque Deus cria tudo em seu Ser ele mesmo, criar e ter criado é, para Ele, uma e a mesma coisa. Deus criou de uma maneira tal que continuará criando sempre, eternamente:

Deus enquanto ser faz tudo no ser e pelo ser, Sg 1: <<Ele criou todas as coisas, afim que elas fossem.>> Ou o ser é o princípio e o começo de todas as coisas. De onde resulta que toda obra de Deus é nova, Sg 7: <<permanecendo em si, ele renova todas as coisas.>>; Ap 22: <<então, eu faço todas as coisas novas.>>É porque ele disse em Is 1: <<Eu sou o primeiro e o último.>> Assim então <<ele criou>> de tal maneira, nada menos do que como ele cria sempre. No entanto, o que está no começo aquilo do qual o fim é o começo, surge sempre, nasce sempre, sempre nasceu. Daí Agostinho no primeiro livro das Confissões: <<Todas as coisas de ontem e do passado, tu as farás hoje, tu as fizeste hoje.>> Então, <<ele criou>> todas as coisas <<no começo>>, porque (ele as criou) nele (que é) o começo, e, ainda uma vez, ele criou nele, o começo, porque ele cria as coisas passadas e anteriores hoje como no começo e como no primeiro momento.271

Deus, sendo por tudo Ele mesmo, ou seja, lugar e localização de tudo que é, é Nele mesmo que ele obra e cria todas as coisas. Para Ele, criar é ser: é ser por toda a criação Ele mesmo. Se, então, não pode haver nem antes nem depois de Deus no instante de sua obra criadora, a sua criação deve ser contínua. Ou seja, porque Deus cria in principio, quer dizer, Nele mesmo, Ele cria sempre: “Deus se dá à alma sempre de novo num tornar-se contínuo. Ele não diz: ‘Se tornou’ ou ‘há de tornar-se’, sendo continuamente novo e fresco, como num incessante tornar-se.”272 Por isso, criação não é, para Eckhart, um momento pontual de criação, mas a relação constante de Deus e alma no fundo incriado desta – o mesmo que ela recebe de Deus e que permanece em Deus. Esse tornar-se de Deus na alma é contínuo, porque

      

270

ECKHART, Maître. L’oeuvre latine de Maître Eckhart. Le commentaire de la Genèse précédé des prologues. Traduction Fernand Brunner. Paris: Éditions du Cerf, 2007, p. 83.

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Ibidem, p. 65.

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nele não há nenhum outro ser senão o próprio tornar-se ele mesmo. Não se torna nada para fora dele mesmo. De fato, assim como não há nada antes do Ser – visto que Deus é no momento em que gera o Filho e todas as criaturas, assim também não há nada depois do ser, porque o Ser é o elemento de toda existência em devir: Deus é Ele mesmo, por tudo.

É por causa dessa mesmidade que a criação é eterna. Eternidade não significa estar fora do tempo, mas a dinâmica constitutiva de toda temporalidade. O eterno, ou o tempo do instante, só se distingue da temporalidade sucessiva (sucessão de presente, passado e futuro) pelo apego nascido de uma ilusão de dualidade sustentável somente do lado da criatura. Encoberto por essa ilusão, está o sentido segundo o qual todas as criaturas são a cada vez criadas novamente neste mesmo princípio. Toda criatura, para se manter em sua estrita finitude, se descobre como uma dimensão mesma desse princípio que está sempre começando a ser. Princípio e finitude, isto é, criar e criado, eternidade e tempo, são, portanto, simultâneos e idênticos. Isso implica que a criação, tal como Eckhart a compreende, não traduz um acontecimento marcado num tempo que tenha ficado para trás; ela acontece todo o tempo, porque acontece na radicalidade do tempo: “[...] o que Deus fez e criou há mil anos e o que <há de fazer> daqui a mil anos e o que ele faz agora não é nada a não ser uma obra.”273

Deus faz sua obra por inteiro Ele mesmo, de tal modo que está presente inteiramente em tudo: “Deus é em todas as coisas, quanto mais ele é nas coisas, tanto mais é fora das coisas [...] Já diversas vezes tenho dito que Deus cria todo este mundo, plena e inteiramente, agora, neste instante. Tudo que Deus criou outrora há seis mil anos ou mais, quando fez o mundo, Deus o cria agora de uma vez.”274 Eckhart não nega que a criação seja também temporal, mas ela não termina no tempo: “Santo Agostinho diz: ‘Deus criou todas as coisas, não no sentido de tê-las deixado vir à existência e depois seguir seu caminho, mas Deus as criou e nelas permaneceu.’”275 Deus criou todas as coisas de tal forma que Ele não cessa de criar. Deus cria sempre e começa sempre a criar. Isso porque, para Eckhart, o fim da criação, enquanto ela é eterna, não é que as criaturas sejam criadas enquanto tal, mas que elas permaneçam em Deus, no começo. Deus, enquanto que Ele é só o ser, é o começo e o fim de

       273 MESTRE ECKHART, S.39, p.232. 274 Ibidem, S.30, p.190. 275 Ibidem, S.30, p.192.

tudo que é. Assim, porque ela não termina nela mesma, a criação começa sempre, é sempre um fazer, um vir a ser, nunca um fato, um fez.276

Segue, então, que a criação é temporal enquanto dada a uma concretude contingente e perecedora, mas como o começo de Deus, ela só pode ser eterna. Esta eternidade do começo de Deus – que é começo de toda a criação Nele – se expressa como a dinâmica constitutiva do próprio tempo em sua transitoriedade. Ou seja, o temporal, para manter-se em sua estrita transitoriedade, se converte na expressão mesma da eternidade, enquanto o que está continuamente começando a ser. Por isso, criação não é, para Eckhart, um ato fixado num determinado marco histórico, mas a relação dinâmica sempre viva entre o Criador e a criatura: criação contínua.277

Nesse sentido, o começo da criação não tem fim, porque ele mesmo coincide com o fim. Toda sucessão de presente, passado e futuro está no nada da criação temporal. A criação, no entanto, está sempre e simultaneamente em relação ao instante no qual Deus enviou seu Filho: “Tudo que é passado e tudo que é presente e tudo que é porvindouro, tudo isso Deus cria no mais íntimo da alma [...] o Pai gera seu Filho no mais íntimo da alma e gera com seu Filho unigênito a ti como algo não menor do que ele. Se é para eu ser Filho, devo ser filho no mesmo ser em que ele é Filho e em nenhum outro.”278 Essa identidade entre a operação criadora e a geração do Filho se encontra no fundo da alma, onde ela é constituída por uma indistinção com o ser divino, por ser exatamente o lugar onde Deus a ela se comunica, na geração do Verbo, para além de toda distinção no tempo. O tempo da criação é, portanto, aquele do instante no qual o Verbo é gerado na alma. Essa unidade do instante, em que se unem presente, passado e futuro, não é outra que o princípio expresso como “plenitude do tempo”:

São Paulo diz: ‘Na plenitude do tempo Deus enviou seu Filho’ (Gl 4,4) [...] A ‘plenitude do tempo’ seria a habilidade e o poder de atrair e juntar para dentro de um instante presente o tempo e tudo o que já aconteceu em seis mil anos e o que ainda há de ocorrer até o fim dos tempos.’ Ele é o instante da eternidade em que a alma conhece todas as coisas em Deus, na novidade, no frescor e no presente, e       

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Referência ao poema, de João Cabral de Melo Neto,“Como e por que sou bailadora”: Quando era menina e

moça / tinha comprida cabeleira / que me vinha até as cadeiras. / Me diziam: com essas tranças / não pode não voltar-se à dança. / Então, me ensinam a dançar. / Sou? O que não pude decorar. / Vendo famosa Bailadora: / ei-la apagada, quase mocha. / Não te agrada F... de Tal, / Que todo dia sai no jornal? / Não gosto: dança repetido; / dança sem se expor, sem perigo; / dançar flamengo é cada vez; / é fazer; é um faz, nunca um fez. 277

HAAS, Alois Maria. Visión en azul: estudios de mistica europea. Madrid: Siruela, 1999, p. 74.

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com igual prazer como <conheço aquelas coisas> que tenho num piscar de olhos, agora diante de mim.279

A plenitude do tempo é o tempo como pura acolhida do eterno, se por eterno entendemos que Deus cria todas as coisas Nele mesmo, enquanto pura gratuidade. Essa plenitude do tempo se deixa ver cada vez que o tempo não for nada mais que essa acolhida, o que significa ser todo dentro da sua transitoriedade, que só se mantém pelo retorno contínuo à eternidade na qual ela se constitui. Essa plenitude do tempo não é ela mesma a posse de um lugar que é fora do tempo, mas o ser temporal pura e simplesmente – o ser que a alma recebe de Deus e que permanece em Deus. Assim, cada vez que o tempo se realiza em sua transitoriedade, em sua finitude, de tal forma que não haja nele nenhum outro ser senão o próprio devir ele mesmo, isto é a plenitude do tempo – isso é o fundo da alma no qual Deus envia seu Filho: “Essa ‘vida eterna’ eu lhes dou, isto é, a mesma que o Filho possui na primeira irrupção, no mesmo fundo, na mesma limpidez e no mesmo gozo; vida eterna, na qual ele tem sua própria bem-aventurança e possui seu próprio ser.”280 Portanto, o sentido último da criação, enquanto ela é eterna, permanece sendo aquele de nenhuma criatura. Esse começo de Deus em Deus Ele mesmo, Eckhart o explica através de um jogo especular que evidencia essa permanência do mesmo no seu “outro”. Cumpre-nos ainda tentar demonstrar o modo como Eckhart elabora essa questão do começo de Deus a partir de uma teoria da imagem.

No documento adrianaandradedesouza (páginas 110-114)