• Nenhum resultado encontrado

1 DISPOSITIVO ANALÍTICO, TEÓRICO E METODOLÓGICO

1.1 DISPOSITIVO ANALÍTICO: O ARQUIVO

Mas o que é um dispositivo? É, antes de mais nada, uma meada, um conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de diferentes naturezas (...) Destrinchar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é traçar um mapa, cartografar, agrimensar terras desconhecidas, e é o que [Foucault] chama de ‘trabalho de campo’.

Gilles Deleuze

A ideia de arquivo adotada neste estudo apresenta-se em Foucault31, que dirá que um

arquivo é um sistema de enunciados (2000: p.148-149) que permite analisar as relações

entre o discurso (verbal e não-verbal) e outros domínios. O discurso, como pondera Eni Orlandi (1993), pode ser verbal ou não-verbal. O verbal é formado por textos e o não- verbal por imagens, no caso desta pesquisa, fotografias. Para Foucault um enunciado é uma função (op.cit:p.98), a função enunciativa que é exercida por um sujeito em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e permitem que

ele seja enunciado32. Não é a organização de um acúmulo de textos ou de imagens, linear,

cronológico, que tende à totalidade, a fim de esgotar um assunto, mas ao contrário, organiza uma rede de formulações que é marcada por certas regularidades que definem o sistema de seu funcionamento.

Entre a língua que define o sistema de construção das frases possíveis e o corpus que recolhe as palavras pronunciadas, o arquivo define um nível particular; o de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados (...). Não tem o peso da tradição, não constitui uma biblioteca (...), entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da formulação e da transformação de enunciados (FOUCAULT:2000, p.150).

31   Foucault,   segundo   Gregolin   (2004),   desenvolveu   um   projeto   epistemológico   ligado,   principalmente,   às   relações  entre  saber  e  poder  na  história  da  sociedade  ocidental  e  sua  obra  se  organiza  em  três  fases  (p.53-­‐54).   Na   fase   "arquealógica"   busca   compreender   as   transformações   históricas   dos   saberes   que   possibilitaram   o   surgimento   das   ciências   humanas;   na   fase   "genealógica"   tenta   compreender   as   relações   entre   os   saberes   e   os   poderes;  por  fim  estudou  a  construção  histórica  da  subjetividade,  em  uma  "ética  e  estética  da  existência"(p.54).     32  Cfe.  Foucault  (200:  p.89  a  121).  

Para Foucault, a arqueologia que organiza o arquivo não visa a nenhum começo ou busca pela origem do discurso, mas busca descrever a função enunciativa e a

formação discursiva a qual pertencem os discursos como práticas específicas no elemento do arquivo (FOUCAULT:2000, p.151). Principalmente para não se confundir a

arqueologia com uma história das ideias, ele propõe alguns princípios: a arqueologia busca relacionar os discursos, enquanto práticas que obedecem regras, que são da ordem do repetível às suas condições de produção, ou seja, entende o discurso em sua dimensão de acontecimento: mesmo tendo sido enunciado repetidamente, um texto ou uma imagem nunca são os mesmos porque mudam suas condições de produção e a posição-sujeito do enunciador e porque ele mantém relações com outros enunciados. Em sua especificidade, é uma análise diferencial das modalidades de discursos, que não se preocupa com o que o autor queria dizer, mas busca descrever o funcionamento do discurso enquanto um objeto passível de ser teorizado (FOUCAULT:2000, p.159-160). Ela trabalha fora da linearidade e busca na descontinuidade, nas brechas, no emaranhado de fatos discursivos anteriores a um acontecimento que, ao mesmo tempo, o explicam e determinam (GREGOLIM:2004, p.77).

No caso dessa pesquisa, o arquivo é formado pelo corpus discursivo organizado a partir de recortes textuais e imagens fotográficas. Orlandi (2010) afirma que a imagem é

discurso - linguagem não-verbal - e carrega o deslocamento de sentidos, tem pontos de deriva, incide em outros discursos. Dessa maneira funciona articulada com o verbal na

construção da memória discursiva, fortalece a função de símbolo do discurso que caracteriza o CV, se vincula a uma posição-sujeito e dessa posição compõe parte das narrativas que criam uma realidade da representação, um recorte que cria uma versão da realidade, como se fosse o real e colabora para fortalecer a poética da política e faz parte do exercício de imaginação que é o desenho idealizado da política. As fotografias são imagens atravessadas pela memória e fragmentos deliberado do cotidiano, dos encontros entre os pontos de cultura e o Estado. A ideia de recorte adotada neste trabalho se apresenta em Orlandi (1996). Para ela, o recorte é uma unidade discursiva, ou seja, fragmento textual que relaciona a linguagem às suas condições de produção, ou seja, diz respeito aos interlocutores e seus lugares sociais. Para a autora, a noção de recorte não é segmental, recorte é pedaço, isto é, o recorte é um fragmento da situação discursiva que

pode apreender a incompletude como constitutiva do sentido e condição da linguagem

(ORLANDI, 1996: p.139-140).

Foucault (1969: p.25) entende que os recortes são categorias reflexivas,

princípios de classificação, regras normativas, tipos institucionalizados: fatos de discurso que merecem ser analisados ao lado de outros que com eles mantém relações complexas. Neste estudo, a proposta é recortar vários fragmentos textuais e imagens que

sejam representativas das questões colocadas nos objetivos de pesquisa, a fim de que sejam analisadas e interpretadas à luz das noções mobilizadas.

1.1.1 A construção do corpus discursivo

Ele estabelece que somos diferença, que nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos tempos, nosso eu a diferença das máscaras. Que a diferença, longe de ser origem esquecida e recoberta, é a dispersão do que somos e fazermos.

Foucault, sobre o arquivo.

Neste estudo, se distingue o corpus empírico, no caso, constituído pela totalidade da

produção discursiva realizada no período de 2004 a 2013, entre todos os protagonistas do

Cultura Viva e o corpus discursivo, o arquivo que, no gesto de interpretação do analista,

representa essa totalidade - porque não se pretende a análise exaustiva, tendendo à completude (ORLANDI:1989, p.32), mas estipula-se arbitrariamente um número de

sequências discursivas e fotografias, visando uma amostra representativa, cujos resultados serão considerados extensivos ao campo discursivo de referência (INDUSRKY:1997, p.48), ou, nos termos de Foucault, o arquivo.

Inicia-se o trabalho de análise pela configuração do corpus, delineando-se seus limites, fazendo recortes, na medida mesma em que se vai incidindo um primeiro trabalho de análise (ORLANDI: 2000, p.66-67).

É importante destacar que o trabalho de seleção dos recortes discursivos que irão compor o arquivo é, ele próprio, objeto de análise prévia: decidir, entre a totalidade de

textos já produzidos, considerados dados empíricos, aqueles que serão mobilizados

arquivo que tenha condições de responder, ao menos parcialmente, às questões postas nos objetivos de pesquisa e possa descrever o modo como os discursos funcionam a partir de diferentes lugares sociais o que isso significa do ponto de vista da gestão de uma política pública.

O corpus discursivo mobilizado para este estudo traz sequências discursivas oriundas de dois espaços: o espaço de formulação (EF) e o espaço de interlocução (EI) (LABREA:2009), que juntos, compõem o arquivo. Cunhei esses dois termos para organizar duas categorias distintas, uma, EF, relaciono à memória discursiva e a relações parafrásicas e o outro, EI, à dinâmica paráfrase e polissemia. Apresento abaixo a descrição desses dois espaços.

1.1.1.1 Espaço de formulação

Somos mestiços. Não apenas etnicamente mestiços. Somos culturalmente mestiços. Dançando o Aruanã sob a lua; rezando numa capela de Nossa Senhora Chestokova; curvadas sobre a almofada da renda de bilros; trocando objetos e valores no Moitará; depositando ex- votos aos pés dos nossos santos; sambando na avenida; contemplando a pedra barroca tocada pela eternidade do Aleijadinho; dobrando a gaita numa noite de frio, no sul; tocados pela décima corda da viola sertaneja; possuídos pelo frevo e o maracatu nas ladeiras de Olinda e Recife; atados à corda do Círio de Nazaré; o coração de tambores percutindo nas ruas do Pelourinho ou no sapateado do cateretê; girando a cor e a vertigem do Boi de Parintins e de São Luiz; digerindo antropofagicamente o hip hop no caldo da embolada ou do jongo. Somos irremediavelmente mestiços. A lógica da homogeneização nos oprime. Por isso gingamos o corpo, damos um passe e seguimos adiante como num drible de futebol ou numa roda de capoeira que, sem deixar de ser luta, tem alma de dança e de alegria. Como formular um projeto de Políticas Públicas de Cultura que contemple esse mosaico imperfeito?

A imaginação a serviço do Brasil: programa de políticas de cultura (PT:2002).

O espaço de formulação (EF) se compõe dos discursos materializados nos textos dos documentos, imagens fotográficas e publicações oficiais da SCDC/MinC, no período de

2004 a 2013, que visam dar visibilidade e fazer circular a teoria do programa e passam a constituir o discurso que contém a memória institucional do PCV. É um arquivo que organiza um continuum discursivo, marcado pela paráfrase e reiteração do conteúdos semânticos. Alguns textos tem seus autores explicitados e outros são documentos institucionais do MinC.

O espaço de formulação tem como característica a paráfrase, a estabilidade e a repetição do mesmo discurso. Foucault (2000: p.123) diz que a formulação é um acontecimento que é demarcável segundo critérios espaço-temporais e que pode sempre

ser relacionada a um autor. A paráfrase é um recurso intertextual no qual um texto é

elaborado a partir do conteúdo de um texto anterior, mantendo, contudo, seu conteúdo semântico inalterado ou muito próximo do sentido anterior ou original. Na perspectiva discursiva, a paráfrase garante a estabilidade dos sentidos, mantendo no fluxo do discurso a atualidade de referências já antes mencionadas.

EF se ancora em uma posição-sujeito dominante (LABREA:2009). A posição-

sujeito dominante representa o sujeito universal da FD e o discurso que determina os

sentidos que circulam no espaço de formulação e que se mantém como memória discursiva. Esta posição-sujeito se identifica com o discurso do poder, é estável e determina as ações políticas da rede e sua identidade coletiva (LABREA:2009, p.62).

O período estudado atravessa três gestões presidenciais, quatro gestões ministeriais e quatro secretários, como pode-se observar no Quadro 1 abaixo:

Presidente   Ministro   Secretário  

Luis  inácio  Lula  da  Silva   (2003-­‐2010)   Gilberto  Gil  (2003-­‐2008)   Juca  Ferreira  (2008-­‐2010)   Célio  Turino  (2004-­‐2010)   TT  Catalão  (2010-­‐2011)   Dilma  Rousseff   (2011-­‐2014)  

Ana  de  Hollanda  (2011-­‐2012)   Marta  Suplicy  (desde  2012)  

TT  Catalão  (2010-­‐2011)   Marta  Porto  (2011)  

Márcia  Rollemberg  (desde  2011)   Quadro 1 - Presidentes do Brasil, Ministros da Cultura e Secretários de Cidadania e Diversidade Cultural no período de 2003 a 2012. Fonte: MinC - Elaboração da Autora

Identifico a origem da memória discursiva do PCV na publicação Cultura Viva;

Programa Nacional de Arte, Educação, Cidadania e Economia Solidária33 (2004 e