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A Amazônia real e imaginária: colonização, abandono e exploração

3 HISTÓRIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA AMAZÔNIA: O

3.1 A Amazônia real e imaginária: colonização, abandono e exploração

Para falar de Amazônia, é preciso considerar a diversidade como pressuposto de análise. A região, considerada um subcontinente pelo tamanho de suas dimensões geográficas, compreende oito países e um departamento ultramarino da América do Sul (compostos por Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Equador, Bolívia, Suriname, Guiana e Guiana Francesa), totalizando um território de sete milhões de quilômetros quadrados e a maior biodiversidade ecossistêmica do planeta.

Referimo-nos aos milhares de espécimes animais e vegetais abrigados na maior floresta tropical úmida do mundo. É também dentro de suas dimensões que está concentrada cerca de 20% das reservas de água doce do planeta, o maior conjunto hidrográfico conhecido pelo ser humano e também seu maior rio, o Amazonas, com aproximadamente sete mil quilômetros entre sua nascente nos Andes peruanos e sua foz no Oceano Atlântico, entre os estados do Pará e Amapá.

Mais de 60% da Amazônia está circunscrita a terras brasileiras, localizada ao longo de nove estados (Tocantins, Mato Grosso, Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará e Maranhão), também conhecida como “Amazônia Legal”. Segundo o último censo de 2010,51 vivem na região aproximadamente 20 milhões de pessoas de uma heterogeneidade que vai desde tribos indígenas isoladas do Alto Rio Negro e Solimões52 até comunidades asiáticas e do oriente médio que moram em seus principais centros urbanos, como Manaus e Belém.

51 Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=8. Acesso em: 12 jan. 2017. 52 Segundo a Funai, foram descobertos até agora cerca de 28 grupos de indígenas que vivem isolados sem

contato com a civilização ocidental. Destes, os que vivem no Vale do Javari (Rio Solimões) e os Yanomami (no Rio Negro) são alguns dos mais conhecidos. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil- atual/quem-sao/Indios-isolados. Acesso em: 24 set. 2017.

Figura 10 – Mapa da Pan-Amazônia Fonte: Pinterest.com (2017).

Essa diversidade territorial e humana foi resultado de séculos de migrações e ciclos econômicos inaugurados a partir do processo de colonização portuguesa. Meggers (1987, p. 209) afirma que a chegada dos exploradores europeus no início do século XVI trouxe várias consequências para a região, que a partir de então ficou voltada à exploração comercial e não ao povoamento, diferentemente de outros locais ao sul da colônia, como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo. Segundo a autora, a Amazônia ficaria, pela primeira vez em sua história, sob influência contínua de um agente que era “extracontinental” e, portanto, “imune às forças modeladoras da natureza e da seleção natural local”.

O processo de colonização do “Novo-Mundo” como um todo foi um dos maiores derramamentos de sangue da história da humanidade dos últimos cinco séculos.53 Na Amazônia, esse contato entre povos autóctones e europeus não foi diferente, regado a histórias cruéis e extermínio em massa. A lógica da exploração colonial era simples: chegar, conquistar, usurpar e destruir. Segundo Ab’Saber (2004), a região sempre foi um “anfiteatro da barbárie”, onde o etnocídio e genocídio foram ações que se fizeram presentes desde os primeiros momentos da colonização. Há registros históricos de relatos de subjugação e morte de todas as espécies, principalmente feitos por navegadores ibéricos e missionários católicos, como observam Smith (1990) e Souza (2009).

De negociações comerciais infrutíferas, passando por índios “arredios e agressivos” que não queriam contato com o branco – como o simbólico caso do cacique Ajuricaba54 da tribo dos Manaós – até o simples desejo de “eliminar gentios incômodos”, os espanhóis e os portugueses não negaram esforços em submeter os nativos a seus interesses mais diversos.

A todos nós, nos dias atuais, por exemplo, repugna o feito do capitão Pedro da Costa Favela, em 1665, revidando tribos do rio Urubu com o incêndio de 300 malocas, a liquidação de 700 pessoas e o aprisionamento de 400, assim como a crueldade do cabo Belchior Mendes de Morais, que no ano de 1729 disse ter passado pelas armas 28.000 índios, em comunicação ao capitão- general e governador do Pará. Também nos repugna o que fez o famoso fr. José dos Santos Inocentes, que é figura histórica e tem nome de rua em Manaus: apesar da pureza do onomástico, iniciou, no século 19, lançando vestes de bugres convalescentes de varíola sobre tribos do alto rio Negro, a luta bacteriológica que os grandes criminosos de guerra dos nossos tempos não tiveram coragem de utilizar (BATISTA, 2006, p. 164).

Essa lógica de extermínio e saque perpassou toda a história e a construção econômica e social da Amazônia. A ela acrescentamos também o fator exótico, mágico, de local inexplorado e de seres misteriosos “meio bicho, meio homem”. As notícias que corriam no centro do reino lusitano e, por extensão, europeu era de um lugar onde os “fracos não tinham vez”, em que para sobreviver era preciso desafiar a morte e as várias faces que ela oferecia na “hinterlândia amazônica” (SOUZA, 2002), um sertão profundo repleto de desafios que poderiam tirar a vida dos aventureiros inaptos.

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Referimo-nos aos relatos das conquistas de exploradores europeus no continente americano que vão desde o extremo norte canadense até as margens do litoral brasileiro, resultando em milhões de mortos ao longo desse processo.

54 Ajuricaba (que em tupi significa ajuntamento de marimbondos) foi um importante tuxaua (cacique) do povo

Manaós (que deu origem e nome à cidade de Manaus), liderando várias tribos contra a invasão portuguesa em meados do século XVIII no Amazonas. Como retaliação da Coroa portuguesa, Ajuricaba foi capturado (posteriormente suicidando-se) e seu povo, os Manaós, caçados até a extinção.

Foi com esse espírito que em 1541, conforme assinala Smith (1990), o espanhol Francisco de Orellana, após a derrota do Império Inca e conquista do Peru em 1535 (liderada pelos irmãos Francisco e Gonzalo Pizarro com requintes de brutal crueldade), desce os Andes em uma pequena expedição, adentrando a floresta e seus rios até desembocar no Río Santa María de la Mar Dulce, nome dado por outro espanhol, Vicente Yáñez Pinzón,55 ao que viria a ser denominado posteriormente de Rio Amazonas. Tal nomenclatura é o símbolo do espírito dos navegadores que procuravam riquezas em uma época onde a imaginação era mais valiosa que o fato concreto. Em busca do “Eldorado” repleto de ouro e especiarias, esses aventureiros desceram o grande rio enfrentando todos os tipos de intempéries, trucidando índios no caminho, fugindo de outros tantos e logrando, como ressalta novamente Smith (1990), uma “fome de comer sola de sapato”.56

Chegaram a um trecho do rio, como conta frei Gaspar de Carvajal (missionário e único responsável por relatar a viagem surreal), onde foram surpreendidos por índias “brancas, altas e que lutavam com grande ferocidade, valendo cada uma delas por 10 homens”.57

Usando em demasia a liberdade ficcional e o caráter fantástico de tal acontecimento, o fato é que Carvajal acabou batizando as índias guerreiras de “amazonas” (tais quais suas pares lutadoras da mitologia grega) e, por consequência, o maior rio e todo um incontável território que séculos mais tarde seria chamado de Amazônia.

Segundo Loureiro (2002, p. 109), esse episódio compõe, juntamente com a chegada de Pizón em 1500, a inauguração construtiva de uma visão exótica e preconceituosa sobre a região. Um ciclo de mitos produzidos “pelo olhar e a alma do estrangeiro, onde desde então a Amazônia tem sido definida, interpretada, explorada, amada e mal-amada a partir do olhar, da expectativa e da vontade do outro”.

Os anos que se seguiram à expedição de Orellana foram um misto de abandono (uma constante na região), iniciativas de exploração extrativistas malogradas e uma preocupação exagerada dos portugueses em consolidar o imenso território como monopólio do Império lusitano. Para esse trabalho, os jesuítas foram fundamentais: a eles coube a missão de dar uma “unidade” ao vasto território colonial, catequizar os indígenas conquistando novas almas para o cristianismo e, ao mesmo tempo, novos “súditos” para a Coroa.

55 Capitão da primeira tripulação europeia a navegar pelo Rio Amazonas em 1500. 56

Segundo o diário do frei Gaspar de Carvajal (responsável por relatar a viagem de Orellana), na aventura surreal de descer o Rio Amazonas a partir dos Andes na metade do século XVI, os navegantes espanhóis passaram por uma série de intempéries – a maior delas foi a fome, a ponto de terem que em determinado momento comer a sola de seus próprios sapatos durante a viagem para sobreviverem.

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Aparentemente esse enfrentamento se deu próximo à cidade de Nhamundá, no Amazonas, onde, segundo Carvajal apud Smith (1990), as índias guerreiras denominadas de Icamiabas viviam. Vale ressaltar que a existência real de tais índias não é consensual no meio acadêmico.

Era necessário que qualquer um que chegasse àquelas terras, por mais longínquas e inóspitas, percebessem que ali havia pessoas submissas ao Império português, falando uma mesma língua comum – o que realmente aconteceu, apesar de essa língua durante muitos anos não ter sido o português.58 Foram eles os responsáveis pela fundação de vários lugares que mais tarde se tornaram cidades ao longo das margens dos principais rios da hinterlândia amazônica (SOUZA, 2009).

Além dos conquistadores portugueses e religiosos jesuítas, outro grupo de europeus foi muito importante para a construção do imaginário amazônico: os cronistas naturalistas. Diferentemente da presença colonizadora anterior, eles não eram nem aventureiros ávidos por riquezas materiais nem clérigos obcecados com a doutrinação e conversão ao cristianismo. Eram, antes de tudo, cientistas. Queriam conhecer e descrever a Amazônia diferentemente do que havia sido feito até então. Para isso, bebiam na fonte de uma Europa iluminista, onde a razão começava a suplantar a fé e, com o advento da “modernidade”, veio a necessidade de conhecer o Novo Mundo em sua realidade física e humana, aproveitando um repertório tecnológico que ascendia com o evolucionismo-positivista dos estudiosos de várias áreas do conhecimento que viveram àquela época. Segundo Batista (2006), nomes como Charles Marie de la Condamine, Alexander Von Humboldt, Walter Bates, Frederico Hartt, Jacques Huber, Koch-Grunberg, Mme. Coudreau, Hamilton Rice, Sant’Anna Nery e, no final do século XIX e início do XX, Emilio Goeldi e Euclides da Cunha.

Esses nomes não só ajudaram a descrever a Amazônia como também a apresentaram ao mundo de uma forma que ela nunca tinha sido vista até então. A riqueza na descrição da fauna e flora e as características físicas e sociais de seus habitantes foram registradas (e desenhadas) com maestria em uma época onde os recursos filmográficos eram inexistentes. No entanto, juntamente com esses novos exploradores – agora em nome da ciência – se consolidou também uma carga colonial e de dominação ideológica profunda sobre a Amazônia. O eurocentrismo e o preconceito racial eram evidentes na literatura que era produzida e justificavam a exploração e domínio de seus povos. O nativo da colônia, e em especial da floresta (indígena e/ou caboclo), era um selvagem, degenerado e incivilizado. Um elo perdido que os trópicos geraram e que fora esquecido no tempo, só descobrindo a luz (ou negando-a) com a vinda dos europeus. Esse argumento foi construído ao longo da história da região e continua sendo fortemente usado para justificar o modus operandi entre

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Referimo-nos ao Nheegatu, língua geral criada a partir do Tronco Tupi pelos jesuítas para facilitar a comunicação com vários povos indígenas de dialetos distintos. Até o século XVIII, foi a principal língua usada no Brasil, entrando em declínio com a proibição de sua utilização em 1758 pelo Marquês de Pombal.

“conquistadores versus conquistados”. Como pondera Quijano (2005) sobre a colonização nas Américas e a dominação de seus habitantes física e mentalmente,

A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira identidade da modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases, consequentemente, foi classificada a população da América, e mais tarde do mundo, nesse novo padrão de poder (QUIJANO, 2005, p. 117).

Essa mesma lógica positivista é percebida na estrutura dos argumentos de Euclides da Cunha (2003) quando ele se refere à Amazônia como um “inferno verde” e uma “terra sem história”. Apesar de o autor denunciar a questão das condições miseráveis de trabalho dos seringueiros emigrados do Nordeste para o interior amazônico a partir do século XIX, ele expõe sua contrariedade ao vislumbrar que o vasto território era inóspito ao cidadão urbano, de uma “natureza indomada”, ao mesmo tempo impondo seu gigantismo e impossibilidade de “civilizar-se”, engolindo qualquer um que ousasse adentrar seus domínios.

Tais argumentos, ouvidos à exaustão sobre a Amazônia, foram construindo continuamente uma ideia de lugar selvagem, inapropriado para viver, à exceção de um curto espaço de tempo em que aventureiros dedicavam suas vidas fugazes para extrair (ou saquear) recursos naturais que poderiam ser sua salvação ou desgraça. Loureiro (2002) assim analisa o que considera como eixos norteadores da história da Amazônia e seus povos:

A história dos homens na Amazônia tem sido construída a partir de dois eixos norteadores, mas conflitantes: de um lado, a visão paradisíaca criada pela magia dos mitos da região e sobre a região; de outro, a violência cotidiana gestada pela permanente exploração da natureza e desencadeada pelos preconceitos em relação a ambos – homem e natureza (LOUREIRO, 2002, p. 109).

Essa construção identitária formou-se ao longo de séculos. Foi regada pela cobiça ibérica quase heroica e por muito sangue indígena apilhado como escravo ou como mão de obra abundante, recém-convertida ao cristianismo. Posteriormente, após o fim da escravidão

oficial indígena no Brasil,59 viriam outros cativos para a região, estes agora frutos da diáspora africana e do comércio negreiro amplamente difundido no País por quase 350 anos.60 O histórico abandono da região começava a ter outros contornos étnico-sociais, conforme destacaremos no item abaixo.

3.2 Indignação, resistência e luta: a importância histórica da Cabanagem para a

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