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1 DISPOSITIVO ANALÍTICO, TEÓRICO E METODOLÓGICO

33   Uma versão atualizada desta publicação foi lançada na TEIA 2010 sob o título de Programa Nacional de

1.2 DISPOSITIVO TEÓRICO

1.2.2 A Análise do Discurso: a exterioridade é constitutiva da língua

Não há ritual sem falhas.

Pêcheux

42  Saussure  constitui  a  língua  como  objeto  da  lingüística  no  Curso  de  Lingüística  Geral  (2002),  deixando  para  a   fala   o   individual,   o   subjetivo.   Rompe   com   a   posição   historicista   do   século   XIX   ao   dar   às   relações   internas   o   caráter  definidor  para  a  língua.  Ou  seja,  a  língua  é  constituída  de  signos  e  estes  se  definem  pelas  relações  que   mantém  entre  si,  sem  recurso  a  nada  que  seja  do  exterior.  Para  Saussure  o  que  interessa  é  o  valor  do  signo,  o  que   nele  não  é  outro  signo.  

Neste estudo não é objetivo recuperar toda a produção teórico-analítica da escola francesa

da Análise do Discurso, essa memória está dispersa43 em vários trabalhos já publicados.

No entanto, se tem presente a historicidade das formulações da teoria do discurso e suas

especificidades, as chamadas três fases44 da AD na França, que recobrem um período

entre 1969 e 1983, dai por diante sua reconfiguração e atualização. A AD, ao se estabelecer no Brasil, novamente adquire características próprias que adiante irei destacar.

A AD se transforma porque acompanha transformações radicais na sociedade ocidental: "a fragmentação das esquerdas, a crise do marxismo e do estruturalismo, a

transformação da economia em função da globalização e, principalmente, o surgimento de várias identidades que resultam dessas transformações sociais" (GREGOLIN: 2004,

p.154). Estas transformações apontam, nas palavras de Eni Orlandi (2011), novas formas

históricas de existência na discursividade e novas formas históricas de assujeitamento. A

globalização traz consigo uma revolução tecnológica e a reestruturação da sociedade em

rede45 e a AD teve que rever seus fundamentos e colocar a heterogeneidade como uma

característica estruturante do discurso.

Ao compor o dispositivo analítico e teórico deste estudo, destaca-se aqui a

contribuição de Michel Pêcheux e o grupo de pesquisadores46 que o acompanhava e de

43   Para   um   aprofundamento   nas   formulações   da   AD,   indico   as   seguintes   leituras:   GADET,   F.   e   HAK,   T.:1997;   ORLANDI:1996;    1999;  PÊCHEUX:1990;  1995.    

44  A  primeira  época  da  Análise  do  Discurso  na  França  vai  de  1969  a  1975,  iniciada  com  a  publicação  de  Analyse   automatique  du  discours,  de  Pêcheux.  É  marcadamente  centrada  na  relação  que  Pêcheux  estabelece  com  Louis  

Althusser,  acerca  do  conceito  de  ideologia.  O  objeto  de  análise  constituía-­‐se  de  grandes  textos  políticos  escritos  e   os  dispositivos  de  análise  se  voltavam  unicamente  para  eles.  A  principal  preocupação  desse  período  pousava  na   questão   do   método   estruturado,   e   isso   pode   ser   facilmente   observado   na   segunda   parte   do   Analyse  

automatique,  cujo  destaque  se  volta  para  os  cálculos  matemáticos  e  algoritmos  que  descrevem  o  dispositivo  de  

análise  automatizada  do  processo  discursivo,  que  se  realizava  através  da  ajuda  de  recursos  informáticos  para  o   processamento  de  grandes  quantidades  de  corpora.  Daí  deriva  a  pergunta:  Qual  é,  então,  o  papel  do  analista?  A   ele   cabia   interpretar   os   dados   obtidos   após   a   automatização,   relacionando-­‐os   com   a)   a   ideologia;   b)   com   os   sujeitos;   e   c)   com   o   histórico-­‐social.   Devia-­‐se   extrair   disso   tudo   uma   formulação   do   tipo:   naquele   momento   histórico,  naquele  lugar,  estava  em  jogo  a  questão  X,  para  a  qual  convergiam  enunciados  do  tipo  A,  B  e  C;  contra  o   qual  se  posicionavam  outros,  do  tipo  D,  E  e  F.  O  marco  de  transição  da  primeira  época  para  a  segunda  é  o  livro  

Les  vérités  de  la  palice  (1975),  que  constitui  uma  crítica  à  semântica  formal,  reiterando  as  teses  althusserianas  

e  a  questão  do  sujeito  assujeitado.  É  como  que  uma  última  defesa  de  Pêcheux  ao  período  de  1969  a  74,  e,  por   isso,  Les  vérités  de  la  palice  representa  uma  obra  de  fechamento.  Foi  adicionado  à  sua  edição  de  língua  inglesa,   cerca  de  três  anos  mais  tarde,  um  anexo  denominado  Só  há  causa  daquilo  que  falha  ou  o  inverno  político  francês:   início   de   uma   retificação   (1995),   em   que   Michel   Pêcheux   revê   algumas   formulações   e   desconstrói   a   teoria   lá   presente   (MAZZOLA:2009,p.10).   A   terceira   fase   da   AD,   que   explicita   o   afastamento   com   posições   dogmáticas   anteriores,   tem   como   marco   o   Colóquio   Matérialites   Discursives,   em   1980,   realizado   em   Nanterre   (GREGOLIN:2004,  p.  154).    

45  A  caracterização  da  sociedade  em  rede  será  feita  no  próximo  capítulo.  

Michel Foucault, que sem ser analista de discurso e estar vinculado principalmente às questões da História e da Filosofia, contribuiu para a atualização do campo, a partir dos

diálogos teóricos com Pêcheux47. A vertente brasileira48 está presente principalmente na

contribuição de Eni Orlandi e o grupo de analistas de discurso que ela formou49.

É da leitura do Curso de Linguística Geral (2002) que a Análise do Discurso

parte50, com Pêcheux, para criticar o famoso corte epistemológico que separou língua e

fala, excluindo o sentido51 e o sujeito dos estudos da linguagem. A Análise de Discurso

Francesa é uma disciplina que trabalha com as relações de contradição existentes entre três campos do saber: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise. A AD não se reduz ao objeto da Linguística, nem se deixa absorver pelo Marxismo e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanálise. Ela interroga a Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia, materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele (ORLANDI: 1996). Assim, desloca-se o objeto de estudo: não mais a língua, como os linguistas, tampouco a fala a- historicizada, mas sim o discurso, em que podemos observar o homem falando e capturando sentidos em sua trajetória. A década de 1960 era uma época de releituras:

Gadet,  C.  Fuchs,  L.  Leon,  A.  Badiou,  J.J.  Courtine,  C.  Normand,  D.  Maldidier,  J.  Authier,  entre  outros,  como  autores   profícuos  nas  três  fases  da  AD  na  França.  

47  Para  conhecer  os  "  diálogos  e  duelos"  entre  Pêcheux  e  Foucault,  recomenda-­‐se  a  leitura  de  Gregolin  (1994).   48  Sobre  esse  assunto  recomendo  as  seguintes  leituras:    

INDURSKY,   Freda;   LEANDRO   FERREIRA,   Maria   Cristina   (orgs.).   Análise   do   discurso   no   Brasil:   mapeando  

conceitos,  confrontando  limites.  São  Carlos:  Claraluz,  2007.  

ORLANDI,   Eni   P.   A   Análise   do   Discurso   em   suas   diferentes   tradições   intelectuais:   o   Brasil.   Disponível   em:   WWW.discurso.ufrgs.br,  acesso  em  10/12/2012.  

ORLANDI,   Eni   P.   A   Análise   de   Discurso   e   seus   entre-­‐meios:   notas   a   sua   história   no   Brasil.   In:   Cad.Est.Ling.,   Campinas,  (42):  21-­‐40,  Jan./Jun.  2002.  

49  Destaca-­‐se  nesse  estudo  a  contribuição  de  Freda  Indursky,  Maria  Cristina  Leandro  Ferreira,  Bethania  Mariani,   Suzzi  Lagazzi,  Maria  do  Rosário  Gregolin  e,  a  partir  delas,  dos  analistas  que  compõem  o  campo  da  AD  no  Brasil   na  contemporaneidade.    

50  Assinalo  aqui  que  essa  leitura  radical  de  Pêcheux  vai  ser  modalizada  em  A  língua  inatingível;  o  discurso  na   história  da  Linguística  (GADET;  PÊCHEUX:  2004).  

51  No  CLG  o  objeto  da  Lingüística  é  a  língua,  definida  como  um  produto  social  da  faculdade  da  linguagem  e  um   conjunto  de  convenções  necessárias,  adotadas  pelo  corpo  social  para  permitir  o  exercício  dessa  faculdade  nos   indivíduos  (SAUSSURE,  2002:p.17)  e  sua  unidade  é  o  signo  visto  como  uma  entidade  de  duas  faces,  unindo  um   conceito  -­‐  o  significado  -­‐  a  uma  imagem  acústica  -­‐  o  significante.  A  questão  da  significação  fica  posta  como  uma   relação   interna   ao   sistema   (id.,   p.79-­‐80).   Na   palavra   não   há     sentido   em   si,   o   sentido   deriva   do   sistema.   O   significado  de  um  signo  é  o  que  os  outros  significados  não  são,  ou  seja,  a  significação  não  é  uma  representação  de   um   signo   em   relação   ao   mundo,   aos   objetos   fora   da   língua,   mas   está   vinculado   a   noção   de   língua   como   um   sistema  de  valores  puros  (id.,p.130).  Os  valores  são    definidos  negativamente  por  suas  relações   -­‐  ser  o  que  os   outros  não  são.  Assim,  na  língua  só  existem  diferenças,  sem  termos  positivos  (p.139).    

Marx feita por Althusser, Saussure por Pêcheux, Freud por Lacan52 e todos se encontram na AD. Este encontro criou um "efeito subversivo, que trazia a promessa de uma

revolução cultural e, na AD, uma nova maneira de ouvir a política" (GREGOLIN:2004,

p.32-3).

Quatro nomes, fundamentalmente, estão no horizonte da AD derivada de Pêcheux e vão influenciar suas propostas: Althusser com sua releitura das teses marxistas; Foucault com a noção de formação discursiva, da qual derivam vários outros conceitos (interdiscurso; memória discursiva; práticas discursivas); Lacan e sua leitura das teses de Freud sobre o inconsciente, com a formulação de que ele é estruturado por uma linguagem; Bakhtin e o fundamento dialógico da linguagem, que leva a AD a tratar da heterogeneidade constitutiva do discurso (GREGOLIN: 2003, p. 25).

A AD caracteriza-se por problematizar conceitos já estabelecidos, referindo os conhecimentos produzidos dentro da linguística àqueles trabalhados em outros campos do saber, assim como por uma reavaliação constante de seus pressupostos e re-elaboração de métodos a fim de dar conta da complexidade do objeto que se propõe a analisar. A AD, como bem lembra Leandro Ferreira (2006), é uma disciplina de conhecimento sobre a linguagem que permite alterar, modificar a experiência, a ação e o comportamento das pessoas. Isso a faz uma disciplina de intervenção no meio social, político e histórico.

A seguir apresento as noções de discurso, formação discursiva, formação

ideológica, texto, sentido e sujeito, pois estas categorias53 permitirão entender as condições de produção dos discursos sobre o Cultura Viva, em seus diferentes espaços.

52  Para  conhecer  a  inserção  da  AD  na  história  do  estruturalismo  francês  e  as  releituras,  recomendo  a  leitura  de   Dosse  (1993;  1994).  

53   A   ideia   de   categoria,   tal   como   apresentada   em   FICHTNER   (in   LABREA:2010,p.17,   grifo   meu)   me   parece   adequada  a  este  projeto:    

A   categoria   poderia   ser   usada   ao   mesmo   tempo   como   meio   ou   instrumento   da   análise.   Categorias   têm   um   potencial  metodológico  enorme.  (...)  As  premissas  são:  

•  Categorias  não  se  podem  inventar  ou  definir  cognitivamente  na  escrivaninha  de  um  filósofo,  de  um  intelectual.   Elas   são   resultados   de   um   processo   histórico-­‐social.   A   universalidade   sua   é,   literalmente,   trabalhada   e   elaborada  pela  sociedade.  A  sua  universalidade  é  resultado  de  uma  “prova  prática”,  de  uma  experiência  prática.   •  Categorias  não  se  desenvolvem,  primariamente,  como  formas  ou  modelos  de  pensar,  mas  como  modelos  de  

atividades.  Elas  são  programas  extremamente  generalizados  de  atividade  humana.  A  história  ou  a  construção  

de  categorias  é  um  processo  de  atuar,  que  se  realiza  nos  diferentes  contextos  da  vida  material  e  ideal  de  uma   sociedade.  

•  Na  sua  forma  conceitual  e  lingüística  o  status  de  ser  categoria  desses  esquemas  ou  modelos  de  atividades   torna-­‐se   explicito.   Neste   nível   se   realiza   uma   transformação   especifica,   um   trabalho   particular.   Formas   e   resultados    de  uma  prática  se  transformam  numa  relação  explícita  de  um  conhecimento  ou  de  uma  relação