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Indignação, resistência e luta: a importância histórica da Cabanagem para a Amazônia

3 HISTÓRIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA AMAZÔNIA: O

3.2 Indignação, resistência e luta: a importância histórica da Cabanagem para a Amazônia

O exemplo da colonização amazônica talvez seja um dos mais significativos da história recente da humanidade. Ele está mergulhado no conceito desenvolvido por Fanon (1968) de que o colonizado “introjeta a dominação” a partir dos atos do colonizador, fazendo com que suas agruras e miséria sejam encaradas como uma “lei natural”, em que sua cultura (étnica, material e imaterial) é considerada inferior, gerando o que o autor denomina de “alienação colonial”, estabelecendo-se em toda a ossatura da sociedade colonizada sob o formato ideológico que vem a justificar seu processo de dominação.

No caso da Amazônia brasileira, além dessas características gerais apresentadas (onde a dominação, exploração e desqualificação do colonizado são partes essenciais de um modus operandi da opressão colonial), a estratégia empreendida pelos portugueses para controlar os nativos (indígenas) e outras populações (como os negros escravizados e levados à região) adquiriu também outros contornos e peculiaridades – a começar pela estrutura estamental implantada pelo Império lusitano para o vasto território.

Com a finalidade de um controle maior sobre as fronteiras ao norte da colônia na América do Sul e em consonância com o Tratado de Madrid,61 foi criado, na metade do século XVIII, o imenso Estado do Grão-Pará e Maranhão, compreendendo o que na atualidade são os estados do Pará, Maranhão, Piauí, Amazonas, Roraima, Rondônia e Amapá. Para entender a atenção dispensada à região pelos portugueses e qual seu efeito no processo de colonização, é preciso compreender a importância que o território possuía perante a Coroa.

Conforme assinalam Souza (2009), Benchimol (2009) e Batista (2006), foram centenas de relatos de possíveis riquezas naquelas terras, gerando interesse e cobiça

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A escravidão indígena foi proibida no Estado do Grão Pará e Maranhão (Amazônia) em 1755 pelo Marquês de Pombal, visando a aumentar os lucros com o tráfico de negros vindos da África.

60 Usamos como referência a primeira leva de escravos africanos vindos para o Brasil em 1540 até a abolição

oficial da escravatura em 1888.

61 O Tratado de Madrid foi um acordo firmado entre os reinos da Espanha e Portugal em 13 de janeiro de 1750

crescentes de estrangeiros ávidos por uma oportunidade em explorá-las. Pensando estrategicamente nessas questões, o responsável pela política da Coroa portuguesa à época, o marquês Sebastião José de Carvalho e Melo (o Marquês de Pombal),62 nomeou seu meio- irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado como Governador do Grão-Pará, criando também a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, uma empresa colonial que tinha por finalidade promover o monopólio comercial dos produtos extraídos da região, em um novo e exclusivo processo mercantilista onde a utilização do trabalho indígena seria essencial.

Com a vinda da família real para o Brasil em 1808,63 a principal colônia lusitana tornou-se o centro das atenções do império português, mais tarde, com o retorno de D. João VI a Lisboa e a proclamação da independência feita por D. Pedro I em 1822. O Brasil torna-se autônomo em relação a seu colonizador, o que não acontece com a Província do Grão-Pará, que continua subordinada diretamente a Lisboa.

No entanto, mesmo antes dessa data – por questões políticas e geográficas –, o Grão- Pará já estava equidistante também das atenções de seu governo na capital portuguesa. Isso equivale a dizer que, durante um razoável e intenso período histórico, a região conhecida hoje como Amazônia não era considerada Brasil, qualificada como outra colônia, subordinada diretamente à Coroa lusitana.

Não podemos esquecer que, na origem, a Amazônia não pertencia ao Brasil. Na verdade, os portugueses tinham duas colônias na América do Sul, uma descoberta por Cabral em 1500, governada pelo vice-rei do Brasil, a outra, o Grão-Pará, descoberta por Vicente Iañes Pinzón em 1498, logo após a terceira viagem de Colombo à América, quando batizou o rio Amazonas de mar Dulce, mas efetivamente ocupada pelos portugueses a partir de 1630. Esses dois Estados se desenvolveram distintamente até 1823, data em que o Império do Brasil começou a anexar o seu vizinho. A violência era naquela altura a única via possível, tão diferentes eram as estratégias, a cultura e a economia dessas duas colônias (SOUZA, 2002, p. 32).

Esse elemento histórico é condição sine qua non para compreendermos o lugar da Amazônia nos primeiros conflitos sociais de grande escala que logo se fariam presentes com enorme intensidade. O fato de o Grão-Pará estar diretamente ligado a Portugal e não responder como Brasil (e, portanto, estar abandonado pelas autoridades tanto do centro-sul da Colônia como de sua matriz em Lisboa) era acrescentado a uma exploração violenta à qual

62 O Marquês de Pombal foi o secretário de Estado do Reino durante o reinado de D. José I (1750-1777), sendo

considerado um dos políticos portugueses mais importantes da história e do período colonial.

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Em janeiro de 1808, Portugal estava prestes a ser invadido pelas tropas francesas comandadas por Napoleão Bonaparte. Sem condições militares para enfrentar os franceses, o príncipe regente de Portugal, D. João, resolveu transferir a corte portuguesa para sua mais importante colônia, o Brasil.

eram submetidos seus habitantes mais pobres, que iam desde agricultores (formada etnicamente por caboclos, índios e negros) até uma emergente classe de comerciantes que não havia sido incluída na estrutura de poder da Província. Ambos eram obrigados a pagar taxas e impostos cada vez mais elevados à Coroa, somando-se ao fato de uma pequena elite portuguesa de comerciantes e políticos que vivia na capital do estado (Belém) estar no centro dos privilégios administrativos do então Grão-Pará. Segundo Pinto (2015), uma “situação explosiva” começa a se formar e ficaria prestes a eclodir em uma revolta que se faria sangrenta.

No início do século XIX, um terço da população de Belém era constituída de escravos negros e outro terço de caboclos, ambos subjugados por uma exploração cruel, que lhes impedia de desenvolver atividades produtivas de subsistência. Os lavradores, sendo obrigados a pagar impostos e dízimos excessivamente pesados, entregavam seus filhos ao alistamento militar, que impedia a continuidade da lavoura, e vendiam seus produtos a preços insignificantes nas cidades. A saída para os escravos era a fuga para o interior, formando centenas de mocambos, em geral destruídos pelas expedições armadas (PINTO, 2015, p. 6).

Tal conjuntura foi a argamassa social que desembocou em uma das insurreições mais importantes e populares da história colonial brasileira e amazônida: a Cabanagem. É preciso contextualizar o que acontecia no mundo naquele momento. Havia uma ebulição de movimentos civis em vários lugares do mundo. As ideias liberais e iluministas fervilhavam, a decadência das monarquias absolutistas se fazia presente e a palavra da vez era “revolução”, fosse na Europa ou na América do Norte.64 Mais ao sul do continente, exemplos como a Revolução Haitiana65 e as revoltas na Guiana Francesa66 respingavam na Amazônia através de insurgentes que chegavam a Belém via Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Segundo Pinto (2015), só a referida empresa levou quase 40 mil escravos negros à região no final do século XVIII e início do XIX, o que totalizava um terço da população da época. Muitos desses escravos fugiram e criaram comunidades (quilombos) nas proximidades da capital belenense.

Juntando-se aos afrodescendentes havia também a maior população da época, os indígenas – e, por conta do intenso contato interétnico da minoria branca (os senhores

64 Como ponto alto desse momento histórico, temos a Revolução Francesa na Europa (1789) e a Independência

dos Estados Unidos na América do Norte (1776).

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Também conhecida como Revolta de São Domingos, em 1791.

66 No início do século XIX, portugueses haviam ocupado o território da Guiana Francesa em represália à invasão

portugueses) com as mulheres índias, várias gerações de caboclos, todos estes formando a grande força de trabalho mantenedora da Colônia. Não por coincidência, era a população mais explorada das terras do Grão-Pará.

Com o tempo, a insurgência negra aproximou-se da insubordinação indígena e cabocla, unindo-se contra a opressão e abandono de governantes despóticos. Além desses dois segmentos da sociedade, um outro foi responsável por catalisar a revolta em uma instância intelectual e letrada, fazendo com que as ideias revolucionárias e emancipatórias não só circulassem a região como também ganhassem corpo e voz em outras esferas do Brasil e Europa. Para tanto, o liberal Felipe Alberto Patroni lançou o primeiro jornal da região Norte em 1822, “O Paraense”, fazendo duras críticas ao abandono do Grão-Pará por parte de Portugal e incitando ideias constitucionalistas67 para a região.

Esses elementos antecederam o movimento batizado de Cabanagem, nome dado em alusão às casas miseráveis (cabanas) da maioria de seus integrantes. Após inúmeras revoltas armadas contra as autoridades radicadas em Belém (com um significativo número de mortos), em 1835 os cabanos tomam o poder quando ocupam o palácio do governo, assassinando seu presidente. Foi a primeira vez na história colonial brasileira que um governo independente (formado majoritariamente por índios, negros e caboclos) assume o controle da Província.

A Cabanagem punha em causa uma forma alternativa de estruturação do povo brasileiro gestada entre os índios destribalizados da Amazônia. Foi a única luta que disputou, sem saber, a própria etnia nacional, propondo fazer- se uma outra nação, a dos cabanos, que já não eram índios, nem eram negros, nem lusitanos e tampouco se identificavam como brasileiros [...] Sua revolta secularmente acumulada contra a opressão e a discriminação era uma razão suficiente para desencadear a guerra. Mas não era suficiente para propor e levar a cabo, depois de cada vitória, um projeto alternativo de ordenação social para as gentes díspares que se engajavam na luta libertária (RIBEIRO, 1995, p. 321-322).

Após 10 meses da vitória dos cabanos, o que surge é uma crescente instabilidade social que chega a seu ápice. Os revoltosos não tinham um projeto de governo, não sabiam como permanecer no poder. A retaliação do Império brasileiro é impiedosa e culmina na fuga de seus líderes, incluindo seu maior articulador, Eduardo Angelim.68 A perseguição a seus integrantes não termina com a derrubada de seu breve governo. Até 1840 (ano em que D.

67 Influenciado pela Revolução Liberal de Porto de 1820, que culminou na primeira Constituição Portuguesa em

1822.

68 Eduardo Angelim foi o terceiro presidente cabano, entre novembro de 1835 e abril de 1836, fugindo após essa

Pedro II anistia os participantes do movimento insurgente), foi promovido um extermínio em massa de todos aqueles que eram suspeitos de terem participado da Cabanagem. Ribeiro (1977; 1995) avalia que cerca de 100 mil pessoas foram mortas, em um dos maiores genocídios já registrados pela história brasileira. O mesmo autor descreve que aldeias inteiras (dos povos Mawé, Mura e os Munduruku) foram chacinadas, “culpadas de supostamente terem combatido os opressores, em uma dizimação premeditada que só teve paralelo no extermínio indígena dos séculos XVI e XVII no Nordeste brasileiro” (1995, p. 322).

A cabanagem acabou se tornando um símbolo da luta dos povos oprimidos da região amazônica. Mesmo passados mais de 170 anos de seu término e uma série de contradições em seu processo (como a ausência de um “projeto político e de estado”), ainda assim ela é considerada a primeira experiência organizada de luta e resistência protagonizada pelos párias da “periferia da periferia”, produzida em um contexto que Oliveira (2012, p. 18) denomina de “situação histórica”, onde determinados agentes têm a capacidade de produzir “uma certa ordem política por meio da imposição de seus interesses, valores e padrões organizativos aos outros componentes da cena política”.

Ressaltamos que a Cabanagem não pode ser considerada um “movimento social” nos termos clássicos das ciências sociais e apontados por autores que vão desde Marx (1974) – e seu conceito relacionado à “luta de classes” – até outros como Thompson (1981), Touraine (1989), Melucci (1999) e Tarrow (2009). No entanto, Gohn (2013b) aponta que, mesmo não sendo a Cabanagem uma expressão da “luta de classes” nos moldes anteriormente mencionados, ela foi uma expressão legítima das lutas sociais em um determinado contexto histórico, guardando em seu interior características próprias de certos “movimentos sociais”.

Em 1835, não havia sociedade de classes no Brasil,69 muito menos um comércio emergente e trabalhadores em situação de superexploração prontos para a tomada de uma “consciência”. Nos termos de Prado Jr. (1963), havia naquele momento um tipo de “capitalismo atípico”, diferentemente do que estava sendo constituído na Europa e nos Estados Unidos. O País se dividia em duas colônias (o Brasil e o Grão-Pará) subordinadas a um Império português já em franca decadência – o que não quer dizer, definitivamente, que não havia miséria e uma situação de exploração maciça da população mais pobre, excluída em grau máximo, principalmente em regiões distantes dos centros urbanos à época, como era a Amazônia do início do século XIX.

69 Estamos falando do conceito advindo com a modernidade e a teoria marxista de sociedade de classes dividida

O que lá aconteceu pode ser definido com um tipo de mobilização coletiva e identitária de luta e resistência visando à própria sobrevivência daquele povo. Em que pese à participação de figuras letradas como alguns de seus líderes, sua grande maioria não estava organizada em torno de uma causa comum, como a reivindicação de uma autonomia republicana a um projeto que transformasse aquele território excluído econômica e socialmente. A Cabanagem foi um dos primeiros suspiros por sobrevivência dos excluídos da periferia amazônica. Seu legado está no inconsciente coletivo de um povo que ainda hoje, nos momentos de tensão social e de grande violência que frequentemente assolam a região, lembra-se de um passado (não tão distante) onde os cabanos (pobres, negros e índios) tomaram o poder, foram derrotados, perseguidos e, por fim, quase todos exterminados.

3.3 Capitalismo, ciclos econômicos e migração na Amazônia: a borracha como

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