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2 FILHO DOS GRANDES PROJETOS: OS PORQUÊS DA PESQUISA E DO PESQUISADOR

2.3 Pesquisa de campo: Altamira e o déjà vu dos grandes projetos

2.3.1 Antes da chegada e o a posteriori: impressões gerais

Antes de chegarmos a Altamira, já havíamos feito uma vasta pesquisa bibliográfica, documental e acompanhado atentamente quase todas as reportagens e entrevistas sobre o tema na grande mídia e nos veículos de comunicação especializados. A cada leitura completada e vídeo assistido, um complexo objeto de estudo se apresentava aos meus olhos. Belo Monte e Altamira compunham um caldeirão de informações que estavam em evidência internacional. Das diversas leituras que antecederam minha chegada ao campo, destaco os documentos

Tenotã-Mõ: alertas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos do Rio Xingu,38 organizado pelo professor Osvaldo Sevá Filho (2005); Painel de Especialistas: análise crítica do estudo de impacto ambiental do aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte,39 organizado por Sônia Santos e Francisco Hernandez (2009); e o Dossiê Belo Monte: não há condições para a Licença de Operação,40 organizado pelos pesquisadores Garzon Villas-Boas e Amorim Reis, ligados ao Instituto Socioambiental.

Além dos textos basilares sobre a temática citados anteriormente, as publicações de Faria (2004), Nascimento (2011), Verdum (2012), Fleury (2013), Oliveira e Cohn (2014), Corrêa (2014) e Fearnside (2015) foram importantes fontes de pesquisa que evidenciaram uma qualidade teórica nas análises e a emergência das discussões sobre a questão (onde o fenômeno está em curso, podendo agregar elementos novos a cada instante). Destaco, por último, para completar o repertório prévio (e também posterior) da chegada ao campo de pesquisa, as reportagens de Eliane Brum (2015) Belo Monte: anatomia de um etnocídio41 e Belo Monte: empreiteiras e espelhinhos,42 juntamente com os videodocumentários Belo Monte: anúncio de uma guerra,43 uma produção crossfunding do diretor André D’Elia, e Belo Monte: depois da inundação,44 do diretor canadense Toddy Southgate.

Chegamos na cidade por volta das 16h, tempo nublado com alguma chuva ao longe. Na breve conversa até a cidade com o motorista descobrimos que ele é um “filho dos processos de colonização da Amazônia”, vindo com a família há 40 anos via projeto executado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no slogan “uma terra sem homens para homens sem terra”. Chegando na cidade minhas impressões iniciais foram as das cidades (de tantas que conheci ao longo da vida) que se constroem no entorno dos grandes projetos e obras. Aqui vi um pouco de Parauapebas, de Tucuruí, Pitinga... dos “desmundos” feitos na Amazônia com pouco planejamento e muita ganância (DIÁRIO DE CAMPO, 2015).

Nossa pesquisa de campo em Altamira aconteceu ao longo do mês de maio de 2015. Utilizei o método de registro a partir de “diários de campo”, prática comum na antropologia e

38 Disponível em: http://www.xinguvivo.org.br/wp-content/uploads/2010/10/Tenot%C3%A3-Mo.pdf. Acesso

em: 19 jan. 2017.

39

Disponível em: https://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/Belo_Monte_Painel_ especialistas_ EIA.pdf. Acesso em: 20 fev. 2017.

40 Disponível em: https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/dossie-belo-monte-site.pdf.

Acesso em: 21 mar. 2017.

41

Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/01/opinion/1417437633_930086.html. Acesso em: 22 abr. 2017.

42 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/06/opinion/1436195768_857181.html. Acesso em: 23

maio 2017.

43 Disponível em: https://vimeo.com/45804120. Acesso em: 24 jun. 2017. 44 Disponível em: https://vimeo.com/181830626. Acesso em: 19 set. 2017.

que, em nosso caso específico (onde o objeto dialoga com tantos segmentos da sociedade civil, estado e iniciativa privada), foi ao encontro de nossos interesses investigativos.

Havíamos planejado entrevistar cerca de quinze representantes e lideranças de movimentos sociais organizados que atuavam na região, além de possíveis outras contribuições não previstas. A escolha dos informantes se deu a partir do contato prévio junto a outras redes de movimentos sociais e ativistas já estabelecidas anteriormente. O critério foi sua relevância e representatividade junto a entidades civis na cidade e região. Optamos pela entrevista semiestruturada, aberta a insights de ambos os lados (tanto do entrevistado como do entrevistador), um pouco de nossa experiência jornalística colocada em prática durante o processo.

Fizemos um amplo registro fotográfico de toda a viagem, inclusive de três atividades públicas que aconteceram durante o período de nossa estadia: um protesto contra a liberação da Licença de Operação (LO) de Belo Monte (envolvendo dezenas de movimentos, organizações sociais e lideranças indígenas), uma audiência pública sobre o aumento da violência na cidade (com a participação de vários representantes e autoridades na Câmara de Vereadores do município) e por último nossa ida ao canteiro de obras (naquele momento ainda em construção) da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, onde registramos literalmente seus alicerces (ou diques) sendo finalizados.

Após alguns desencontros e remarcações, tendo em vista a agitada agenda dos representantes das organizações sociais que atuam em Altamira (muitos deles com diversos compromissos e viajando constantemente naquele período em consequência da série de atividades políticas relacionadas a Belo Monte), conseguimos realizar um total de sete entrevistas: cinco delas em Altamira, no período de nossa estadia, e duas em Brasília (DF), durante as atividades do Acampamento Terra Livre (Mobilização Nacional Indígena),45 em abril de 2017, da qual tivemos a oportunidade de participar.

Das contribuições dos sete participantes, escolhidos a partir de sua atuação junto a algum movimento social contrário aos impactos advindos com a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, suas falas foram distribuídas ao longo de todos os capítulos deste trabalho. Fizemos um quadro que identifica e sintetiza a importância de cada um dos informantes para a presente pesquisa (Quadro 1), destacando sua história, movimento, representação e alguns argumentos centrais desenvolvidos por eles durante nossa arguição. Lembramos também que

45 Disponível em: https://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/2017/04/24/acampamento-terra-livre-

partes desses diálogos começados em Altamira continuaram virtualmente, como é o caso da ativista do Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), Antônia Melo.

Quadro de identificação dos entrevistados

Identificação Movimento/ Organização História Argumentos 01 – Raimunda Silva (55 anos) Movimento de Mulheres/ Movimento Xingu Vivo para Sempre

(MXVPS)

Atingida por grandes projetos desde os anos 1980 (Tucuruí);

Em Belo Monte, foi duplamente atingida, tendo perdido seu terreno onde pescava e plantava como ribeirinha. Sua casa, na sede da cidade, foi demolida por estar em “área de risco”.

Mesmo com tantos problemas e tendo superado uma doença grave (um câncer), continua acreditando na luta coletiva. 02 – Yuri Bezerra (29 anos) Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB)

Depois de passar por vários estados do Brasil, foi escalado pelo movimento para, em Altamira, ajudar na coordenação dos impactados de Belo Monte.

Seu principal argumento é contra o “sistema capitalista”; acredita que, enquanto ele não mudar, não haverá transformações reais para a sociedade;

Segundo dados do MAB, 4 mil famílias foram atingidas diretamente em Belo Monte. 03 – Antônia Melo (65 anos) Movimento de Mulheres e Movimento Xingu Vivo para Sempre

(MXVPS)

Mudou com a família do Nordeste para Altamira na década de 1950;

Envolveu-se desde os anos 1980 em praticamente todos os movimentos e mobilizações sociais que aconteceram em Altamira: inicialmente, através das Comunidades Eclesiásticas de Base (CEBs), Movimento de Mulheres, Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu (MDTX) e hoje Movimento Xingu Vivo para Sempre;

Foi atingida diretamente pela construção da Hidrelétrica, tendo sua casa demolida.

Acredita que, mesmo com a inauguração de Belo Monte, a luta não acabou: em sua opinião, é preciso mobilizar-se contra seus impactos, que estão sendo sentidos em toda a cidade e região;

Acredita que Belo Monte é um modelo que será implantado em regiões estratégicas da Amazônia, sendo necessária uma grande articulação nacional e internacional para tentar barrá-los.

04 – Cleanton Ribeiro (42 anos) Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Nascido no estado do Pará, morou na região a vida inteira;

Trabalha no Cimi há 14 anos mediando conflitos em terras

Acredita que o que foi feito em Belo Monte configura-se como um “etnocídio”.

indígenas e auxiliando esses povos em suas demandas.

05 – Bernardino Juruna (53 anos)

Organização Indígena do Povo Juruna

Nascido do Alto Xingu, mudou para a região de Altamira nos anos 1990;

Hoje é um dos representantes do Povo Juruna.

Acredita que, apesar dos impactos de Belo Monte, é possível trazer melhorias para os povos indígenas através das grandes obras.

06 – Paulo Paiakã Liderança Kayapó

Nascido no Alto Xingu (data não revelada), se opôs desde o início às discussões sobre a construção do Complexo Hidrelétrico do Xingu e posteriormente de Belo Monte.

Acredita que, se os grupos indígenas se organizarem, é possível barrar os projetos hidrelétricos que ameaçam os povos indígenas no País.

07 – Tuíra Kayapó Liderança Kayapó

Nascida no Alto Xingu (sem a data confirmada), Tuíra ficou conhecida internacionalmente em 1989 após levantar seu facão e encostá-lo no rosto de um representante da Eletronorte em protesto pelo anúncio da construção da Hidrelétrica que na época era conhecida como Kararaô, na mesma região que hoje foi construída Belo Monte.

Sua indignação permanece a mesma de 1989. Ela continua declarando-se contrária a Belo Monte em todos os fóruns que participa no Brasil e no mundo.

Quadro 1 – Perfil dos Entrevistados. Fonte: De autoria própria (2017).

Somando-se a interpretação das entrevistas realizadas, adotamos como metodologia para todas as etapas de nossa pesquisa (inclusive as atividades de campo) uma interpretação crítica das várias facetas do objeto de estudo apresentado. Queremos dizer, com isso, que, além de uma análise crítica do processo histórico relacionado à formação social da Amazônia e de Altamira em particular, fizemos uso de um referencial teórico que, apesar de amplo e heterogêneo, possui uma crítica contumaz à intervenção dos agentes externos (públicos ou privados) que viabilizaram a construção de Belo Monte.

Voltando às nossas primeiras impressões sobre a cidade e a barragem, agora vistas in loco, nossa aproximação inicial com seus principais agentes (movimentos, entidades e pessoas) se deu da seguinte forma, assim registrada em nosso diário de campo:

Hoje foi um dia bem esperado por nós. A expectativa de participar de uma mobilização de rua, e por consequência com a presença de vários movimentos sociais, era grande. Fiquei sabendo da mobilização havia alguns dias antes de embarcar para Altamira. A possibilidade de conversar com os protagonistas das ações contra Belo Monte me deixou ansioso. Poderia encontrar-me dali a pouco com os atores sociais que tanto li a respeito e

assisti em reportagens e documentários disponíveis através da Internet e finalmente estavam próximos fisicamente. Encontramos a passeata já na rua do hotel que estávamos hospedados, engatilhei a máquina fotográfica e tirei inúmeras fotos. Minha impressão do ato (ou passeata) foi de que primeiro havia poucas pessoas em suas fileiras, a maioria estudantes do ensino médio que deveriam ter sido liberados por um professor mais engajado. Também havia um clima de cansaço no ar, seus principais ativistas demonstravam um certo cansaço, imaginei eu que estavam exaustos de pelo menos quatro anos de luta direta para tentar barrar a construção de Belo Monte, e aquela era mais uma passeata...O segundo ponto que dialogava mais diretamente com minha pesquisa era uma indagação que eu começava a fazer de forma mais sistemática: como esses movimentos sociais, com suas limitações e divergências, conseguiram dar tanta visibilidade à questão de Belo Monte? É claro que a história peculiar da região, com um extenso lastro de mobilizações há pelo menos 40 anos, é uma pista considerável... Voltando à mobilização daquele dia, contatei, ou melhor, me apresentei a uma das lideranças mais importantes da luta contra Belo Monte, a ativista do Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS) Antônia Melo. Marquei de nos encontrarmos no dia seguinte para que eu pudesse entrevistá-la. No final do dia, acabei escrevendo um release e publicando algumas fotos em sites ligados a movimentos sociais sobre o ato que havia acontecido pela manhã e tinha como principal bandeira a não liberação da Licença de Operação (LO) para o funcionamento da Hidrelétrica de Belo Monte (DIÁRIO DE CAMPO, 2015).

Como apontado no relato, após uma grande expectativa em se conhecer os movimentos sociais contrários ao projeto de Belo Monte, nossa primeira impressão era ao mesmo tempo de satisfação e grande curiosidade. Como eram possíveis tão poucas organizações e pessoas, já exaustos de atividades e mobilizações havia anos, darem a essa causa uma repercussão mundial? O que explicaria essa visibilidade global à questão da Usina de Belo Monte? Quais seus meandros, suas especificidades? Como chegaram até aqui? Foram perguntas geradas bem antes de nossa aterrissagem e ampliadas após nosso primeiro contato com o campo. Sabemos que a busca a essas respostas e questões compõem o eixo central de nossa tese. Sobre elas nos debruçaremos nos próximos capítulos.

Figura 8 – Atividades de mobilização em Altamira contra a Licença de Operação (LO) de Belo Monte, maio de 2015.

Fonte: Arquivo pessoal (2015).

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