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5 A NOÇÃO POLISSÊMICA DE REDE NO PCV: A REDE COMO METÁFORA

5.3 A REDE COMO METÁFORA: PARTICIPAÇÃO SOCIAL E GESTÃO COMPARTILHADA COM QUEM?

Das margens se veem melhor as estruturas de poder.

Boaventura de Sousa Santos

Organizar redes com os grupos culturais beneficiários dos editais do Programa Cultura Viva é uma iniciativa do governo federal para fazer a gestão compartilhada do programa e para criar uma esfera pública que articule o governo e os grupos culturais beneficiários das políticas públicas. As noções de rede que o CV mobiliza são polissêmicas, dizem respeito a articulações locais, regionais, estaduais e nacional, entre os pontos e pontões de cultura e comunidades, às relações entre pontos, entre pontos e pontões, às redes virtuais, à espaços e eventos de inclusão e participação social, à mobilizadores regionais, aos circuitos culturais e à forma de gestão do programa. São, discursivamente, redes dentro

A rede, para o Estado é uma metáfora141 para os espaços de participação social, indistintamente, sem considerar seu desenho, que envolve tanto espaços e territórios, como descreve a gestão e as ações do programa, os grupos de discussão vitual, a forma dos pontos se organizarem, os eventos. Um olhar atento diria que no programa, tudo é

rede.

Podemos seguramente afirmar que “as redes”, tomadas aqui de maneira mais ampla – como metáfora conceitual adequada para descrever um modo descentralizado de organização e de distribuição de bens, de ajuda, de oportunidades, de conhecimento entre indivíduos pertencentes a grupos sociais diversos (...) (GOMES in LABREA et al:2009, p.38).

O discurso que caracteriza tal descrição é focado unicamente nos aspectos positivos de ser/estar em rede e reproduz um saber institucionalizado sobre o funcionamento da rede e esse discurso é referendado como matriz de sentido. Essa matriz

de sentidos estabilizados vai sendo incorporada e repetida de várias formas diferentes

inclusive ao referir outras redes, inscrevendo-se na configuração típica dos discursos pedagógicos que é a circularidade: discursos que se auto-alimentam, repetindo o mesmo (ORLANDI:1996, p. 15). A repetição de um enunciado discursivo e a regularização de seu sentido passa a constituir a memória discursiva. O discurso institucional do CV repete os atributos das redes, mas não mostra como viabilizar essas articulações, o projeto compartilhado, nem tampouco como mensurar se elas estão sendo bem-sucedidas, do ponto de vista da efetividade da política que se pretende implementar.

O sentido de rede expresso nos recortes discursivos acima é uma concepção à

priori de redes – contra-hegemônica -, idealizada, baseada apenas na sua forma aparente

e desconsidera a lógica de produção de dinâmicas de relacionamento, afastamentos e aproximações, tensões e contradições entre os ponteiros, característica da rede real.

Assim, para ter uma resposta à pergunta que este estudo propõe responder - qual o sentido de rede assumido discursivamente pela SCDC que passa a constituir sua memória discursiva? - já podemos inferir que não existe o sentido de rede, mas vários sentidos - de diferentes escalas e registros - que dialogam e formam uma noção polissêmica e de difícil ancoragem em práticas concretas.

141  Metáfora:  emprego  de  uma  palavra  num  sentido  que  se  assemelha  e  no  entanto  difere  do  seu  sentido  habitual   (DUCROT;  TODOROV:  2001,  p.254).    

As diferentes noções de rede presentes no discurso fundador do PCV, reiterado nos documentos institucionais, mostram que há uma assimetria constitutiva no discurso do PCV entre o dizer e o fazer. Essa assimetria é característica do discurso político populista: a memória é seletiva, os governos em geral enfatizam os aspectos positivos da política e minimizam os negativos, quando o mencionam.

As categorias descritas a partir do discurso institucional do CV não são suficientes para descrever tipologias de redes, pois essas dependem da descrição dos objetivos, metodologia de articulação, acompanhamento e avaliação dos resultados e processos, envolvendo aspectos que não são contemplados na proposta de rede do programa. Mas a descrição das características idealizadas pelos formulares do programa para cada uma das redes acima descritas servem para que possamos visualizar que a noção de rede e seus atributos permeiam todo o discurso sobre o programa, tanto no nível de formulação da política - que pretende uma rede que mobiliza a gestão compartilhada em que a definição das ações, a natureza das articulações e eventos que o CV organiza seriam decididos em instâncias participativas – quanto no nível operacional, das relações entre os pontos e pontões de cultura e comunidades ou instituições parceiras.

A formação de redes é uma aposta incial do MinC. A primeira pesquisa avaliativa do PCV, realizada pelo IPEA ao longo de 2007 e 2008, mostra que "apenas 10% dos

pontos tiveram como motivação para ingresso no programa a articulação de redes"

(BARBOSA DA SILVA; ARAÚJO: 2010, p.65, grifo meu).

Portanto, se o dinamismo das parcerias, articulações e capacitação é apresentado enquanto preocupação, elas já resultam de processos de desenvolvimento do programa e, provavelmente, implicam ampliação das necessidades sentidas e observadas pelos coordenadores dos pontos, não decorrendo da motivação inicial para a adesão. (BARBOSA DA SILVA; ARAÚJO: 2010, p.66, grifo meu).

A ideia da rede não é inicialmente uma necessidade dos pontos, mas eles aderem a proposta do MinC e "68% dos pontos ouvidos na pesquisa interagiram com a rede de

pontos, 60% interagiram com os pontões e 46% com o Sistema Nacional de Cultura e 91% participaram da Teia" (BARBOSA DA SILVA; ARAÚJO: 2010, p.67, grifo meu).

Creio que já descrevi o suficiente sobre a natureza convencional destes espaços e a rede como metáfora, é utilizada pelos gestores do programa para designar um conjunto de

parte do ritual discursivo de continuidade que visa manter e atualizar a memória

discursiva do programa e é uma estratégia para destacar o aspecto inovador da política.

A proliferação de categorias não vem acompanhada da devida descrição de como irá se estruturar a rede como esfera pública e, principalmente, como o poder irá circular entre sujeitos que ocupam diferentes posições enunciativas e sociais. Boaventura de Sousa Santos vincula o hibridismo à falta de elucidação das relações de poder “que

presidem à produção tanto de homogeneização (ou paráfrases) quanto de diferenciação (ou polissemia)”. Sem tal elucidação não se diferenciam vinculações e hierarquias entre

eles (SANTOS:2005b, p.46).

EF mostra diferentes dimensões de uma política cujo desenho enfatiza a

articulação entre o governo e a sociedade, a participação social realizada a partir da noção de rede e de gestão compartilhada. São dimensões extremamente valorizadas no

Governo Lula e essa aproximação entre governo e sociedade já é uma marca dos governos petistas em nível estadual e municipal, desde a década de 1980. Essa ideia está presente em todos os discursos institucional sobre o PCV:

A aplicação do conceito de gestão compartilhada e transformadora para os Pontos de Cultura tem por objetivo estabelecer novos parâmetros de gestão e democracia entre Estado e sociedade. No lugar de impor uma programação cultural ou chamar os grupos culturais para dizerem o que querem (ou necessitam), perguntamos como querem. Ao invés de entender a cultura como produto, ela é reconhecida como processo. O aspecto comum entre os Pontos de Cultura no Brasil é a gestão compartilhada entre poder público e comunidade. O MinC atua como agregador de recursos e de novas capacidades para projetos e instalações já existentes através de subvenção; como também, oferece equipamentos que amplifiquem as possibilidades do fazer artístico (MIRANDA in LABREA & RANGEL: 2010, p.52).

O discurso de gestão compartilhada acompanha o PCV desde sua formulação. No entanto, esse entendimento não está acompanhado da necessária descrição dos espaços e dos limites desta interlocução e isso reduz bastante o entendimento da materialidade deste discurso. Quais são as práticas, os fóruns, os eventos, os interlocutores que de fato realizam uma gestão compartilhada? Quais aspectos da gestão pública podem ser compartilhados com a sociedade civil? Outra questão que me parece importante refletir é como essas estruturas em rede dialogam com as estruturas formais de participação social já instituídas pelo MinC, como o Sistema Nacional de Cultura, a Conferência Nacional de Cultura e seus GTs Setoriais, o Plano Nacional de Cultura, os fóruns municipais e

estaduais de Cultura, entre outros? Todas essas instâncias podem ser consideradas redes contra-hegemônicas? Mesmo quando elas se organizam historicamente de forma vertical, tenham representantes com mandatos, sejam coordenadas, mantenham um sistema hierárquico bem demarcado e o poder esteja concentrado em certos espaços enunciativos?

Embora o discurso do Programa repita ao longo dos anos a ideia de gestão

compartilhada, ela é uma intenção e como tal é entendida e apreendida pelos Pontos e

Pontões:

A gestão compartilhada, envolvendo instâncias de governo e sociedade civil, ainda que não ocorra de forma efetiva, é considerada uma intenção positiva do Ministério da Cultura (LYRA et alii:2011,p.66).

O Almanaque Cultura Viva esclarece que a Rede de Pontos de Cultura é organizada a partir "encontros setoriais que definem a gestão compartilhada do

Programa Cultura Viva e dos pontos de cultura entre o governo e a sociedade, mediante fóruns, Teias e Comissão Nacional dos Pontos de Cultura" (BRASIL:2009b), além de

reuniões, encontros, oficinas, eventos culturais. Todos os espaços que o governo designa para o diálogo com a sociedade é considerado rede e a ausculta de suas demandas e experiências considerada gestão compartilhada. Nestes termos, a rede e a gestão compartilhada do PCV se concretizam em espaços verticais, estruturados de forma tradicional: há representantes, que são eleitos, há hierarquia entre essas representações, há controle dos espaços de argumentação por grupos que se mantém indefinidamente no poder, há listas abertas e listas fechadas de interlocução, há pessoas ou grupos de pessoas mais próximos e outros mais distantes dos interlocutores na secretaria, as relações são assimétricas e monológicas: há muita informação e pouco diálogo. Enfim, o discurso aponta para redes contra-hegemônicas, mas a realidade aponta para redes hegemônicas (CASTELLS:1999a, 1999b, 1999c). Embora a proposta do programa seja a gestão em rede, ela não é compartilhada e tranformadora porque a rede é atravessada pela

burocracia. Esta rede é organizada para manter os espaços de argumentação e de poder

em estruturas fixas.

Domingues (2008) apresenta alguns dados sobre gestão compartilhada obtidos na pesquisa realizada pelo Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro em 2006. As entrevistas com gestores do programa mostram que eles entendem que “a participação dos pontos no processo de gestão do programa

ajudaria a reduzir os problemas de execução”. Ou seja, os problemas de gestão são

acentuados porque os pontos não participaram do processo de gestão. A pesquisa mostra que, à época, o Cultura Viva conseguiu um “alto grau de aprovação dos objetivos e

concepções do programa por parte dos pontos de cultura”, muito embora, quanto à

adesão ao processo participativo houve uma “escassa participação dos pontos do

processo de gestão do programa” (DOMINGUES:2008).

A Avaliação Piloto do LPP nos fornece alguns dados sobre a participação dos Pontos de Cultura na gestão do Programa e ilustram a novidade que o Programa inaugura. A pesquisa concluiu ao mesmo tempo que 68% dos Pontos de Cultura afirmaram não

participar da gestão do Programa Cultura Viva – um número muito baixo de adesão

para o conceito da gestão compartilhada, embora a pesquisa não investigue os motivos para a não adesão –, embora 86% dos Pontos de Cultura consideram que deveriam

estar participando mais ativamente deste processo. Este segundo dado deve ser

relativizado quanto ao item “Grau de conhecimento sobre o Programa Cultura Viva e seus componentes”, que concluiu que 17% dos Pontos de Cultura nunca ouviram

falar no conceito de gestão compartilhada e transformadora, enquanto que 33% dos

Pontos conhecem bem o conceito de gestão compartilhada e transformadora; 26% ouviram falar várias vezes nele; 24% ouviram falar poucas vezes (DOMINGUES:2008, p.188-9, grifo meu).

No Almanaque Cultura Viva (BRASIL:2010b) e, depois reiterado nas pesquisas do Ipea, é dito com todas as letras: a gestão compartilhada em 2010, após 6 anos de programa, só existe no discurso institucional, é ainda um desafio. Os espaços de participação social, característicos de toda a administração federal, desde a época da redemocratização, não promovem gestão compartilhada da política pública, e sua eficácia como escuta da sociedade ainda deve ser estabelecida: é público e notório a grande dificuldade em traduzir em ações concretas as reinvindicações das Conferências Nacionais, dos Fóruns, dos GTs, mesas de negociação e Conselhos.

No mapeamento que faz das instâncias de participação social no governo federal, Pires e Vaz (2012) argumentam que cada um dos diferentes canais de interlocução com o

Estado "carregam em si variações na capacidade de tornar o Estado mais ou menos

permeável às demandas e, principalmente, em assumir corresponsabilização no planejamento público" (p.15). As redes, não são sequer citadas nessa pesquisa como canal de interface socioestatal, porque dadas sua baixa institucionalidade, é um canal

com baixo ou nenhum poder decisório, possui no máximo um caráter consultivo. As redes do PCV possuem significativo poder informacional.

Estes autores propõe a expressão interface socioestatal em vez de participação

social para se referir a estes canais. Esta opção decorre da ideia de participação social

estar usualmente

associada às negociações estabelecidas entre Estado e sociedade que resultam, em geral, em questões definidoras de alocação e distribuição de bens e serviços públicos numa perspectiva ampliada. Sob sua égide, as ações dos agentes tendem a redundar num espectro de atuação – tanto objetiva, quanto temática – de ordem primariamente coletiva, como no caso das políticas de saúde, assistência social, e educação, entre outras (PIRES;VAZ:2012, p.16, grifo meu).

No caso do governo federal, segundo eles, não é o caso. Para eles, o que ocorre em nível federal caracteriza, no máximo, um "contato entre Estado e sociedade nos extremos de atribuição consultiva e de atribuição de corresponsabilização, ou cogestão" (op.cit, p.16, grifo meu). Os canais de corresponsabilização ou cogestão se dariam nos conselhos e em algumas mesas de negociação. A inteface socioestatal tem um caráter mais comunicacional em relação ao Estado.

Podem se subdividir em interface de contribuição, na qual a sociedade informa ao Estado acerca de sugestões e/ou demandas; interface de transparência, na qual o Estado informa à sociedade suas perspectivas e ações; e interface comunicativa, na qual ambos os atores se informam mutuamente (PIRES;VAZ:2012, p.16).

Para entender a relação entre as redes imaginadas e as redes vividas, busco o

espaço de interlocução que se abre para as narrativas dos pontos e pontões de cultura, dos

gestores, dos pesquisadores e dos parceiros do PCV para verificar a efetividade das redes, o que de fato elas mobilizam, do ponto de vista da gestão pública e como esse discurso se materializa nas práticas dos pontos e pontões de cultura. Talvez o espelho que mostre o que é a rede seja aquele que reflita os protagonistas desta ação política.