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O ser próprio: quando o operar opera dentro do ser

No documento adrianaandradedesouza (páginas 65-72)

A negação das operações da alma, como condição para se alcançar o fundo, não significa a aniquilação de todo operar, mas, antes, o elevar-se do operar ao nível do ser. Esse operar no ser é o que há de mais próprio. É na negação do próprio, isto é, do sujeito de “propriedade”, que se dá abertura para o ser próprio. Esse ser próprio não significa a mera recusa do operar em geral, mas a recepção desse operar no que ele é no seu ser antes de operar para isto ou aquilo. A operação das forças da alma de modo algum poderia ser excluída, como se a elas fosse inerente alguma espécie de dano do qual precisaria desfazer-se para se alcançar um suposto algo mais além.

O mais além das forças da alma não é outro em relação à alma, mas um mais além da alma na alma ela mesma. Isso significa que nessa negação não se exclui a operação da alma, porque só se quer excluir o apego a ela. No fundo da alma o ser é no operar e o operar é no ser. Essa fórmula não tem sentido no espaço da objetividade, porque nele o operar será sempre um operar para isto e aquilo. A atitude negativa recai exatamente sobre esse operar que opera fora do ser, enquanto apegado a ele mesmo. No fundo, porém, a operação das forças da alma é verdadeiramente o que ela é, que é ser sem poder fixar-se sobre si mesma – ser ao sabor de um operar que se sabe incapaz de esgotar a riqueza suprema do fundo da alma. Essa operação não suficiente nela mesma é o que mantém vivo o fundo. Ou seja, o fundo simplesmente não pode ser sem as operações das forças da alma. Em cada operação operando

para dentro de si mesma, o fundo se dá inteiro, total, em cheio – ele permanece, por toda sua operação, ele mesmo. Isso implica que o mais além do fundo em relação à operação das forças da alma é um mais além que é o mais próprio dessa mesma operação em seu ser sem ser nada para fora de si mesma. Por isso, o fundo da alma não é distinto de amar, querer, ter, saber, pensar... Esta indistinção é o que Eckhart traduz no seu sermão 83, como “portar um anel de ouro”: “‘Deveis ser renovados no espírito’. Se queremos ser renovados no espírito, cada uma das seis forças da alma, as superiores e as inferiores, devem portar um anel de ouro, recoberto com o ouro do amor divino.”138

“Portar um anel de ouro” significa, para as forças da alma, a indistinção com o fundo, ou seja, a operação sem finalidade nenhuma, aquela que opera por operar, opera por nada, por coisa nenhuma: “Quem, porém, perguntasse a um bom homem ‘porque amas a Deus’? ouviria: ‘Não sei – por e para Deus’; e ‘porque amas a verdade?’ – ‘Por e para a verdade’; ‘porque amas a justiça?’ – ‘Por e para a justiça’; ‘porque amas a bondade?’ – ‘Por e para a bondade’; e ainda quem perguntasse ‘porque vives?’, receberia como resposta: ‘Juro que não sei, gosto de viver.’”139 Esse operar por operar não tem qualquer razão de ser para fora de si mesmo. Nele, o fundo se dá inteiro, e é, por tudo – o que inclui também a operação – ele mesmo. Esse dar-se inteiro do fundo significa ser ele mesmo em todo o seu ser, até mesmo na multiplicidade da operação das forças da alma. Ou melhor, o fundo não se distingue do múltiplo da operação que ele mantém no seu ser. Essa multiplicidade, não oposta, no fundo, à unidade mesma que ele é, é totalmente mantida. Portanto, “portar um anel de ouro”, talvez seja isto a riqueza maior de não ter que excluir nada, nem buscar o que quer que seja, por ser já tudo desde antes de ter sido: a alma é todas as coisas. “Portar um anel de ouro”, seria, numa instância, a unidade de ser e de operar no Ser que permanece si mesmo em tudo:

Falei muitas vezes de uma luz que está na alma, de uma luz incriada e incriável. Nessa luz, que costumo sempre tocar em meus sermões, essa mesma luz recebe a Deus imediatamente, sem encobrimentos, despido, como ele é em si mesmo. Isso é uma recepção na realização do nascimento interior. Assim posso em verdade dizer, outra vez, que essa luz tem mais unidade com Deus do que com qualquer outra força <da alma>, com a qual está em unidade de ser. Pois deveis saber que essa luz, no ser de minha alma, não é mais nobre do que a ínfima e a mais grosseira das forças como o ouvir ou o ver ou qualquer outra força, a qual a fome ou a sede, o frio ou o calor podem afetar. Isso reside em que o ser é simples. Enquanto se tornam as forças <da alma> no ser, elas são todas um e igualmente nobres.       

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MESTRE ECKHART, S.83, p.119.

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Tomando-se, porém, essas forças no seu operar, uma é mais nobre e elevada do que a outra.140

A alma é incriada não porque ela possui nela mesma um lugar que é incriado, mas por causa do ser ou da vida que ela recebe de Deus e que permanece em Deus. Assim, cada vez que se realiza esse operar puro e simples, de tal forma que não haja nele nenhum outro ser senão o próprio operar ele mesmo, isso é incriado – isso é o fundo da alma. Cada vez que Eckhart fala de fundo da alma, de incriado, ele fala ao mesmo tempo da vida ou do ser da alma devidamente exercitados. Esse incriado se revela cada vez que a vida não possuir objeto nenhum fora do próprio viver – cada vez que seu operar for idêntico ao seu ser. É criado, porém, cada vez que se possuir um certo ser de acréscimo à vida divina que habita em nós.

A alma é, portanto, incriada quando ela não intenta operar por nenhuma razão fora da vida que permanece nela, nem por Deus, nem por si mesma, nem por qualquer coisa que seja exterior, mas somente pelo que nela é o próprio ser e a própria vida. Esse operar no ser só se mostra no repouso de uma operação em perspectiva de dualidade. Ou seja, quando o operar, de início, operando desde um lugar separado, se descobre como um não-lugar que opera em unidade com o ser. Portanto, o repouso de todo operar não quer dizer uma negação pura e simples – uma simples negatividade negativa. Ele qualifica o operar enquanto ser, ou seja, o ser sendo unidade múltipla. A negação no repouso ganha uma afirmação dinâmica na qual o operar se revela a si mesmo como exercício do ser que ele é antes de se determinar como isto ou aquilo. O homem já não precisa, nesse sentido, buscar repouso na profundidade de si mesmo: seu operar é na profundidade do ser e a profundidade do ser é no operar.

Numa última instância, a alma é incriada porque sua operação é idêntica à operação divina. Essa identidade significa a capacidade da alma de operar desde o mesmo fundo pelo qual Deus Ele mesmo opera. Essa capacidade da alma é sua maior pureza: “os puros de coração verão a Deus.”141 Os puros de coração contemplam o fundo de si, que possibilita, ao mesmo tempo, contemplar o fundo de Deus. Essa pureza implica operar de forma gratuita – sem porquê. Nessa operação, a multiplicidade da distinção – não se fixando sobre ela mesma – não se opõe à unidade indistinta na qual Deus e alma coincidem antes de tudo. No fundo, a alma torna própria essa operação mesma pela qual Deus, saindo de si mesmo, sai inteiro, de modo que a multiplicidade da distinção para a qual conduz essa sua exteriorização permanece

      

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MESTRE ECKHART, S.48, p.260s.

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Nele não oposta ao Um que Ele mesmo é. Essa operação, que é na alma não sendo mais da alma, rompe com a distância que separa o ser do operar. Um operar, assim, idêntico ao ser é a só manifestação desse ser, mais nada.

[...] Ele deve ser o nosso próprio e nós devemos operar a partir do nosso próprio. Assim como Deus opera todas as coisas a partir do que é seu próprio e através de si mesmo, nós <também> devemos operar a partir do que é próprio, que é Ele em nós, Ele é total e plenamente nosso próprio e nele todas as coisas são nosso próprio [...] E se devemos chegar a esse próprio, de sorte que todas as coisas sejam o nosso próprio, então precisamos tomá-lo de igual modo em todas as coisas, em uma não mais do que em outra, pois Ele é igual em todas as coisas. 142

Esse operar, que é pura manifestação do ser, tem, para nós, o mesmo sentido do fluir silencioso do sangue na veia que, entranhando a pele, nessa pele se expõe na mesma medida em que, nela, se retrai. Essa mesmidade do nem somente dentro, nem totalmente fora, a que Eckhart alude ao identificar ser e operar, se refere à própria mesmidade na qual a Deidade se mantém, ao permanecer retraída no mundo que dela advém. Essa mesmidade esclarece a ideia de um operar interior que é, ao mesmo tempo, interior e exterior. O exterior aqui significa a pele na qual a veia se expõe, se mostra. A pele (o exterior) é a superficialização na retração do fundo (o interior). Ou seja, a pele é ela mesma una com a veia que ela manifesta. Isso quer dizer que operar para o exterior não é distinto de permanecer no interior, que tornar-se interior no ser ou no fundo é o mesmo que operar no silêncio do exterior. Essa mesmidade do ser e do operar, do interior e do exterior é a instância onde o operar se encontra como puro operar, livre de todas suas determinações. Assim como o fluir do sangue na veia é una com a pele que ela mantém viva, assim também o operar é um com o ser na superfície mesma do mundo. Alcançar essa mesmidade, que traduz a própria dinâmica de manifestação de Deus – de si mesmo em si mesmo, significaria, para o homem, manter-se no interior, fixando-se ao mesmo tempo no silêncio do exterior. Mas como isso se dá?

Trata-se de uma tarefa cujo sentido é de uma não dualidade do ser e do operar: é um estar centrado no ser, estando centrado no operar, e um estar centrado no operar, estando centrado no ser. Para o Mestre, esta tarefa só se torna possível quando o homem une a existência de todas as coisas à sua própria existência, esvaziando-se de todas as suas possíveis determinações. Este mais além de todas as coisas é transcendentalmente real como

      

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possibilidade da existência das coisas como são em si mesmas. Ou melhor, o repouso de todas as coisas no ser é a condição de um operar radicalmente em todas as coisas. É preciso, então, atravessar a perspectiva na qual se pensa que todas as coisas existem objetivamente e deixar ser a perspectiva que, no homem, não se reduz a uma existência objetiva – aquela do incriado: quando o operar for verdadeiramente puro operar, ou seja, o si mesmo em si mesmo.

O incriado não se refere a algo que esteja fora do mundo, mas à pureza desse mesmo mundo. Trata-se dessa condição de ser sem ser objetivamente separado das coisas – a condição de ser não sendo nem isto nem aquilo. Essa plenitude de ser antes de ser isto ou aquilo – a que Eckhart chamou o ser quando ainda não era, ou seja, algo no homem que seria incriado – é mundo:

Ele enviou-o ao mundo. Um dos significados do mundum é “puro”. Atenção! Deus não tem lugar mais próprio do que um coração puro e uma alma pura. Ali o Pai gera seu Filho, como o gera na eternidade, nem mais nem menos. O que é um coração puro? É puro o que foi isolado e separado de todas as criaturas, pois todas as criaturas mancham, porque elas são um nada. Nem os anjos nem as criaturas são um algo. As criaturas têm tudo em tudo e mancham, pois são feitas de nada. Elas são e eram nada. O que é contrário e cria desgosto a todas as criaturas é o nada. Se colocasse uma brasa ardente em minha mão, ela me causaria dor. Isso vem somente do “não”, e se fôssemos livres do “não”, então não seríamos impuros.143

Mundo, aqui, não pode ser compreendido como a soma de todas as coisas materiais e não materiais dentro de um espaço físico determinado. Mundo, para Eckhart, é a pureza dessa inseparabilidade de fundo que contém todas as criaturas justo no momento em que elas não são ainda. Tal pureza, assim, só se mantém viva nessa inseparabilidade onde nada ainda se determinou como isto ou aquilo. A alma não está apenas no mundo, como se este constituísse para ela seu receptáculo físico, mas alma tem e contém mundo enquanto o que ela já sempre é. A pureza da alma seria então essa descoberta de si mesma em sua inseparabilidade nasciva a todas as coisas. Mundo é essa pureza pela qual a alma se relaciona de modo imediato com as coisas, antes mesmo que ela possa apreendê-las separadamente como isto ou aquilo. Essa inseparabilidade de fundo manifesta a pureza da alma numa ordem em que ela não pode ainda conhecer objetivamente qualquer coisa, exatamente porque numa tal ordem todas as coisas são vistas na possibilidade de existência que elas possuem no fundo. Numa tal ordem, a alma

      

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não busca ser, por ser o que ela simplesmente é. Nela, a alma é sem busca, pois já é tudo que vier a ser. É o já ser ou a inseparabilidade anterior a qualquer consciência.

Nesse sentido, o incriado é primeira e indissociavelmente um aceno sobre o mundo. Deus, homem e mundo perfazem o espaço dessa inseparabilidade144 na qual "[...] todas as coisas estão presentes. O que é acima de mim, me é tão próximo e tão presente como aquilo que é aqui, junto a mim; e lá, receberemos de Deus o que dele devemos ter.”145 No incriado tudo o que é está presente: Deus, o homem e o mundo. Nele, tudo que é, é idêntico e inseparável. Essa identidade antecede qualquer separação ou dualidade operada entre imanência e transcendência, entre unidade e multiplicidade. Nela, a diferença e a dualidade são dimensionadas no dinamismo do jogo do começo no qual o outro se concretiza como o Filho, que confere ser a todas as criaturas – no qual ser e operar são o mesmo. Essa mesmidade é o “lugar” do incriado, no qual todas as coisas são concebidas, não mais nas suas particularidades, mas no fundo em que elas são idênticas a Deus e são em Deus.

O fundo da alma é o lugar onde o operar se encontra como puro operar, livre de todas as suas possíveis determinações. Um operar idêntico ao ser é o que Eckhart chama um operar de um “modo sem modo”146, que é só o modo pelo qual Deus Ele mesmo opera. Deus não opera onde há operação por este ou aquele modo. Deus opera sem modo porque não opera por nenhum modo para fora Dele mesmo, e, por isso, opera em todos os modos, opera sempre, de maneira contínua. Esse operar sem modo, isto é, em identidade com o próprio ser, é, em Deus, a amplitude e vastidão de sua criação que jamais se esgota no criado. Só no “sem modo” dá-se criação sempre ainda em vias de criar – criação contínua.

O único “lugar” onde essa criação pode se dar é no fundo da alma, pois o ser de Deus é o ser verdadeiro da criatura em seu fundo. Por isso, quanto mais vazia de imagens a alma for, mais ela é o que já sempre foi: “lugar” de manifestação da criação, isto é, de Deus. Não sendo nada em si e por si mesma, a alma é só a força dessa operação divina, que cria para dentro de si mesma. Só no vazio de si, ou seja, no fundo, a alma é cada vez e sempre de novo, esse operar do ser, onde criar e ser criado são o mesmo. É no fundo da alma que se dá esse encontro entre ser e operar, um e dois. O fundo é ele mesmo esse “entre” que ao mesmo tempo une e separa ser e operar, um e dois. Esse aberto do “entre”, para o qual nos abriu o tema da alma, dirige o sentido de uma busca no pensar de Eckhart: essa ambiência de

      

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SCHÜRMANN, Reiner. Maître Eckhart ou la joie errante. Paris: Éditions Planète, 1972, p. 203

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MESTRE ECKHART, S.5a, p.62.

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“intermeio” como ambiência da Abgeschiedenheit. Ambiência que já é sempre esse encontro Um-Dois, Dois-Um, que permite compreender a dinâmica de criação e retorno de todas as coisas para Deus. A chave para se pensar essa questão, que pretende ser o tom fundamental deste trabalho, é a criação tal como Eckhart a compreende.

No documento adrianaandradedesouza (páginas 65-72)