1 DISPOSITIVO ANALÍTICO, TEÓRICO E METODOLÓGICO
33 Uma versão atualizada desta publicação foi lançada na TEIA 2010 sob o título de Programa Nacional de
1.3 DISPOSITIVO METODOLÓGICO: CARTOGRAFIA SOCIAL Diferente é o rizoma, mapa e não decalque.
Fazer o mapa, não o decalque. (...) Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua
abertura máxima sobre um plano de
consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. (...) Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre "ao mesmo". Um mapa é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida "competência".
Deleuze & Guattari
A cartografia (ROLNIK:1989; DELEUZE;GUATARI:1995) é o método de organização
textual desse estudo e busca mostrar diferentes vozes organizadas em diferentes recortes
discursivos compostos por textos, fotografias, citações e narrativas sobre o Programa Cultura e compor, assim, uma metanarrativa - uma narrativa que contém e atravessa diferentes narrativas, que se vira sobre si mesma - em que a polifonia é a principal característica. Na cartografia a posição-autor é mais uma posição entre outras, é quem organiza o texto e produz um recorte possível da realidade.
A ideia de polifonia se encontra em Bakhtin. Esse filósofo da linguagem emprega o conceito na análise da ficção dostoievskiana e sugere que a mesma colocava em jogo uma multiplicidade de vozes ideologicamente distintas, as quais resistiam ao discurso autoral. Conforme Scorsolini-Comin et al. (2008: p. 6), Bakhtin utiliza polifonia para descrever o discurso que resulta de uma trama de diferentes vozes, sem que nunca exista a dominação de uma voz sobre as outras. Uma das características do dialogismo é
conceber a unidade do mundo como polifônica, na qual a recuperação do coletivo se faz via linguagem, sendo a presença do outro constante. A linguagem, na concepção bakhtiniana, é uma realidade intersubjetiva e essencialmente dialógica, em que o indivíduo é sempre atravessado pela coletividade (cfe. PIRES; TAMANINI- ADAMES:2010). Essa ideia de polifonia, transposta para a perspectiva discursiva permite pensar a cartografia como metanarrativa em que diversas vozes estão presentes.
O texto que compõe este estudo é marcado pela "heterogeneidade enunciativa" (AUTHIER-REVUZ:1990), tanto a "mostrada como a constitutiva", em que a presença do outro - os diferentes interlocutores: outros pesquisadores que analisam o PCV, os pontos de cultura, os gestores -, é referência constante.
A heterogeneidade enunciativa é proposta por Authier-Revuz (1990), que toma como base para sua pesquisa os estudos de Bakhtin sobre a polifonia. Para ela, todo discurso é heterogêneo e as marcas palpáveis de outros discursos são, então, heterogeneidades mostradas em negociação com a heterogeneidade constitutiva. Em Authier-Revuz, a noção de heterogeneidade enunciativa é apresentada como sendo de dois tipos: a constitutiva e a mostrada (sendo a última marcada ou não marcada). Elas são consideradas como processos distintos: o primeiro refere-se “aos processos reais de
constituição de um discurso”; o segundo, aos “processos de representação, num discurso, de sua constituição” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.32).
No caso da heterogeneidade constitutiva a presença do outro não é óbvia e não deixa marcas visíveis. Authier-Revuz (idem, p. 26), toma os casos de heterogeneidade mostrada como “formas lingüísticas de representação de diferentes modos de
negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso”. Ela
ainda considera a existência de dois tipos de enunciados: aqueles que mostram a heterogeneidade, com marcas explícitas, e aqueles cujas marcas não são mostradas. Como exemplo de heterogeneidade mostrada e marcada, temos as glosas enunciativas, o discurso relatado (formas sintáticas do discurso direto e do discurso indireto), as aspas. Como exemplo de heterogeneidade mostrada, mas não marcada, temos a ironia, o discurso indireto livre, etc, que contam com o “outro dizer”, sem explicitá-lo, para produzir sentidos (cfe. AUTHIER-REVUZ:1990, 1998, 2004).
A heterogeneidade será mapeada - como citação ou recorte discursivo - compondo os espaços de formulação e de interlocução, pois entendo que são essas diferentes narrativas que mostram e conduzem a direção da metanarrativa que é o estudo. Dialogo com a produção acadêmica produzida sobre o MinC e o PCV. E construo um lugar enunciativo - a posição-autor -, em que tento um recuo crítico. As leituras de várias teses e dissertações apontam que a identificação plena deixa lacunas analíticas. Como exemplo, em vários textos analíticos de cunho acadêmico pesquisados, parte-se somente do que é dito. O dito vira um fato discursivo. O dito substitui os dados. Assim
são várias as pesquisas que simplesmente afirmam as redes ou a gestão compartilhada e transformadora do PCV, sem descrever ou caracterizar esses espaços, sem mostrar o que se entende por rede, o que é compartilhado ou transformado. Essa leitura ingênua e o
visível encantamento com as ideias do programa, na minha perspectiva, é parcialmente responsável por cristalizar a memória discursiva, em que o dito vira fato. Nessa tese busco mediar meu encantamento com o recuo crítico e por isso busco na gestão um mediador possível para ancorar o imaginado no vivido.
Evito deliberadamente as paráfrases - comum na academia e que esconde o que vem do outro - a habilidade em criar paráfrases fosse uma pré-condição para ser reconhecido como autor - e utilizo as citações para ilustrar, defender ou contrapor uma posição enunciativa. Essa prática não é valorizada na academia, assim como não é o uso da primeira pessoa do singular, mas entendo que assumir a autoria por suas próprias palavras - ou nos termos da AD, assumir sua total identificação com uma posição-sujeito e dai construir uma posição de autoria - e reconhecer a heterogeneidade enunciativa - o discurso outro - é fundamental para se entender os processos discursivos que proponho analisar.
Para entender o discurso do PCV creio que é necessário acompanhar as transformações e as derivas de sentido que este discurso produz e, quando possível ir
além do discurso, questionando-o em seu efeito de evidência68. Para fazer isso, optei por
68 Outra estratégia analítica é buscar a origem desse discurso. Ou seja, sua FD. Se parto do princípio de que o sujeito só diz o que pode ser dito a partir de sua vinculação a uma FD, qual a FD? Qual a forma-‐sujeito que organiza o que pode ou não ser dito? Quem define o que ou não ser dito no PCV e no MinC? Quais as condições de produção deste discurso? No PCV o discurso, aparentemente, basta a si mesmo, tem origem no próprio gestor. Nada mais enganador. As ideias eloquentes, as frases feitas, os textos-‐manifestos, os clichês abundam e reforçam um imaginário de cunho emancipatório, libertário, vanguarda e até mesmo revolucionário. Essas ideias
cartografar os sentidos que circulam nos espaços de formulação e de interlocução. Mas não é suficiente. É preciso mediar esses sentidos por um outro discurso, que será meu
interlocutor oculto ou leitor ideal, o da gestão pública. À margem das narrativas dos
gestores e dos Pontos, a burocracia produz sua própria narrativa69 e abre para a
polissemia. Articular o EF e EI ao discurso da burocracia tampouco é suficiente. Porque
existem vários planos narrativos70 que se encontram e desencontram, encobrem e revelam
sentidos. Na fala conseguimos, com alguma confusão, intercalar os planos: inicia-se um assunto, que transborda em outro que remete a uma lembrança e volta-se para o assunto inicial com alguma tranquilidade. No texto, literalmente linear, é mais complicado e por isso optei pelas notas de rodapé para incluir comentários, indicar leituras que complementam o texto, inserir narrativas alternativas, mostrar outras interpretações de alguns conceitos ou ideias expostas no texto. Enfim, as notas de rodapé constituem uma parte importante do meu texto, complementam e aprofundam algumas ideias.
A cartografia que organiza essa metanarrativa é o instrumento que me permite dar visibilidade aos diferentes efeitos de sentido que o discurso do Programa produz e me posicionar criticamente em relação a eles. Para os geógrafos, segundo Rolnik (1989:15),
são a grande "novidade" do programa e cantadas em verso e prosa. Literalmente. Mas essa grande novidade, ela só é dita e dita com essa ênfase porque há condições para que esse discurso seja dito. E um pesquisador curioso vai buscar os elementos que permitem a produção desse discurso. E a "novidade" se releva uma tendência geral do Governo Lula. Essa "novidade" já foi feita e muitas vezes de maneira bem mais radical, em governos municipais ou estaduais. Enfim, em vez de aceitar por novidade o que o gestor que vender como novidade, busco confrontar o que é dito com o que é feito, ou nos meus termos, o imaginado com o vivido.
69 Um exemplo caricato, o gestor anuncia aos quatro ventos que seu ministério é prioridade para o governo federal e que tal secretaria é agora a mais importante, mas ao seguir os números vemos que o orçamento se mantém nos mesmos índices das gestões anteriores e a tal secretaria recebe menos recursos que outras. Assim, qual a evidência dessa importancia, para além do plano discursivo? Na gestão pública é prioridade o que recebe mais recursos orçamentários, os gastos que não sofrem contigenciamento, as instituições que conseguem mais recursos humanos. Enfim, é prioritário o que recebe prioridade da administração pública.
70 Por vários planos narrativos entendo que não há uma história linear, há sobreposição de narrativas. Sempre. Para exemplificar, retomo e expando o exemplo anterior: o gestor exalta a priorização do programa por parte do governo federal, o relatório de gestão demonstra que o orçamento foi reduzido, um beneficário da política não recebe os recursos e fecha as portas, outro também não recebe, mas fez parcerias na comunidade e mantém suas atividades, outro recebe e compra roupas novas pros seus brincantes, outro recebe e foge com o dinheiro, um pesquisador lê a cartilha do programa e acredita em tudo, outro não acredita em nada e vai à campo, um grande evento acontece e todos falam bem do programa, um grande evento não acontece e todos falam mal do programa, um gestor imagina que pode ascender na política, outro quer voltar a cantar, um poeta vira gestor, um gestor vira beneficiário do programa e vice-‐versa, redes solidárias são formadas, grupos hierárquicos se apelidam de rede, gestores passam no doutorado e querem entender o que é mesmo que andam fazendo no governo federal, o programa perde prioridade e recursos, dois programas se tornam um, um acadêmico lê Paulo Freire, outro Antonio Negri, outro Teixeira Coelho e outro Celso Furtado, todos imaginam compreender o programa. E tudo isso ao mesmo tempo. Todas as narrativas falam de um aspecto -‐ um pequeno mundo de sentido -‐ que em algum momento também constitui a política.
"a cartografia é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem".
Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – uma perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos.
Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fizerem necessária (ROLNIK: 1989, p.15-6, grifo meu).
A opção metodológica em escrever uma cartografia em vez de um relato linear, monológico e com a presença do outro apagada pela posição-autor, se justifica porque prefiro deixar que as narrativas já estabelecidas contem essa história. Deleuze e Guattari
(1995: p.11-13) propõem rizoma71 como metáfora de uma escrita que contemple o
múltiplo a partir de alguns princípios que, na minha leitura, convergem com os princípios do estudo ora proposto. Nessa concepção rizoma é discurso.
Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. (...) Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. (...) Uma tal multiplicidade não varia suas dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se metamorfosear. Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, por correlações binárias entre estes pontos e relações biunívocas entre estas posições, o rizoma é feito somente de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza. (...) Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, enter-ser, intermezzo (DELEUZE;GUATTARI:1995, p.32, 37).
Entendo que a escrita é heterogênea na sua constituição, que em um texto outros textos falam, diretamente (citações) ou indiretamente, e que podemos relacionar ou conectar os enunciados "colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes,
mas também diferentes estatutos de estados de coisas" (op.cit). Se entendermos o
discurso como um rizoma, vamos conectar cadeias de sentidos, organizações de poder, ocorrências que remetem à ideologia, à política e à história.
A polifonia na escrita é entendida como a capacidade de, no fio do discurso, evidenciar a exterioridade e as condições de produção que o constitui: acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações sociais (DELEUZE; GUATTARI: 1995, p.18). Esta cartografia organiza uma parte da história do Cultura Viva, uma versão entre outras, contada pelo enredados, em textos dispersos nas redes e que proponho recuperar e mapear.
Latour (1994) relaciona rizoma como uma metáfora adequada para estudo de redes, pois ela é aberta e heterogênea, passível de estabelecer todo e qualquer tipo de conexão. Rizoma é uma dupla metáfora neste estudo: sinaliza a heterogeneidade
discursiva e a heterogeneidade das redes.
As redes como rizoma são marcadas pela transformação, pelo trabalho de fabricação dos fatos, dos sujeitos, dos objetos. Fabricação que se faz em rede, através de alianças. Na noção de rede o que importa não é somente a ideia de vínculo, mas sim o que estes vínculos produzem e que efeitos decorrem de tais alianças. (...) Neste sentido, uma sociologia de redes é igualmente uma geografia, ou uma cartografia social (SANCHEZ: 2008, p.104-5).
As subjetividades individuais e coletivas adquirem um papel relevante nos "estudos culturais sobre identidades construídas sob a forma de narrativas" (SANTOS, 2005: p.19). Entender que práticas são desveladas e como se organizam esses novos sujeitos epistêmicos, pressupõe um novo modo de produzir conhecimentos, necessita de uma racionalidade mais ampla, em que se amplia a diversidade epistemológica do mundo ao credibilizar a experiência social e ao reconhecer que existem infinitas formas de descrever, ordenar e classificar o mundo.
2 A POLÍTICA CULTURAL DO GOVERNO LULA DETERMINAM AS