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A análise de José de Souza Martins sobre a questão agrária

Capítulo 1: Fundamentos da questão agrária na particularidade do capitalismo brasileiro

1.1 Particularidade Capitalista em Marx e Lênin

1.2.3 A análise de José de Souza Martins sobre a questão agrária

O sociólogo José de Souza Martins se aprofundou nos estudos relativos à questão agrária e construiu uma vasta obra sobre o tema. Seus primeiros escritos são do final da década de 60 e início da década de 70. Em 1973, foi publicada a sua tese de doutoramento, com o título: A

imigração e a crise do Brasil Agrário. Neste texto, Martins aborda a crise que se instala, entre

meados e o fim do século XIX, em decorrência do padrão de realização do capitalismo no Brasil, cujo cerne residia no âmbito agrário. As duas expressões da instauração dessa crise foram: a Lei de Terras de 185029, que segundo o autor, instituiu a propriedade privada da terra, e a Abolição

28 Em entrevista concedida à revista Estudos Avançados, José de Souza Martins (1997) relatou sua trajetória

acadêmica, descrevendo as preocupações teóricas do grupo de sociologia de São Paulo.

29 Ligia Osório Silva (1996) realizou um importante estudo sobre a Lei de Terras de 1850 e possui discordâncias com

relação a José de Souza Martins, já que ele defende que a terra tornou-se cativa a partir desta lei. A historiadora afirma que, embora de forma secundária, o apossamento de terras por trabalhadores pobres continuou ocorrendo após esta data, em suas palavras: “A única forma de abarcarmos a compreensão do papel da lei de 1850 é a análise do processo histórico real do qual ela fazia parte. A análise das condições sociais concretas imperantes no campo brasileiro durante a vigência da lei mostrou-nos a importância do papel desempenhado por alguns elementos da sociedade rural, em especial o coronel, no processo de apropriação das terras devolutas. (...) Acreditamos ter demonstrado que no período áureo do coronelismo a constituição da propriedade privada da terra estava em plena efervescência e a classe dos proprietários de terras em formação.Por outro lado, a exclusão de parcelas significativas da população brasileira da propriedade da terra não deve obscurecer o fato de que a continuidade do apossamento, defendida pelos fazendeiros, tornou menos rígida a situação social no campo (em comparação com outros países) e permitiu a ocupação pelo pequeno posseiro, mesmo que de maneira instável e secundária. Nesse sentido, seria possível talvez (só um estudo específico poderia confirma-lo) falar-se no exercício de uma hegemonia por parte dos grandes fazendeiros, organizada em torno do acesso continuado às terras devolutas e integrando de modo subordinado os pequenos posseiros.” (p. 344)

45 da Escravidão em 1888, quando houve a separação entre a força de trabalho e a pessoa do trabalhador, conformando um mercado de trabalho. Contribuiu fortemente para a instauração desse mercado de trabalho, a vinda maciça de imigrantes, principalmente italianos. Desse contexto emana a figura do camponês. Contrariamente ao capitalismo clássico onde ele teve que ser extinto para que o capitalismo se desenvolvesse, no Brasil, ele seria produzido pelo contexto histórico no qual avança a produção capitalista:

A imigração maciça de trabalhadores estrangeiros para o Brasil, principalmente italianos, sobretudo a partir de 1886, durante quase meio século, está diretamente ligada à constituição de um mercado livre de trabalho para a grande lavoura, tendo como suporte simbólico a ascensão social do trabalhador para essa forma de campesinato. Forma que foi, portanto, produzida diretamente pelas condições e possibilidades de efetivação do capitalismo no Brasil. O proprietário independente apoiado no trabalho familiar como figura suposta da política de colonização e de instauração do trabalho livre veio, assim, a se constituir numa figura contraditória de camponês do capitalismo dependente. Esse camponês não representou uma sobrevivência do passado, mas foi gerado em condições históricas específicas, resultantes das transformações sociais e econômicas associadas à preservação da economia colonial. Nesse momento, é que mesmo as sobrevivências, como as dos antigos sitiantes e posseiros caipiras, são reequacionadas historicamente, determinando-se através de uma nova mediação: a da propriedade capitalista da terra. É por meio dessa instituição que a economia colonial cria e redefine diversas categorias sociais, fazendo com que se revistam de formas e conteúdos congruentes com as necessidades de reprodução do capitalismo periférico. (MARTINS, 1973, p.16)

Já aparece nessa obra de Martins uma idéia central de sua interpretação sobre a questão agrária e que foi desenvolvida posteriormente pelo autor em Os camponeses e a política no Brasil e em O Cativeiro da Terra.30 Segundo ele, a extensão do capitalismo ao campo não se deu pelo advento de relações de produção pautadas na compra e venda da força de trabalho: “Na verdade o capitalismo se estende ao campo quando se institui a propriedade capitalista da terra, através da classificação desta como equivalente de capital, isto é, renda territorial capitalizada.” (MARTINS, 1973, p. 25)

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A primeira edição do Os camponeses e a política no Brasil é de 1981. A primeira edição de O cativeiro da terra é de 1979. Segundo este ideário: “Trabalhar para vir a ser proprietário foi a fórmula definida para integrar o imigrante na produção do café.” (MARTINS, 1981, p. 60). No entanto, foi com base na extrema exploração do trabalho desses imigrantes que os fazendeiros de café constituíram sua riqueza em terras que passavam a ter benfeitorias, por meio do suor de um trabalhador sujeito a tremenda instabilidade, violência e dificuldades materiais.

46 Em O Cativeiro da Terra, a temática mais geral consiste nas questões relativas à constituição da propriedade privada da terra e à criação de relações de trabalho não capitalistas voltadas à produção de capital. Martins (1981) analisa o caso do Brasil a partir do processo de constituição da força de trabalho e das relações de produção que se definiu com a crise do escravismo no final do século XIX, culminando com criação do regime de colonato. Segundo o autor, ao se conformar o fim da escravidão, a terra teve de se tornar cativa, o que ocorreu através da Lei de Terras de 1850, para que uma nova fonte de capitalização ocorresse. A renda territorial capitalizada passa a ser o novo objetivo do fazendeiro, o que somente seria possível por meio da criação de uma relação de trabalho não capitalista que subsidiasse a acumulação capitalista. Neste caso, a relação de trabalho em foco é o colonato, possibilitado pela vinda de imigrantes. A ampla oferta de braços para os cafezais paulistas conjuntamente a um determinado ideário relativo ao trabalho permitiram que esses trabalhadores fossem os grandes “fazedores de fazenda” atribuindo valor a terra, que por si só não o teria, e enriquecendo os cafeicultores dessa região.

Martins (1981, p. 74) esclarece como na cafeicultura, a partir da constituição da propriedade privada da terra sob monopólio, há a subordinação do trabalho desenvolvido em bases não capitalistas e voltado para a produção de capital:

Se no regime escravista os recursos investidos na compra de escravos representavam a parcela principal do capital da fazenda, no regime de trabalho livre a parcela principal passou a se constituir no cafezal. Esse capital tinha, pois, uma clara procedência não-capitalista. A propriedade capitalista da terra assegurava ao fazendeiro a sujeição do trabalho e, ao mesmo tempo, a exploração não capitalista do trabalhador. Com base no monopólio sobre a terra, o fazendeiro de fato não empregava o formador do cafezal. Na prática, ele lhe arrendava uma porção do terreno para receber em troca o cafezal formado.

Martins (1986b) explica a forma como a terra é subordinada aos desígnios da produção capitalista realizando o seguinte percurso teórico. Ele parte da explicação das relações capitalistas de produção, cujo fundamento é a exploração do trabalho. O trabalhador produz mais valor do que recebe pela venda da sua força de trabalho, do qual o capital se apropria. Logo, o capital resulta do trabalho não pago. Esse raciocínio é feito para afirmar que a terra não pode ser considerada capital, uma vez que ela não é fruto do trabalho, mas, sim, um bem da natureza. “A terra é pois, um instrumento de trabalho qualitativamente diferente dos outros meios de produção.

47 Quando alguém trabalha na terra, não é para produzir a terra, mas para produzir o fruto da terra. O fruto da terra pode ser produto do trabalho, mas a própria terra não o é.” (MARTINS, 1986b, p. 160).

Para se apropriar da terra, o capital tem que pagar a renda fundiária à classe proprietária desse bem. A renda fundiária aparece como um tributo à produção capitalista, já que uma parte do capital tem que ser imobilizado de maneira improdutiva. O ônus desse tributo recai sobre o conjunto da sociedade, assim o sociólogo explica:

(...) podemos entender que a renda da terra não é paga por ninguém em particular porque ela é paga pelo conjunto da sociedade. Ela aparece primeiramente nas mãos do capitalista como se fosse um lucro extraordinário, que ele não se julga no direito de reter para si porque para ele o lucro é o pagamento pela propriedade dos instrumentos de produção, proporcional ao valor que esses meios têm. Ele conserva a parte que lhe cabe e passa adiante, ao proprietário da terra, a parte que cabe a este. Assim, a renda capitalista da terra também se distingue da renda pré- capitalista porque não tem o caráter de um tributo pessoal e sim o caráter de um tributo social. O conjunto da sociedade paga pelo fato de que uma classe, a dos proprietários, tem o monopólio da terra. A dedução não é feita sobre os ganhos deste ou daquele, mas sobre os ganhos do conjunto da sociedade, sobre a riqueza socialmente produzida, ainda que sujeita à apropriação privada do capitalista.” (MARTINS, 1986b, p. 164, 165)

A tendência do capital de tudo dominar também se exerce sobre a renda da terra. No Brasil, o capital atuaria de duas maneiras: se apropriando diretamente da terra, onde a renda é alta, o que ocorre com as grandes produções de cana, soja, pecuária de corte; ou, onde a renda é baixa, nos setores de produção de alimentos voltados para o mercado interno, o capital não se torna proprietário da terra, mas encontra maneiras de se apropriar da renda fundiária, por meio da extração do excedente econômico.

No caso da pequena propriedade, que Martins denomina de camponesa, a produção se daria de forma não-capitalista, por meio do predomínio do trabalho familiar e não do trabalho assalariado, e da produção não voltada para obtenção do lucro. Mas, pelo fato de a propriedade da terra ser capitalista, há a vinculação do camponês à reprodução ampliada do capital e às leis de mercado, pela sujeição da renda da terra ao capital. Na passagem abaixo, são esclarecidos os mecanismos pelos quais o campesinato é subjugado ao capital:

48 Onde o capital não pode tornar-se proprietário real da terra para extrair juntos o lucro a renda, ele se assegura o direito de extrair a renda. Ele não opera no sentido de separar o proprietário e o capitalista, mas no sentido de juntá-los. Por isso, começa estabelecendo a dependência do produtor em relação ao crédito bancário, em relação aos intermediários, etc. É um fato claro que toda a renda diferencial tem sido sistematicamente apropriada pelo capital no momento da circulação da mercadoria de origem agrícola. O que hoje acontece com a pequena lavoura de base familiar é que o produtor está sempre endividado com o banco, a sua propriedade sempre comprometida como garantia de empréstimos para investimento e sobretudo para custeio de lavouras. Sem qualquer alteração aparente na sua condição, mantendo-se proprietário, mantendo o seu trabalho organizado com base na família, o lavrador entrega ao banco anualmente os juros dos empréstimos que faz, tendo como garantia não só os instrumentos, adquiridos com os empréstimos, mas a terra. Por esse meio, o banco extrai do lavrador a renda da terra, sem ser o proprietário dela. Sem o perceber, ele entra numa relação social com a terra mediatizada pelo capital, em que além de ser o trabalhador é também de fato o arrendatário. Como a sua terra é terra de trabalho, não é terra utilizada como instrumento de exploração da força de trabalho alheia, não é a terra de uso capitalista, o que precisa extrair da terra não é regulado pelo lucro médio do capital, mas regulado pela necessidade de reposição da força de trabaho familiar, de reprodução da agricultura de tipo camponês. Por isso, a riqueza que cria realiza-se em mãos estranhas às suas, como renda que flui disfarçadamente para os lucros bancários, como alimento de custo reduzido que barateia a reprodução da força de trabalho industrial e incrementa a taxa de lucro das grandes empresas urbanas. (MARTINS, 1986b, p. 177)

A parte da obra de Martins que vai de fins da década de 60 até a década de 80 tem como fundamento a heterogeneidade estrutural do capitalismo dependente, tal como formulado por Florestan, suas investigações vão no sentido de desvendar as maneiras pelas quais o “arcaico”, visto como relações de produção não capitalistas, se vincula à acumulação capitalista no Brasil. Segundo Martins (1981, p.3), as relações de produção não capitalistas, tal como a camponesa no Brasil, se mantêm e são recriadas no interior do modo de produção capitalista:

Num plano mais geral, reputo como importante, a partir da retomada da constatação de que o capital é um processo, desenvolvida por Marx, a observação de que o próprio capital engendra e reproduz relações não capitalistas de produção. Pude chegar a esse ponto especialmente através de uma reflexão demorada sobre a análise que Marx faz da renda territorial na sociedade capitalista. Sendo a renda da terra de origem pré-capitalista, perde, no entanto, esse caráter à medida que é absorvida pelo processo do capital e se transforma em renda territorial capitalizada, introduzindo uma irracionalidade na reprodução do capital. A determinação histórica do capital não destrói a renda nem preserva o seu caráter capitalista – transforma-a, incorporando-a em renda capitalizada. Fiz dessa constatação uma hipótese que abrangesse não apenas relações pré-

49 capitalistas, mas o que o próprio Marx e, mais tarde Rosa Luxemburg definiram como não-capitalistas. (...)

Se é possível denotar uma continuidade na obra de Martins, localizada no período assinalado, é a busca por compreender a forma como se ligam capitalismo e tradicionalismo, como relações não capitalistas, no capitalismo dependente. 31 Martins afirma o protagonismo do campesinato nas lutas agrárias brasileiras, a partir da idéia de que o fundamental é a ânsia do capital em sujeitar a renda da terra. Segundo Martins (1980): “As grandes inquietações no campo, os conflitos cada vez mais numerosos são determinadas pelo processo de expropriação da terra. A exploração do trabalho é um problema que aparece num segundo plano, muitas vezes embutida na propriedade e por ela escamoteada.” (p. 12) E mais adiante afirma que: “(...) é sério engano propor a exploração e não a expropriação como eixo principal da questão política no campo, (...)” (p. 20)

No início da década de 1980, a produção teórica de Martins sustenta sua defesa política de que era premente a inclusão das reivindicações camponesas na pauta de lutas dos partidos políticos, que ainda carregariam “vícios” do debate sobre a questão agrária na década de 60, uma vez que atribuíam papel predominante aos embates proletários no campo:

A situação do campesinato torna-se particularmente difícil neste momento porque as suas lutas avançaram muito adiante dos partidos políticos, clandestinos ou legais, premido pela rapidez e pela voracidade do avanço do capital e dos grandes grupos econômicos sobre a agricultura e sobre a terra. Os partidos políticos, de oposição, eventualmente com uma ou outra exceção entre os clandestinos, não têm conseguido nem incorporar as lutas camponesas nas suas próprias lutas político-partidárias nem incorporar as perspectivas camponesas de classe nos seus programas. Curiosamente, o que se viu foi apenas vaga repetição de formulações da esquerda anteriores a 1964, de certo modo obsoletas, e uma grande perplexidade diante das lutas camponesas atuais – seja as lutas dos camponeses

31 Esta idéia, inclusive, faz parte do título de um dos seus primeiros livros, compostos por oito artigos, escritos a

partir de 1967: Capitalismo e Tradicionalismo.Neste livro, Martins (1975, p. 16) afirma: Os resultados iniciais da investigação mostram uma clara integração entre o rural e o urbano. Mostram que o nosso atraso agropecuário e o nosso progresso urbano-industrial não se explicam separadamente, constituindo um todo articulado. As possibilidades do comportamento de tipo empresarial, deliberadamente orientado para o lucro mediante adequada manipulação de meios, e da introdução crescente de técnicas modernas no campo, bem como da 'atualização' capitalista das relações de produção, mostram-se estreitamente relacionadas com essa realidade da economia brasileira.

50 posseiros de vastas regiões do país, seja as lutas dos camponeses proprietários, principalmente do sul, que se envolveram, nos últimos anos, em vários desentendimentos com o governo federal, sobretudo por problemas de preços agrícolas e desapropriação de terras destinadas à construção de usinas hidrelétricas. Predomina hoje nos partidos de oposição, recentemente autorizados a funcionar, uma concepção proletária da situação social e política, estando neles ausente a possibilidade e a necessidade de uma presença camponesa – para o que tais partidos teriam que se reformular amplamente, dentro dos partidos, de duas classes sociais básicas produzidas pelas contradições do capital e com ele antagonizadas: a dos operários e a dos camponeses, a dos que sofrem a exploração do capital e a dos que estão submetidos ao processo de expropriação pelo capital; cada qual com seu tempo histórico, a sua luta e a sua visão de mundo. (MARTINS, 1986b, p. 102)